domingo, 27 de abril de 2014

FELLINI POR FELLINI



Para mim, para Fellini, um filme é como um míssel posto em órbita. É uma operação matematicamente precisa. Elabora-se, cuidadosa e totalmente, em todos os pormenores, mesmo antes de se ter feito o primeiro disparo da câmara. De que espécie de atores necessitarei? Decorações, guarda-roupa, infindas pequenas coisas? Na verdade, para mim, a filmagem constitui a etapa mais fácil de toda a operação. Estou meramente realizando o que antes tinha concebido. O esforço real surge quando se começa a pensar, a criar uma nova evocação; sentimo-nos angustiados, e os nossos pensamentos tornam-se um peso no cérebro, e trabalhamos arduamente. Muito arduamente. Não quero significar com isso que se deixe de sentir o prazer de cada minuto de gloriosa auto-torturação. E assim, gradualmente, a obra desenvolve-se e vai tomando forma, mas tudo com precisão matemática e cuidadosamente equacionado. No guião e nas anotações do realizador. Quando finalmente se chega ao começo da rodagem, nada surge que não tivesse sido previamente pensado e escrito no papel. Fellini a trabalhar sem guião nem anotações? Estúpido mito. Todavia, há uma coisa que Fellini de certo não é: prisioneiro dos seus próprios pensamentos. Creio que seria pura estupidez manter-me fiel a qualquer coisa que tivesse escrito seis meses antes, quando ainda não sabia quem viriam a ser os atores, qual a localidade apropriada para as filmagens; por isso faço alterações. Quero sentir-me livre e recetivo a todo o género de sugestões durante o percurso, durante a viagem do filme.




Realizar uma obra cinematográfica assemelha-se bastante com fazer uma viagem. Antes de iniciar a rodagem, já sabemos com exatidão donde queremos partir e aonde desejamos chegar. Mas seria pura imbecilidade pretender-se possuir, antecipadamente, o conhecimento de tudo quanto porventura viesse a ocorrer durante a viagem. Se assim fosse, teríamos perdido, de antemão, todo o prazer de viajar. É necessário que se possua o conhecimento do rumo, mas só sentindo-nos livres poderemos enriquecer a viagem com a força da nossa presença e de todos os fatos que se nos vão revelando. Impedir a ação do pensamento sobre as coisas, à medida que elas surgem, não seria viajar de olhos abertos, mas, pelo contrário, toda a trajetória vinha a resultar na viagem de um cego. Se eu recusasse uma nova ideia revelada no decorrer da captação das imagens, proporcionando-me um conhecimento mais rico do meu assunto, seria tão estúpido como recusar a sugestão de um dos meus atores, baseada na sua boa fé e sentimento de humanidade. Era como se recusasse a própria vida. Um Fellini não pode ficar amarrado a ideias fixas, prisioneiro da conjetura esquemática feita por ele mesmo, mas esta liberdade é também a de que todo o artista necessita para conseguir exprimir-se cabalmente.




Para realizar um filme preciso, pois, de me ver absolutamente livre das estipulações escritas por mim ou por outros. Suponho-me um homem de sorte, porque me é permitido fazer exatamente o que quero. Todas as decisões e responsabilidades são apenas minhas. Porém, não me esquivo a estas nem abuso daquelas. Não foi tarefa fácil, por exemplo, chegar à decisão de pôr pessoas inteiramente desconhecidas no desempenho dos principais papéis em “Satyricon”. Passei pela angústia, tormento e dúvida de mim próprio que acompanham um labor deste género. Hoje sei que tinha razão. A maior parte do trabalho está filmada. Mas na altura… Havia aquelas vozes dizendo-me ao ouvido um segredo trovejante: Você precisa de nomes de bilheteira, Fellini. «Astros que vendam bilhetes!» Examinei esses “astros” devidamente, apenas para descobrir a vertiginosa quantidade de dinheiro que queriam, e como eu teria de adaptar a rodagem aos seus horários pessoais. Sujeitamo-nos a ver passar o tempo, semanas e semanas à espera do “homem bilheteira” ou então deixamos de contar com ele. E é preciso libertá-lo das suas obrigações em determinado momento, porque tem outro compromisso algures. Se o não libertamos, mete-nos em sarilhos. Bastante me custou acreditar no que ouvia, mas quando percebi ser essa a maneira como as coisas correm hoje na profissão cinematográfica, disse não, jamais será assim, sempre que estejam em causa filmes de Fellini.




Prefiro que os atores me sejam acessíveis, eles a mim e não eu a eles. Nunca os obrigo a estar constantemente ocupados, ou mais tempo do que o necessário. Não é um critério de ocupação que me leva a querê-los acessíveis. Segundo me disseram, uma jovem que trabalhara em “Julieta dos Espíritos” queixou-se, recentemente, de eu a ter feito permanecer em Roma durante oito meses, passando, afinal, semanas inteiras sem perguntar por ela. Enquanto pensava no papel que devia dar-lhe. Quando me contaram isto, eu disse que não podia ser verdade e perguntei como se chamava a jovem. Tratava-se, nem mais nem menos, da moça contratada para dupla de Sandra Milo… Disse então para comigo, porque lhe havia de ter passado pela cabeça falar de Fellini? Vim depois a saber que desde então se tornara uma espécie de “estrela” e que “Julieta dos Espíritos” era um dos filmes a creditar-lhe o nome na sua biografia cinematográfica! Talvez ela tenha aprendido algo com Fellini, mesmo enquanto, generosamente, se sujeitou a esperar semanas a fio. A verdade é que ela participara numa viagem de Fellini, somente lhe escapou a compreensão total desse fato. Mas não nos enganemos. A maioria compreende-o. Porque os meus atores não se tornam apenas parte da família, tornam-se também parte da minha fantasia. E começo a gostar deles. Antes de mais, amo-os; tanto assim que pensam sempre continuar comigo para o resto da vida. E a verdade seja dita, eu prometo-lhe de boa fé: «Você entrará também no próximo. Gosto de si, você é maravilhoso.»



Na ocasião sou honesto acerca do que digo. E eu próprio acredito nas minhas palavras. Porque a nossa viagem foi uma viagem feliz. É como se déssemos um passeio com bons amigos e o prazer fosse tanto que nos induzisse logo à promessa de dar, no ano seguinte, novo passeio com eles. Porém, chega o próximo ano e pode acontecer que tenhamos novos e diferentes amigos. É desta sorte que as coisas se passam com os meus filmes. Faço o prometimento. Depois a fantasia chega ao fim. O filme está pronto. No ano seguinte terei nova fantasia e novos personagens em mente, e outras pessoas preencherão, logicamente, os requesitos essenciais à caracterização desses personagens, tão obviamente que não haverá lugar para quaisquer dúvidas acerca de quem devo chamar para o desempenho dos novos papéis. Receio bastante ter causado desapontamentos a alguns atores, mas nunca o fiz intencionalmente nem de má fé. Em todos os casos tenho criado por eles muita amizade durante a nossa viagem, e não são poucos os que foram contratados para participar no filme seguinte. Subconscientemente terei mesmo escolhido a história adequada às suas possibilidades. Foi assim no referente a Marcello Mastroianni, a Anouk Aimée, e a minha mulher já trabalhou para mim seis vezes.





Quanto eu desejaria poder trabalhar sempre com todos eles! Mas, no fim de contas, isso não passa, na realidade, de construção de sonhos. E só se pode ter um sonho de cada vez, e aquele que couber no próximo sonho, é ele que lá cabe; não se pode fugir a essa simples crueldade. Eis, enfim, a minha apologia dos atores. Contudo, damo-nos sempre maravilhosamente. E se algum deles veio a detestar-me no fim da viagem, ainda ninguém mo disse. Naturalmente, nunca acabamos o percurso ao mesmo tempo. A viagem tinha começado, para mim, muitos meses antes, e o fim das filmagens não é mais do que um dos diversos fins. A seguir vem o fim dos cortes, e há o fim no tornar a película impermeável, e o fim das marcações. E quando o filme está pronto vem a estreia. A primeira, depois outra algures, e ainda outra e outra mais, e isto pode prolongar-se por muito tempo. Então a gente afasta-se gradualmente da nossa própria obra, e quando se supõe fora dela está-se metido na próxima. Deste modo, nunca se tem o sentimento de permanência entre dois filmes. Já estive quatro anos sem rodar um único trabalho, e não creio, entretanto, ter perdido um só dia. Nunca a desocupação me indispôs - obviamente porque nunca deixei de trabalhar. Se este é o segredo de Fellini, pois bem, agora ficareis a sabê-lo.



Quando tinha ainda muito pouca idade, o meu sonho era vir a ser repórter, como aqueles que se vêm nos velhos filmes anericanos de gangsters, trabalhando com a polícia. Mais tarde desisti desse sonho e criei outro: desejava fazer-me escritor, dramaturgo. E, na verdade, comecei como escritor, primeiro para a rádio e depois para o cinema. Tinha escrito 75 guiões antes de me tornar realizador. Atingi a maturidade profissional após ter escrito duas histórias para Rossellini. Uma foi "Roma, Cidade Aberta" e a outra "Paisanos". Observava diariamente o trabalho de Rossellini porque tinha de lá estar para escrever os diálogos dia a dia, e a certa altura descobri-me a gostar do que ia vendo. Pensava que seria para mim um grande prazer se fizesse o que ele fazia, e senti-me igual a ele perante a tarefa. Bem, foi assim o meu começo, há mais de vinte anos, e não posso libertar-me da sensação de ter passado esse tempo todo a fazer um único grande filme, um filme que me tem ocupado cada instante dos vinte e alguns anos e se encontra ainda bastante longe do fim. Se eu tenho o meu caminho, o filme nunca o terá.


(Texto publicado a 29 de Agosto de 1969, na revista "Vida Mundial")



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