terça-feira, 25 de outubro de 2011

RAY HARRYHAUSEN

QUADRO A QUADRO

Qualquer um que tenha assistido King Kong* (1933), Simbad e a Princesa* (1958) ou Fúria de Titãs* (1981) viu magníficos exemplos de uma das mais antigas técnicas de efeitos especiais do cinema: a animação quadro a quadro (stop motion animation), também conhecida por animação dimensional. Por essa técnica, um pequeno modelo articulado é fotografado em seqüência, enquanto um animador muda um pouco sua posição entre cada foto. Ao ser exibida uma após a outra, como em um desenho animado, tem-se a ilusão de que o modelo move-se por conta própria. Apesar de remontar aos primórdios do cinema, dois nomes popularizaram essa técnica: o falecido Willis O´Brien e Ray Harryhausen, sendo que este elevou-a à categoria de arte. 
Ray Harryhausen nasceu em 29 de junho de 1920 em Los Angeles, Califórnia. Ao assistir King Kong, quando tinha 13 anos, Harryhausen apaixonou-se pelo filme e elegeu Willis O´Brien, o autor de seus efeitos especiais, como o maior de seus ídolos. Desde então e até 1981, ele realizou seus sonhos de infância criando seus próprios épicos recheados de criaturas fantásticas, animadas pela magia quadro a quadro.
“Sempre gostei de figuras esculpidas e modelos. Quando assisti King Kong, descobri que podia fazer meus modelos moverem-se quadro a quadro. Imediatamente arranjei uma câmara, e o que de início era um hobby virou minha profissão”, relembra. Também apaixonado pela ficção científica, conheceu seu melhor amigo Ray Bradbury, o aclamado autor do clássico livro Crônicas Marcianas, muito antes de ambos realizarem seus sonhos de infância. Os dois nunca trabalharam juntos, o que é uma pena, já que as visões poéticas de Bradbury casariam perfeitamente com as imagens cinemáticas de Harryhausen. “Conheci Ray em 1938”, Harryhausen lembra, “quando entrei para a Liga de Ficção Científica de Los Angeles, formada por jovens que se reuniam para falar sobre estações espaciais e viagens à Lua e Júpiter. 
Todo mundo achava na época que éramos malucos. Na realidade, éramos proféticos, e lá estava Ray. Ele estava escrevendo para a revista do grupo, chamada Imagination. Logo eu estava fazendo ilustrações para ela. Nos reunimos por vários anos todas as quintas-feiras, era muito divertido. Continuamos amigos até hoje, volta e meia falando em fazer um filme juntos.” Foi nos anos 30 que Harryhausen realizou seus primeiros experimentos de animação, com a câmara de um amigo emprestada. Iniciou um ambicioso projeto chamado Evolução, mas decidiu abandoná-lo quando Disney lançou Fantasia*. As cenas de apogeu e extinção dos dinossauros, apresentadas no desenho Disney, eram praticamente iguais às da produção independente de Harryhausen.
 Desenho de Ray Harryhousen

Após servir no exército e realizar alguns curta-metragens institucionais, Harryhausen pôde finalmente utilizar intensamente sua técnica, na série Pupetoons produzida por George (Guerra dos Mundos*) Pal. Com o dinheiro ganho produziu alguns curtas, Mother Goose Stories. Mas até então, o grande acontecimento de sua vida foi ter conhecido pessoalmente seu ídolo Willis O´Brien. Seus sonhos começaram a se concretizar a partir do dia em que foi à casa do mestre, para exibir seus primeiros trabalhos. O´Brien reconheceu aquele talento emergente, a ponto de, em 1946, convidar o jovem para ajudá-lo a criar mais um gorila para as telas, Mighty Joe Young (O Monstro do Mundo Perdido). “Foi emocionante trabalhar com ele,” diz Harryhausen. “Eu estava tendo a chance de trabalhar junto à pessoa cuja obra eu mais admirava, ajudando-o a preparar tudo desde o início de Mighty Joe Young. Por ser meu mentor, eu já sabia instintivamente o que ele queria. Enquanto ele se encarregava da produção, fui responsável pela construção do esqueleto do gorila e por pelo menos 85% da animação.” Mesmo arriscando sua própria vida para salvar as crianças de um orfanato em chamas, Mighty Joe Young não repetiu o sucesso de bilheteria de King Kong. O filme, que hoje é considerado um pequeno clássico e foi refilmado em 1998 (no Brasil recebeu o título O Poderoso Joe*), com direito até a uma pequena ponta de Harryhausen, garantiu o Oscar de efeitos especiais para Willis O´Brien.
Harryhausen, satisfeito por sua incursão inicial em Hollywood, continuou criando mais alguns contos de fadas até ser convidado por Jack Dietz para seu primeiro trabalho integral em um longa metragem, The Beast From 20.000 Fathoms (O Monstro do Mar). A partir dele, Harryhausen passou a desenvolver a técnica de combinar o modelo animado com atores e cenas em movimento, que ao ser aperfeiçoada passou a ser conhecida como Dynarama, ou Dynamation. Curiosamente, o filme foi remotamente inspirado em um conto do amigo Ray Bradbury, The Fog Horn (A Sereia de Nevoeiro, que foi publicado no Brasil no livro de Bradbury Contos de Dinossauros, editora Artes e Ofícios, 1993. Bradbury dedicou este livro a Willis O´Brien, e o prefácio foi escrito por Harryhausen). No filme, um pré-histórico Rhedossauro é descongelado por uma explosão nuclear e viaja sob o mar até Nova York para causar pânico e destruição, devorar policiais e ser morto em um parque de diversões pelo novato Lee Van Cleef. O filme foi um inesperado sucesso de bilheteria em 1952. Em 1953, através de um amigo comum, Harryhausen conheceu aquele com quem teria uma duradoura parceria, Charles H. Schneer. Ele havia visto o filme e gostado muito, e também tinha planos de fazer um grande filme sobre um monstro destruindo a ponte Golden Gate. Passaram a desenvolver idéias e scripts, enquanto tocavam outros projetos. Fizeram juntos It Came From Beneath The Sea (O Monstro Do Mar Revolto*, 1955, sobre um polvo gigantesco que ataca São Francisco) e Earth Vs. The Flying Saucers (A Invasão dos Discos Voadores*, 1956, cuja cena memorável é a de um disco voador colidindo com o Capitólio de Washington) para a Columbia. 
Para a Warner Bros, Harryhausen criou em 1956 algumas cenas de dinossauros para o semi-documentário The Animal World, uma das primeiras produções escritas e dirigidas por Irwin Allen. Quando Schneer fundou sua própria companhia (Morningside Productions), em 1957, Harryhausen pôde fazer 20 Million Miles To Earth (A 20 Milhões de Milhas da Terra*), cuja idéia estava desenvolvendo há alguns anos. No filme, uma espaçonave retorna de Vênus trazendo um ovo de uma criatura nativa, o Ymir. A nave acaba caindo nas costas da Itália, o ovo se descasca e o então pequenino Ymir começa a crescer até tornar-se um gigante. Capturado pelo Exército, é aprisionado no zoológico de Roma para estudos. Consegue fugir e trava um feroz combate com um elefante. Sua última batalha contra o exército ocorre no Coliseu de Roma. O filme marcou o início da colaboração da dupla Schneer-Harryhausen com o diretor Nathan Juran, que continuou em The 7th Voyage Of Sinbad e First Men In The Moon. O Ymir é até hoje uma das criaturas prediletas dos fãs de Harryhausen, e dele próprio. “Eu acho que é um bom filme, considerando o pequeno orçamento que tivemos. Seu custo total foi somente U$ 200.000.  Talvez a maior falha desse filme seja a falta de uma trilha sonora original. Todos meus primeiros filmes usaram músicas de arquivo. É realmente excitante ouvir a música que um compositor do nível de Bernard Herrmann compõe especialmente para você, como em Simbad e a Princesa. Se o tivéssemos em 20 Million Miles... o filme ficaria bem melhor.”
Desenho de Ray Harryhousen

A boa bilheteria do Ymir permitiu a Harryhausen e Schneer embarcarem em uma viagem mais ambiciosa, através dos contos das 1.001 noites. O resultado foi sua primeira obra-prima, The 7th Voyage of Sinbad (Simbad e a Princesa*). Com belas locações na Espanha, o filme mostra Simbad (Kerwin Mathews) e sua tripulação viajarem à misteriosa ilha de Colossa, a fim de libertar sua amada princesa do feitiço do mago Sokurah (Torin Thatcher). Pela primeira vez, Harryhausen criou toda uma galeria de criaturas animadas quadro a quadro, como o Ciclope, o Pássaro Roca, a Mulher Serpente, etc. Apesar do orçamento reduzido e das interpretações no máximo razoáveis, o filme é repleto de grandes momentos pontuados pela excepcional música de Bernard Herrmann, destacando-se o perfeitamente sincronizado duelo de Kerwin Mathews com o esqueleto. Para esta cena, Herrmann compôs um concerto de castanholas e xilofone, que soa como ossos batendo. Após esse grande sucesso, em 1959 Harryhausen mudou sua base de operações para a Inglaterra, em razão de haver um novo processo de efeitos especiais à base de sódio, e lá era o único lugar onde estava disponível. O primeiro produto dessa nova fase foi The Three Worlds Of Gulliver (As Viagens de Gulliver), e novamente Harryhausen reuniu-se com Kerwin Mathews e Bernard Herrmann. Apesar de não repetir o sucesso de Simbad, este filme, o primeiro que utilizou-se do processo de sódio, é inigualável na combinação de imagens, especialmente nas cenas de Gulliver em Lilliput. A animação quadro a quadro, apesar de fazer-se presente, não foi o destaque, e Harryhausen teve a oportunidade de aprofundar-se em uma variedade de outros efeitos.
A primeira realização dos anos 1960 da dupla Schneer-Harryhausen foi Mysterious Island (A Ilha Misteriosa), baseada na novela de Júlio Verne. Sendo a seqüência de 20.000 Léguas Submarinas, as comparações (desfavoráveis) com o clássico filme de Walt Disney foram inevitáveis. Mesmo assim, os fãs apreciaram bastante as cenas com as criaturas gigantes (um caranguejo, algumas abelhas, um pássaro e um polvo pré-históricos), além de mais uma vibrante trilha de Bernard Herrmann. Encerrada a produção, mesmo antes da estréia de A Ilha Misteriosa, Harryhausen já trabalhava naquele que ele considera seu melhor filme, Jason And The Argonauts (Jasão e o Velo de Ouro). 
O processo de produção foi exaustivo (dois anos), em que Harryhausen encarregou-se praticamente de todos os detalhes, desde o esboço dos personagens até a escolha do elenco e das locações (cenas foram filmadas na Itália e Grécia). Apesar de mostrar uma galeria de monstros mitológicos que incluía o gigante de bronze Talos, as Harpias e a Hidra de Sete Cabeças, como em Simbad a cena mais lembrada é um duelo com esqueletos. Segundo Harryhausen, a cena, que novamente foi musicada vibrantemente por Herrmann, poderia ter um impacto ainda maior se tivesse sido filmada à noite, o que não foi possível devido às complicações técnicas que seriam decorrentes. O processo de combinar as cenas dos atores com as de efeitos especiais quadro a quadro, em uma época em que usar computadores no cinema era algo impensável, foi extremamente complexo. Além do processo ótico em si, as cenas deviam ser cuidadosamente planificadas, com todo os movimentos de câmera calculados. Para que o diretor não tivesse qualquer dúvida a respeito do que ele queria, Harryhausen fazia no mínimo 600 rascunhos de cada cena. “Para mim, a criatura mais incrível de Jason And The Argonauts foi a Hidra de Sete Cabeças, mas o destaque sempre vai para a batalha dos esqueletos, claro. Fiz toda a animação quadro a quadro, usando projeção de fundo em praticamente toda a seqüência. Ensaiamos três semanas com os atores, antes de filmar a cena. Posteriormente, na animação, conseguia filmar no máximo 13 quadros por dia, já que tinha sete esqueletos separados para manipular. Levei quatro meses e meio para concluir apenas este segmento.”
Posteriormente, ao longo da década, Harryhausen realizou mais alguns filmes que, apesar de serem tecnicamente impecáveis, não repetiram o sucesso de seus predecessores. Dessa fase, que incluiu First Men In The Moon (Os Primeiros Homens na Lua*, baseado em H. G. Wells), The Valley Of Gwangi (O Vale do Gwangi, a retomada de um antigo projeto de Willis O´Brien, em que cowboys descobrem um Alossauro vivo no início do século) e One Million Years B. C. (Mil Séculos Antes de Cristo), talvez este último tenha tido mais destaque. Uma produção da Hammer inglesa, este foi o filme que lançou a seminua mulher-das-cavernas Raquel Welch à fama. A trama, refilmagem de um filme dos anos 1940, envolve os conflitos entre duas tribos pré-históricas, e como em um desenho dos Flintstones, os dinossauros, que foram extintos milhões de anos antes do surgimento do homem na Terra, estão presentes. Segundo Harryhausen, essa “infidelidade científica” é secundária, e serviu bem aos propósitos do filme. Já nos anos 1970, buscando recuperar a magia dos velhos tempos, a dupla Schneer-Harryhausen resolveu retornar às 1.001 noites com The Golden Voyage Of Sinbad (A Nova Viagem de Simbad*). Novamente com locações na Espanha, o filme traz uma nova galeria de criaturas bizarras para infernizar Simbad e sua tripulação, como o Homúnculo, a estátua da deusa Kali, o Centauro de um olho só e o Grifo. John Phillip Law substituiu com desvantagem Kerwin Mathews no papel principal. Tom Baker, que se tornaria famoso na Inglaterra por sua atuação na série cult Doctor Who, fez o mago Koura, e a musa da fantasia dos anos 1970, Caroline Munro, era a mocinha raptada pelo terrível Centauro. Apesar de não chegar aos pés do primeiro Simbad, esta seqüência ainda ofereceu muita diversão graças à magia dos efeitos especiais e à música do veterano Miklos Rosza, que compôs uma trilha digna dos antigos clássicos de aventura.
Quase ao final da década, Sinbad And The Eye Of The Tiger (Simbad contra o Olho do Tigre*) encerrou a trilogia, e infelizmente foi o mais fraco da série. Apesar de Patrick Wayne interpretar um Simbad superior ao de John Phillip Law, o filme em si deixou a desejar. A concepção das criaturas foi fraca (a melhor talvez tenha sido a Morsa gigante), e bem mais interessante que elas foram as beldades Jane Seymour e Tarin Power tomando banho nuas em um rio. Também, a pouca receptividade do filme deve-se em parte à época de seu lançamento, 1977. Foi no ano do estouro de Star Wars*, que ofuscou os monstros pré-históricos e mitológicos e colocou na moda os filmes espaciais. O velho Harryhausen, no entanto, não desviou-se de seus princípios. Ao longo de sua carreira, tornou-se um verdadeiro herói para os fãs da fantasia e da animação, pois foi uma das poucas pessoas do cinema que continuaram a conjurar monstros, mesmo quando eles ficaram fora de moda. Em seu primeiro e único filme da década de 1980, Clash of The Titans (Fúria de Titãs*), Harryhausen voltou ao seu período favorito, a antiga Grécia, com um orçamento maior que o normal, utilizando todas as técnicas que aprendeu com o passar dos anos. Contando o tempo de filmagem com atores, o veterano técnico e sua equipe trabalhou 2 anos neste último épico, animando figuras mitológicas como Pégaso, Calibos e a Medusa. O filme narra a luta do herói Perseu para conquistar a mão da bela Andrômeda, enfrentando em seu caminho homens, monstros e deuses. Além da animação quadro a quadro, o filme teve outros efeitos impressionantes, como o maremoto provocado por Kraken, que destruiu a cidade de Argos.
Apesar de não ter realizado mais filmes, limitando-se a realizar pequenas pontas (homenagens) em filmes e documentários, Ray Harryhausen deixou um inigualável legado no cinema, e como seu mestre Willis O´Brien, foi o ídolo e a inspiração de jovens que dedicaram toda seu esforço e criatividade à arte da animação dimensional. Para muitos, e principalmente para nomes como Jim Danforth (Quando os Dinossauros Dominavam a Terra), David Allen (O Enigma de Outro Mundo*, O Jovem Sherlock Holmes) e Phil Tippett (Star Wars Episódio V: O Império Contra-Ataca*, Robocop*), um novo mundo foi descoberto quando assistiram, maravilhados, o Ciclope e o Ymir fazerem coisas somente possíveis nesses filmes fantásticos, que foram exibidos nas melhores matinês de todos os tempos. 
Ray Harryhausen ganhou o Oscar em 1991 (Prêmio Gordon E. Sawyer), pelos avanços que proporcionou nas técnicas de efeitos visuais especiais. Peter Jackson, demonstrando todo o seu respeito pelo veterano mestre, convidou-o para ser consultor de efeitos visuais em sua versão de King Kong. Mais do que uma tarefa, uma bem merecida homenagem a este velho senhor que maravilhou milhões de espectadores, por muitas décadas.


Fonte: http://www.scoretrack.net/ray.html

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