segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

BETTY DAVIS

Mulher, negra e feminista: Betty Davis foi a fagulha para o nascimento do Jazz Fusion e revolucionou o funk e o blues


Por  Vitor Paiva


A história oficial é contada pelos vencedores. Por isso, se sacudirmos a memória do mundo, descobriremos sempre algum herói ou heroína que injustamente acabou deixado pra trás. Num momento como o atual, no qual a afirmação da força feminina e o protagonismo da mulher cada vez mais é justamente exigido e sublinhado, parece ser o timing perfeito para redescobrirmos ou enfim tomarmos conhecimento de uma dessas figuras notáveis, que permanece soterrada sob o racismo, o ostracismo, a sombra de outros homens e o peso da própria história: é preciso, antes tarde do que tarde demais, dar a devida atenção à obra e à vida de Betty Davis.


Se a apresentássemos como simplesmente a segunda mulher de Miles Davis, estaríamos cometendo uma tremenda injustiça, ainda que a informação esteja correta. Se disséssemos que ela foi responsável pela virada do maior trompetista de todos os tempos na direção do Fusion, misturando o jazz com o rock e o funk, seria a mais pura verdade. Ainda assim, não estaríamos nem de longe sendo justos com a história de Betty.
Podemos chamá-la de um ícone histórico ainda a se descobrir; uma desbravadora, presa na vanguarda da música negra do final do início dos anos 1970, uma força feminina em um universo masculino. Nas palavras do próprio Miles, registradas em sua autobiografia de 1989, “Se Betty estivesse ainda cantando hoje, ela seria como Madonna, ou como Prince, mas como uma mulher. Ela deu início a tudo isso. Ela simplesmente estava a frente de seu tempo”.


A referencia à Madonna e Prince é precisa, afinal, tudo na musicalidade e na própria vida de Betty vinha de sua força sexual. Mais de uma década antes de Like a Virgin ou Purple Rain – e pouco mais de uma década depois de Elvis trazer a provocação sexual para a ribalta da música popular – Betty cantava, sentia, oferecia e ilustrava a sexualidade direta, provocadora, explicita e feroz sobre a qual Madonna e Prince construiriam os artistas que foram.

A mesma sexualidade explicita que, aliada ao seu talento como compositora (sim, ela escrevia a maioria das suas canções), sua voz rasgada e seu balanço, forjou sua personalidade, foi também a força que a impediu de ser reconhecida como artista. Nem os EUA nem o mundo estavam prontos para, em 1973, aceitar uma personagem tão desafiadora e explícita quanto Betty Davis foi. Muitos de seus shows foram boicotados por grupos religiosos e até cancelados, e sua estrela acabou nublada pela controvérsia que provocou.
A verdade é que Madonna, perto de Betty, soa mais como uma adolescente descobrindo o sexo (mais como uma virgem) do que propriamente com o furacão erótico de Betty. E nem falem em Lady Gaga: é mais fácil pensarmos em alguma dama do funk carioca para uma comparação mais possível com a força provocadora de uma cantora como Betty Davis.
Ainda assim e apesar de tudo isso, é impossível não falar de sua influência sobre a carreira de Miles, tão grande que não seria exagero dizer que, sem ela, o maior nome da história do Jazz haveria permanecido soterrado sob os escombros de seu próprio êxito. Feito um fóssil de um gigante do passado, quando Miles e Betty, então uma modelo de 23 anos, se conheceram em 1967, o trompetista vivia um momento bastante difícil em sua carreira.


Desde que havia revolucionado o jazz diversas vezes ao longos da década de 1950, com clássicos como Birth of the Cool, Sketches of Spain, e principalmente Kind Of Blue (indiscutivelmente o maior disco da história do Jazz), tanta coisa havia acontecido a partir do surgimento do rock que, por maior que Miles fosse, sua música se encontrava resignada a certo ostracismo anacrônico a que os clássicos estão sempre sujeitos. Foi preciso que Miles conhecesse e se apaixonasse por Betty para que pudesse realizar a maior transformação estética de sua carreira – e voltar a revolucionar o jazz, sob influência principalmente de Jimi Hendrix e Sly, do Sly & The Family Stone, ambos apresentados tanto pessoalmente quanto musicalmente a ele por sua segunda mulher.

Betty conhecera Hendrix e Sly durante seu período como modelo, e viu em seus jovens e geniais amigos músicos a faísca possível para reacender o barril de pólvora que havia em Miles e seu trompete. As guitarras distorcidas e cósmicas de Hendrix e o forte funk experimental de Sly & The Family Stone levaram Miles a criar o seminal álbum Bitches Brew, de 1970, um disco elétrico, misturando sonoridades diversas e orientando o jazz na direção de um rock solto e improvisado, que viria a se tornar seu primeiro disco de ouro, e peça essencial para a fusão entre rock, funk e Jazz.

Em suma, quem quiser fique à vontade para afirmar que Betty Davis também inventou o Fusion.

O casal se separou em menos de um ano, com Miles acusando Betty de ter tido um caso com Hendrix (fato negado por ela até hoje) e, ainda que tivesse realizado já uma série de maravilhosas gravações no final dos anos 1960 (algumas inclusive produzidas por Miles) foi só em 1973 que a carreira de Betty de fato começou – com seu disco de estreia, batizado com seu nome. Até então, ela era conhecida como a dona do rosto na capa do disco Filles de Kilimanjaro, lançado por Miles em 1968.
Betty e Miles no enterro de Jimi Hendrix

A maioria das faixas no disco Betty Davis foi escrita por ela mesma, tratando de sexo, poder, frustração e desejo feminino com uma franqueza radical e forte. Se o disco é até hoje considerado fundamental para o funk rock, e formador de muito do que viria ser a música negra da década de 1970 e a música pop da década de 1980, a atitude abertamente erótica e provocadora de Davis era demais para a época.

A ideia de uma furiosa rainha do funk, uma indomável pantera negra com um microfone na mão, cabelo afro, roupas coloridas, botas vertiginosas e uma beleza singela e agressiva, elevando o funk a extremos e liderando uma banda formada por homens, definitivamente não era algo fácil de se digerir no inodoro cenário cultural americano do início da década de 1970.
Apesar disso, em 1975 Betty assinou com a lendária gravadora Island Records, para lançar o disco planejado para fazer decolar de ver sua carreira: Nasty Girl (Garota perversa, má, suja). O disco é, na mesma medida, de qualidade impecável e conteúdo bastante arriscado.
Destaca-se a espetácular balada You and I, escrita em parceria com Miles (já seu ex-marido) e com arranjos assinados por ninguém menos que o maestro Gil Evans. Apesar da dedicação de Betty e da enorme promoção feita pela gravadora, Nasty Girl não alcançou o sucesso esperado, e a resposta para o enigma parece ser a mesma que perseguiu Betty ao longo de toda sua carreira: sua música era pesada demais para as rádios negras, e funky demais para as rádios brancas (e sua temática avançada demais para todo mundo).
O fracasso comercial de Nasty Girl foi demais para Betty, que enfim desistiu da carreira e se mudou para Pennsylvania, onde vive até hoje, reclusa e misteriosamente silenciosa a respeito de seu passado. Seus discos e sua postura, porém, desde o início dos anos 2000 voltaram a ser reconhecidos pelo público e crítica. Um documentário sobre ela está sendo preparado, e aparentemente enfim seu lugar no olimpo da música negra parece estar sendo garantido.


Há quem diga que a imagem de Betty se sobrepunha a sua música. Outros afirmam que ela não conseguiu carregar o fardo do hype criado ao redor de seu nome pela sombra de outros nomes. O que parece se comprovar, com o início da justa (ainda que tardia) retomada de sua importância, é que ela era simplesmente uma dessas artistas que ia ao limite, a fim de expandir nossas noções do que é possível, superando barreiras e provocando a todos num solitário desafio musical, pessoal, emocional, racial e feminista – que teve de esperar por quarenta anos o mundo correr atrás para enfim sentir sua própria força como artista.


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