sábado, 5 de dezembro de 2015

A VIDA COMO ELA É


Por  Ricardo Cota

NOIR TROPICAL

Há muito Nelson Rodrigues corre o risco de se transformar naquilo que, em vida, ele mais criticou: uma unanimidade. A tal ponto que, dia desses, ao sair de uma sessão de Fale com Ela, o crítico foi surpreendido pelo comentário deslumbrado de um espectador que acabara de babar na gravata: “Almodóvar é o Nelson Rodrigues espanhol!”. Será?

Em todas as frentes de batalha da mídia ou das artes cênicas encontra-se um fã ardoroso, um citador contumaz ou um encenador obsessivo da vastíssima obra rodrigueana. Arnaldo Jabor, que já havia filmado Toda Nudez Será Castigada e O Casamento, em sua nova função de articulista chega a manter contatos transcendentais com o falecido, através de um telefone metafísico. No cinema, por sinal, a lista de diretores que já levaram Nelson às telas é extensa e só prima pelas exceções, além do referido Jabor, Nelson Pereira dos Santos (Boca de Ouro) e Leon Hirzsman (A Falecida). Particularmente gosto de O Beijo no Asfalto, de Bruno Barreto, até porque está longe de ser uma unanimidade.

No teatro, então, nem se fala. Houve um tempo em que só havia Nelson Rodrigues nos palcos. Fui uma das vítimas dessa febre e confesso ter perdido algumas horas assistindo a interpretações bisonhas do profeta tricolor. Para não ser amargo, registro duas encenações que ficaram na memória: Paraíso Zona Norte, de Antunes Filho, e Viúva Porém Honesta, dirigida por Marco Antônio Braz, carioca radicado em São Paulo, no Armazém do Cais do Porto.

Mas há vozes discordantes. O ator Sérgio Britto, mesmo sendo admirador de Nelson, foi um crítico rigoroso das montagens excessivas de sua obra. O jornalista Amir Labaki também manifestou-se contrariamente ao culto rodrigueano. Amigos que foram vítimas da pena afiada e da ironia de Nelson afirmam que a admiração é válida, mas que certas expressões que se transformaram em marca registrada do mais suburbano dos pernambucanos foram coladas de autores como Eça de Queirós, Tolstói, e Dostoiévski. Polêmicas à parte, é graças a essa discordância que a alma de Nelson descansa em paz, escapando da burrice da unanimidade.

Leitor voraz de suas crônicas, preciosidades da literatura carioca, este crítico rasga seda para o jornalista e cronista esportivo (admiração reforçada pelo fato de ambos sermos tricolores), mas não sente a mesma euforia diante do dramaturgo. Nelson tem os dois pés na história do teatro brasileiro pela revolução cênica promovida por Vestido de Noiva. Suas peças, no entanto, são irregulares, muitas vezes repetitivas e se salvam não pelo conjunto, mas pelos detalhes, pelas observações afiadas do cronista sempre de plantão, capaz de fazer de uma crise de asma uma metáfora da mais absoluta impotência.

Na televisão Nelson não foi menos idolatrado. Até novela virou - O Homem Proibido - protagonizada pelo rodrigueano David Cardoso. Que eu me lembre, Engraçadinha, transformada em minissérie, já foi reprisada pelo menos três vezes. Faltava chegar ao Fantástico. Batata! E foi em grande estilo que Nelson abrilhantou as noites de domingo. Num projeto arrojado, de 1996, produzido e dirigido por Daniel Filho, as crônicas diárias publicadas na Última Hora sob o título A Vida Como Ela É... ganharam um tratamento altamente refinado que agora se encontra disponível em DVD duplo da Globo Filmes.

Foram escolhidos 40 textos de uma lista de duzentos adaptados por Euclydes Marinho. Com precisão cirúrgica, os roteiros contam pequenas histórias, de aproximadamente 15 minutos, em que acima da qualidade dos atores, da fotografia, da direção de arte e da excelente trilha sonora, sobressai o texto original do melhor Nelson Rodrigues.

Filmados em três meses, os curtas, vistos seguidamente, espelham com extrema fidelidade o mundinho da classe média carioca dos anos 50. Não o mundinho real, mas o mundinho que só a velha máquina de datilografar de Nelson poderia registrar. Amantes, fetichistas, suicidas, homicidas, velhos gagás, rapazes lindos como um “havaiano de Hollywood” são sacados da rotina do subúrbio, das repartições públicas, das arquibancadas de futebol. O desejo reprimido pela hipocrisia das convenções sociais transborda em frases de efeito ou em rompantes inusitados que quase sempre terminam num ardente beijo na boca ou numa facada fatal.

A Vida Como Ela É... é um exemplo bem-sucedido de padronização. Os atores, conforme demonstra um documentário extra, enfrentaram juntos uma rotina de ensaios em busca de um tom uniforme, sem ser comum. O mesmo ocorre com a fotografia de Edgar Moura, que filtra a luz do Rio para criar um clima contraditório, sufocante e acolhedor, de noir tropical, em que homens engomados e mulheres de carmim embalam suas paixões ao som de sambas-canções e boleros certeiros como a flecha de Robin Hood. Um mundo Nelson Rodrigues.

Não bastasse a qualidade dos 40 episódios, o DVD A Vida Como Ela É... traz entre seus extras uma entrevista antológica com Nelson Rodrigues e Otto Lara Rezende (a entrevista com Otto está no DVD 2, e não no 1, conforme indica a impressão nos discos). Amigos figadais, Nelson e Otto deixaram para a história trinta minutos da mais pura inteligência, do mais refinado humor, da mais alta camaradagem. Não, não se trata de uma troca de elogios de fazer os idiotas da objetividade lamberem os beiços. O que a entrevista registra está além do conteúdo, da aplicação exemplar da língua portuguesa, da sedutora capacidade de raciocínio e de produção de pensamentos lapidares. O que a entrevista registra é um outro tempo, tempo de outras preocupações, de outras falas, quando a televisão ainda não havia envelopado as entrevistas nas regras fixas dos talk-shows.

Otto, com a elegância habitual de homem refinado e erudito, esforça-se por conduzir a conversa num tom jornalístico, atento aos temas e questões da pauta (o lançamento da fundamental coletânea de crônicas de Nelson Rodrigues, O Reacionário). Nelson, rouco, castigado pela vida, recém-sarado de uma febre de fazer as lavas do Vesúvio parecerem neves do Kilimanjaro, dificulta ao máximo o papel do interlocutor. Logo no início, Otto pergunta se Nelson, um obcecado pela morte, já teria pensado em suas últimas palavras. Depois de relatar que após sair de um coma profundo de 15 dias havia concluído que a alma é imortal, Nelson dispara: “Minhas últimas palavras serão: Que boa besta é o Marx!” Discussões sobre a importância de ser velho, a ignorância dos cretinos fundamentais, e a falta de amor das grã-finas de narinas de cadáver pelo Brasil completam o bate-papo informal e bem-humorado. Ao ser indagado sobre se o título do livro era uma forma de atrair a atenção para si, uma “técnica de publicidade”, Nelson soa atualíssimo. “Não, meu caro Otto, é uma técnica de sinceridade”. De babar na gravata.


O DVD

A VIDA COMO ELA É...

Brasil, 1996
Direção: DANIEL FILHO
Fotografia: EDGAR MOURA
Elenco: MALU MADER, CASSIO GABUS MENDES, DEBORA BLOCH, CLAUDIA ABREU, FERNANDA TORRES, GUILHERME FONTES
Duração: 450 minutos (40 episódios)
Região do DVD: Multi-região
Formato de Tela: Standard
Idiomas: Português
Extras: Menu Interativo - Entrevista - Documentário - Acesso imediato aos capítulos - Bastidores - Depoimentos

Distribuidor: Som Livre


FONTE:http://criticos.com.br/?p=163&cat=5#sthash.I2H24SpC.dpuf

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