domingo, 27 de março de 2016

Ver, o verbo do cinema

Por  Nei Duclós 

Três grandes cineastas expõem o olhar de personagens em conflito com as imposições econômicas, sociais e culturais dispostas nos cenários e nas narrativas



Filme é o que enxergamos, inclusive a elipse, quando a cena nos remete a algo fora da tela. O exercício de ver serve para abordar o cinema pelo que ele é, quando estão dispostos os elementos chave para decifrarmos o que é visto. Limpar a obra da Sétima Arte de intenções adventícias é uma atividade valiosa, principalmente quando assistimos o trabalho de cineastas como Kubrick, Spielberg ou Chaplin. Ou quando conseguimos nos esclarecer sobre filmes aparentemente banais que provocam insights importantes para o trabalho ensaístico. Nesta coletânea de textos, aprofundamos essa percepção sobre o que o cinema nos mostra de mais impactante.

Charles Chaplin

Você consegue ver agora? Pergunta o vagabundo para a florista. Sim, agora eu consigo, diz ela, decepcionada com o que vê. Esse insight provocado pela ruptura da cegueira, fonte de ilusões de quem, no escuro, imagina um romance com um sujeito rico e que no fim era um mendigo fingidor, é um dos momentos mais importantes da sétima arte. Por ser uma absurda obra-prima absoluta, criada arduamente pelo gênio de Charles Chaplin, que inventou soluções cinematográficas deixando a equipe esperar por semanas a fio enquanto meditava sobre a melhor saída, “Luzes da Cidade” (1931) pode ser lida de várias formas em muitas camadas. Prefiro ver tudo como metáforas. É o caminho mais ó­bvio, e, portanto, irresistível. Isso não significa que vamos nos entregar a obviedades.

A história é conhecida: ela esperava que seu benfeitor, que pagou pela operação dos olhos, fosse alguém como o freguês rico que chegou num carro de luxo para fazer uma encomenda. Mas o que ela tem na sua frente é um mendigo, arrasado pela prisão provocada por um equívoco, um assalto cometido por dois ladrões, atribuído ao pobretão. O dinheiro conseguido foi doado por um milionário bêbado que sofria de amnésia alcoólica — a culpa da má distribuição de renda dando um intervalo no egoísmo e que volta ao normal na sobriedade. Mas a polícia achou que tinha sido roubo e prendeu o mendigo.

A florista (interpretada por Virginia Cherrill) que enfim enxerga, livre da ilusão provocada pela cegueira, onde construiu suas fantasias, é como o espectador que na sala escura enxerga o que a indústria do espetáculo lhe mostra. O espectador se projeta na tela e é protagonista do seu sonho. A florista se vê casada com um homem rico, mas não sabia que recuperar a visão tinha um contraponto, o de enfim ver o que a realidade lhe aprontava. Ela tinha sido alvo do amor e da solidariedade de alguém sem posses mas cheio de sentimento. Deixou-se seduzir porque imaginava estar assediada pela riqueza. Mas a verdade era outra.

As soluções cinematográficas são poucas e foram criadas em sua maioria no cinema mudo. Vemos a repetição delas a toda hora. A súbita revelação provocada pelo toque nas mãos é um lugar comum no cinema depois que Chaplin inventou essa cena. A confusão provocada pela porta de automóvel que se fecha, batida pelo mendigo, e que acaba iludindo a florista pelo som é talvez uma alfinetada de Chaplin no cinema sonoro: cinema é imagem e o som poderá apenas confundir. O que vale não é o barulho dos carros, as falas dos personagens, os ruídos da riqueza, e sim as formas de luz e sombra que aparecem na tela. Cinema é apenas o que vemos, não o que imaginamos ou ouvimos.

Em poucos minutos, neste filme, Chaplin faz talvez uma das cenas mais contundentes do cinema noir. É quando ele foge dos assaltantes apagando a luz da mansão do milionário onde foi recebido. Apenas alguns feixes de luz pipocam no ritmo da sequência, com sombras ameaçadoras perseguindo o protagonista, e um revólver tentando caçá-lo no escuro. A sombra como refúgio e a luz como ameaça: na alternância ou convivência desses dois elementos do claro-escuro, Chaplin constrói uma situação de perseguição, medo e suspense, pois a salvação da florista cega dependia do dinheiro que ele trazia no bolso naquele momento.

Há que se destacar também, entre inúmeras sacadas, a antológica cena da luta de boxe, um show coreográfico onde o malabarista Chaplin nos encanta com sua performance perfeita. Não é apenas hilária, não é apenas irresistível, não é apenas a melhor cena de boxe do cinema: é obra de gênio, e nunca é demais repetir isso. Que jamais tenha ganhado um Oscar diz tudo sobre a indústria do cinema, que apostou no mesmo e puniu a originalidade.

Ver, em Charles Chaplin, nos liberta da ilusão de uma sociedade dividida em classes sociais e nos devolve a humanidade perdida na cultura do dinheiro. O mendigo que é também trabalhador ocasional, autônomo, recolhendo excrementos de animais na rua, é o único capaz da solidariedade numa selva de falsos sentimentos, onde as flores são compradas, assim como os relacionamentos. A florista vive dessa ilusão de amores que se conquistam por mimos caros, mas acaba recebendo uma lição memorável: a de que a clareza do olhar sobre o coração alheio vale mais do que todas as mentiras sedutoras do mundo.

As luzes da cidade confundem o olhar. A luz do olhar sem a sombra do egoísmo enxerga o essencial.

Stanley Kubrick

Stanley Kubrick nos ensina que ver sem apoiar-se em parâmetro algum, ver pela primeira e única vez, ver como se o espectador estivesse nu diante do cosmo, é saber. Rever é arquivar, é perder esse tesouro do primeiro olhar, é desdobrá-lo, tentar entender o que foi visto. No filme “De Olhos Bem Fechados” (Eyes Wide Shut), o médico interpretado por Tom Cruise não pode ter acesso ao que a elite vê. E o que a elite vê? A própria elite, que não pode ser desmascarada. Ele descobre isso por meio do seu amigo pianista, que é contratado para uma festa em vasta mansão, desde que toque com um lenço tapando os olhos. Estão proibidos de ver, portanto, de saber. O protagonista então engana a segurança e vê o que jamais poderia ver, sabe o que nunca deveria ter sabido. Ver, portanto, é uma questão de classe social. Para o resto, é preciso cobrir o olhar com todo o tipo de repetição, para que se turve a percepção, para que nunca vejam e, portanto, saibam. Quem vê, tem poder.

Os anos 1960 pegou a elite desprevenida. Via-se pela primeira vez um monte de coisas. A saída foi enquadrar a criação que emitia a luz para o primeiro olhar. Entrou em cena o repeteco de massa, do qual a TV aberta brasileira é o mais sinistro exemplo. Só é permitido mostrar o já visto e se for algo inédito, é preciso vestir a novidade de todas as formas, para que tome uma forma reconhecível. Não nos deixam ver as imagens de Titan. Dizem antes que o satélite de Saturno é laranja, que tem mar de metano, ventos de tungstênio e outras bobagens. Deixem-nos ver, como Kubrick fez. Fui a um cinema da Cidade Baixa em Porto Alegre, a cidade da cultura, e vi então “2001” pela primeira vez. Nunca mais me refiz daquele susto. Pensei que aqueles homens-macacos do início do filme eram reais, e não atores. Vai ver, eram mesmo de verdade. Aquele travelling longuíssimo da nave em direção a Júpiter, que não acabava mais, marcou para sempre o cinema. “Star Wars” usou outro plano, um contra-plongée (como me ensinaram num curso de cinema que fiz ainda no ginásio, obra de um irmão marista que nos revelou pela primeira vez que os filmes não eram obra de atores, mas de diretores, o que é uma meia verdade). Mas no fundo é a mesma coisa. Vai fazer filme sobre o espaço? São aquelas roupas, aquela estética, aquele visual. Até o horrível “Cowboys do Espaço” (o tropeço de Clint Eastwood) usa essas soluções. É porque todos precisam repetir o que Kubrick fez, pois aprenderam com ele, mas não se dão conta que o perdem, pois o que realmente importa é aquela primeira percepção.

Em “O Iluminado”, Jack e o filho veem os fantasmas, só eles sabem o que está acontecendo. O terror da mulher é que ela não vê, apenas enxerga no que o marido se transformou, mas não sabe o que está por trás dessa mutação. Jack vê, e essa é a sua maldição. Vê não porque não tenha diversão, vê o horror insepulto no hotel vazio porque perdeu a capacidade de enxergar com a criação. Como não imagina, acaba se deparando com a brutal revelação dos assassinos fantasmas, que o orientam sobre o que deve fazer. Jack refugiou-se no hotel para não ver mais nada a não ser o que criaria no seu romance. Mas como ele vedou toda a capacidade de enxergar, ficou confinado no lugar que nada tinha a mostrar. Por isso ele consegue ver o que está por trás das paredes, o que se esconde embaixo do piso, o que desce do teto, o que escorrega pelos corredores. Somos transportados para essa maldição em Kubrick, o de ver o que nunca tínhamos visto, portanto o que jamais imaginávamos ver. No fundo não queríamos ver o que não sabemos, mas somos obrigados a isso pela câmara de Kubrick. Seu desafio foi o maior de todos, pois precisava impactar um público viciado em ver, cansado de tanto ver. A indústria audiovisual tinha chegado a sua saturação. Godard partiu para a ruptura, desistindo da intensificação do ver e levou todo mundo para a reflexão, fruto de sua formação literária. Godard disse: vejam, vocês estão vendo, aprendam a ver. Kubrick não é didático. Kubrick diz: veja só, um retângulo escuro e alto que emite um ruído e aparece no meio dos macacos e depois enterrado na Lua. Veja, um mar de sangue inunda o corredor. Vejam essas gêmeas fantasmas, esse rosto retorcido de Jack se anunciando depois de quebrar a porta com o machado. Godard explica: você está vendo. Kubrick te joga numa praia distante num mar de metano, sob fortes ventos de tungstênio. Tente respirar e terás ácido sulfúrico.

Em “Spartacus”, a revolta começa quando o grande escravo negro vê a elite gargalhando e pedindo a morte do adversário vencido. O escravo ousou levantar o olhar até o camarote onde estavam os poderosos e viu lá, pela primeira vez, a quem servia e o que ele, escravo, representava de verdade. Essa revelação desencadeou a revolta. Os escravos então optam pelo que sabem ver: querem ter a vida de senhores e fazem destes os novos servos. Spartacus orienta o olhar para outra direção: vamos formar um exército, diz ele e com essa estratégia quase derruba o império. O poder não vê Spartacus no final, mas tenta. Pergunta quem é o líder da guerra. Todos então se levantam e se anunciam, numa cena que arranca lágrima de rocha. Os escravos vencidos ludibriam o olhar do poder, não revelam o que a elite quer ver para que a vitória seja completa. Spartacus então se transforma em todo o povo submetido à escravidão. O poder vê a massa como um só líder e tem medo. Manda crucificar todo mundo. Até hoje agonizamos junto com Kirk Douglas, na cena final de mais esse filme de Kubrick, o cineasta da libertação do olhar. A versão de que a primeira descida do homem à Lua em 1969 é obra de Kubrick serve para múltiplas interpretações. A fraude revela a força do poder: ele submete o libertador do olhar, que se transforma num algoz, pois impõe a imagem de outro mundo por meio de truques. Ao mesmo tempo, essa versão pode ser vista como um reforço do que dizemos aqui: vimos a Lua pela primeira vez pela mão de Kubrick, se for correta a história que rola na internet. Em vez de ser uma fraude, é a glória: Kubrick teria levado o olhar para o outro lado por meio da imaginação e da ciência. No fundo, é o que deveria ser sempre. Prefiro Kubrick ao noticiário da tevê (me vê? Ou me obriga a ver daquele modo?). Kubrick mente menos.

Steven Spielberg

“Guerra dos Mundos”, de Steven Spielberg, é uma charada cinematográfica que propõe o verbo ver como a chave do enigma. Os invasores surgem no olho do furacão. Descem até suas máquinas enterradas no chão, ou seja, onde não eram vistas, apesar de estarem situadas bem no miolo da civilização (Nova York, Boston, especialmente a América). Para escapar, era preciso não ser visto. Para evitar que eles avançassem sobre o olhar inocente, foi preciso tapar os olhos da criança. Quando as máquinas emergem do solo, a população inteira está de olho no que está acontecendo.

A fabulosa sequência inicial, quando Tom Cruise (ator talentoso, apesar das inúmeras bobagens das quais participou) procura ficar perto dos acontecimentos, de olhos bem abertos, assim como o resto dos habitantes do seu bairro, diz tudo sobre o filme. Em nenhum momento se desvia o olhar, só para fugir. Escapar é ficar longe do alcance daquele olho gigante da máquina invasora. A solução do enigma fica a cargo de Tim Robbins, impressionante como sempre (não lembro de nenhuma performance ruim desse grande ator): quem sobrevive, nas ambulâncias onde trabalha, são apenas aqueles que ficam olhando firme para o paramédico. Olham e pensam, diz o personagem de Tim, um sobrevivente que, para escapar, se esconde num porão, procura ficar invisível.

Mas ele comete um erro: quer enfrentar o inimigo poderoso com as velhas armas, com as lições da América pioneira. Tom Cruise também comete o mesmo erro, pois coloca uma arma na cintura, que só serve para apontar contra seus semelhantes, jamais para o invasor, que não é atingido pelas armas tradicionais. A bola de beisebol que quebra a vidraça no início do filme, fruto do desentendimento entre Tom e o filho, abre um olho no vidro. É quando o pesadelo começa: alguém nos viu esse tempo todo e vai atacar. Qual a saída, além de ficar fora do alcance do olhar mortal? É enxergar o que não é visto a olho nu. É lá, onde mora a resistência, oculta por bilhões de ano de evolução genética, que está a força para derrotar os aliens.

A verdadeira guerra é entre o mundo visível e o invisível. Ou entre o mundo oculto que de repente mostra a cara e o mundo aparente e explícito (para os olhos) da vida diária. A guerra inverte a percepção: o que estava fora do olhar torna-se hegemônico, e a civilização que nos conforta com suas coisas visíveis praticamente desaparece.

Na cena impressionante em que um periscópio vivo e em forma de cobra tenta enxergar quem se esconde no porão, os seres de outro planeta ficam olhando para uma foto. Passam de mão em mão. Eles enxergam apenas o visível. Não ver o que está sob a toca do universo invisível foi a sua ruína. Tom só enxerga a dimensão real do perigo quando a câmara de televisão mostra como os invasores agem: descendo pela luz (visível) eles chegam até a máquina (oculta) e fazem a perseguição com um grande olho central dominando as ações, e olhos acessórios por meio dessas cobras/periscópios que rastreiam os habitantes apavorados.

Um detalhe, também na primeira sequência: o olhar catatônico de quem viu demais nos remete aos filmes de zumbis e de invasão de alienígenas dos anos 1950 e 60. É uma referência, e uma explicação, para esse olhar sonâmbulo, zumbi, que permeou nossa infância. Ver torna-se um pesadelo e o choque desse contato transforma os humanos em seres pasmos diante do inimaginável.

Li algumas críticas sobre o filme e os equívocos são recorrentes. Primeiro, acusam Spielberg de americano. Mas o que ele mais poderia ser? A antropologia nos ensina que precisamos analisar os fatos e as culturas nas suas especificidades. Spielberg jamais será outra coisa do que um americano. Também dizem que ele usou o velho truque do deus ex-maquina, a intervenção que vem de outro lugar, para resolver o problema. É exatamente aí que reside a qualidade do filme: a coerência com que ele desenvolve e cria o desfecho da trama é que é importante. Também invocam outros filmes como melhores do que este. Quando lançou “Tubarão” e suas outras obras, caíram de pau em cima dele. Agora invocam o que malharam para criticar “Guerra dos Mundos”. É muita estreiteza de visão.

Spielberg é um criador poderoso e nos legou imagens que vão ficar para sempre. “Guerra dos Mundos” é um filme assustador que merece ser visto pelo que ele é: um exercício em cima da mais importante vetor do cinema, que é o verbo ver. Ver, em Spielberg, neste filme, é uma porta para a sua permanência como cineasta do primeiro time. Americano, por certo. Profun­damente comercial, naturalmente (o que é coerente com sua cultura). E com a força e a profundidade dos verdadeiros criadores. O que não é pouco, dada a enorme quantidade de asneiras com que nos brindam todos os dias.


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