quinta-feira, 7 de setembro de 2017

THE YELLOW KID


Era uma vez um Garoto Amarelo




por  Célio Heitor Guimarães


Os quadrinhos americanos vivem uma fase estranha (e perigosa). Sem saber o que fazer diante dos novos meios de comunicação e entretenimento e da perda do mercado, os editores enlouqueceram. E inventam reviravoltas que não apenas estão tirando a essência dos heróis de papel como poderão ocasionar o seu extermínio. É, pois, preciso contar essa história antes que ela acabe.

De fato, tudo começou há mais de 120 anos, com um menino carequinha, de orelhas de abano, vestindo um ridículo camisolão que lhe ia até os calcanhares. Era Yelow Kid ou o Garoto Amarelo, audaciosa criação de um jovem chamado Richard Fanton Outcault, estampada, pela primeira vez, no dia 16 de janeiro de 1896 (ou teria sido em 1895?), no suplemento dominical/ infantil colorido do New York Sundae World, então dirigido por Joseph Pulitzer, um imigrante de origem húngara, que se tornaria nome do mais importante prêmio jornalístico dos EUA.

Pulitzer dividia o comando do império jornalístico norte-americano, no final do século 19, com outro magnata da imprensa, William Randolph Hearst, que viria a inspirar o “Cidadão Kane”, de Orson Welles, do New York Journal.

Ambos achavam que a guerra entre os jornais seria decidida aos domingos em favor de quem dominasse a impressão a cores. Estavam cobertos de razão.

O World, de Pulitzer, largou na frente. Em 5 de abril de 1895 estampou dois desenhos de Richard Outcault, sob o título “At the Circus in Hogan Alley”. Os personagens eram moleques das ruas pobres de Nova York. No meio da turma, logo se destacaria um garotinho careca, cabeçudo e orelhudo, metido num camisolão. A partir de 1896, Outcault assumiu a periodicidade semanal do personagem e introduziu nos desenhos a sequência e os primeiros balãozinhos das falas, que se tornariam marcas fundamentais das HQs.

Conta o prof. Francisco Araújo – o gaúcho que transformou as histórias-em-quadrinhos em matéria acadêmica, na Universidade de Brasília, no ano de 1970 – que, quando o molequinho surgiu nas páginas do poderoso diário novaiorquino, o alvoroço foi enorme. A meninada adorou a novidade. Já os “coroas” nem tanto. A princípio, tentaram aparentar certa indiferença; depois, passaram a considerar as travessuras de Yellow Kid um “mau exemplo” para as crianças. Na verdade, como bem disse o jornalista Sérgio Augusto – outro pioneiro na área, por haver sido o primeiro crítico de gibis da imprensa brasileira, também na década de 70 –, a birra dos leitores mais velhos “não era, exatamente, com as peraltices dele, mas com o ambiente em que circulava e com o seu jeito esmolambado”. Não demorou muito, porém, para que os adultos acabassem sendo pilhados apreciando a animada figurinha por sobre os ombros dos filhos.

Estava iniciada a era dos quadrinhos – então “funnies” (de “funny”, engraçado em inglês), já que as situações iniciais eram sempre hilariantes.

É certo que antes de Yellow Kid, vários foram os personagens ilustrados espalhados por publicações da época, na Europa e mesmo nos EUA. Entre eles, os célebres Max und Moritz, surgidos na Alemanha, em 1865, por inspiração do artista Wilhelm Busch. O quadrinhólogo Álvaro de Moya, recentemente falecido, cita um professor suíço, que, já em 1827, desenhava figuras no quadro-negro para entreter seus alunos e depois resolveu publicar esses desenhos, nos quais narrava histórias. Aliás, há quem diga que Richard Outcault apenas teria aproveitado a trilha aberta por Ursinhos e Tigrinhos. A afirmação, contudo, é bastante discutível, e a maioria dos pesquisadores prefere creditar ao pai do Garoto Amarelo a façanha de ter inaugurado uma nova forma de comunicação e expressão gráfica.

Originalmente, o personagem de Outcault não deveria ter sido impresso em amarelo, mas na falta de indicação do autor, os gráficos do World escolheram essa cor. O herói também não tinha nome, inicialmente, sendo batizado pelo público, encantado pela camisola do menino, impressa em amarelo.

Mas Yellow Kid exibiu desde logo uma irreverência crítica, desusada na imprensa de então. Para tanto, utilizava-se exatamente de seu camisolão panfletário, onde o autor faria desfilar as primeiras sátiras e as primeiras observações críticas aos usos e costumes da época.

Nesse sentido é também interessante salientar a iniciativa de Richard Outcault: em uma sociedade eminentemente capitalista, ele procurou ambientar a sua criação exatamente nas zonas mais pobres da cidade de Nova York, oferecendo-lhes sempre uma atmosfera de alegria quase irreal. Seus quadros, aliás, eram invariavelmente compostos de gente simples, varredores negros, chineses com seus trajes típicos e longas tranças, menininhas de laços nos cabelos e animais domésticos (cães, gatos, papagaios, etc.).

Se Richard F. Outcault pretendera apenas testar junto ao público uma nova modalidade de distração humorístico-visual, acabou encontrando o sucesso e um bom resultado financeiro.

Algum tempo depois, ele se transferiu para o Journal, deixando Yellow Kid seguir a sua trajetória no World, pelo pincel de outro artista. Na ausência de legislação a respeito, de copyright e de syndicates, não houve como prendê-lo. Da disputa pelo personagem, no entanto, surgiria a denominação “imprensa amarela” (“marrom”, no Brasil), para designar o jornalismo sensacionalista.


P.S.Este texto é parte do primeiro capítulo daquele livro que comecei a escrever, diagramar e montar em 2003 – HQ, A Arte que está nos Gibis – e que jamais será publicado.


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