terça-feira, 6 de outubro de 2015

DECIFRA-ME


por Yuri Vasconcelos Silva

O contorno de uma águia de duas cabeças definida sobre o mosaico branco de petit pavet. Na verdade, trata-se da sombra projetada de uma estranha estátua bicéfala que repousa há tempos sobre o coroamento do edifício. Localizado na praça que outrora fora o centro comercial da cidade, com uma bonita fonte esculpida em art nouveau protegida por copas de plátanos que formam um guarda sol verde sobre todo o lugar, a águia bicéfala aponta para o início do mistério. O edifício veste uma roupagem eclética, com escadaria em três lados que levam a uma colunata alta, protegida do sol e repleta de pombos. A simetria da fachada e imponência da entrada contrastam com o vestíbulo, espaço com árvores da mata atlântica bem fechada ocupando tudo, deixando livre apenas uma trilha de basalto cujo ponto focal exibe uma estátua um tanto assustadora de um Papa que não mais existe. Ao passar pelo pontífice em cobre, uma porta imensa e verde, cravejada com almofadas douradas, revela um saguão de caráter minimalista, puro e duro. Duas escadas helicoidais, simetricamente dispostas a leste e oeste, se erguem até um salão de piso branco em mármore polido. A parede sul, em chapas de vidro, traz a cidade inteira para dentro. No lado norte, um painel ripado de madeira nobre aponta três portas para três destinos distintos. Na primeira, à esquerda, um espaço protegido por um chapelão amplo de madeira e telha cerâmica envelhecida. Muitas mesas se desorganizam na aleatoridade dos grupos de pessoas e no movimento rápido de garçons. O galpão é ladeado por um canal concretado que guia a água lenta e verde onde deslizam patos, gansos e pedalinhos capengas de fibra de vidro. Os gritos de bichos desconhecidos se misturam ao cheiro de pipoca e bacon, fazendo desta sala um festival aos sentidos.

Ao passar pela porta central, um lugar sombrio. Uma entrada discreta em um paredão de prédios leva a uma sequência de escadas que perfuram o chão. Lá embaixo, o odor de mofo se mistura com a iluminação antiquada e poeira similar ao de uma escavação, que parece vir por trás de uma cortina de veludo azul. Descortinada, a visão de uma sala de cinema, com o projetor barulhento e sua luz fazendo trajetória através da poeira suspensa que vaga pela atmosfera da sala de forma errática.

Dirigindo-se à porta da direita, terceira e última, uma agradável surpresa. A casa. Toda em madeira, tábuas cuidadosamente unidas ou arrematadas por caibros. Pintado em verde musgo fraco, a fachada frontal oferece um nicho para São Jorge. Os beirais são protegidos por flechas adornadas apontadas para baixo, de modo a guiar a chuva até o solo e não escorrer pelas paredes. São como rendilhados que contornam toda a casa. O piso de madeira é aconchegante, e quando se caminha sobre ele, a casa reclama num gemido familiar. Todo o piso se equilibra sobre tijolos empilhados, de modo que o frio da terra não invade o seu interior. Na cozinha, um velho fogão à lenha ainda funciona para aquecer a comida e a conversa de comadres.

O mistério foi resolvido – e o código, quebrado. A cidade é um conjunto de signos que deve ser decifrada todos os dias. Senão, ela te devora.

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