quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

O DEMÔNIO DA NOITE



Por: Rodrigo Carreiro


Um sofisticado assaltante de lojas de equipamento eletrônico mata investigador a sangue frio e vira objeto de uma caçada policial minuciosa em Los Angeles. Ao filmar essa história com um estilo seco e objetivo, quase documental, o diretor Alfred L. Werker conseguiu demonstrar como a estética estilizada e quase expressionista do filme noir podia funcionar dentro de gêneros diferentes. Sem saber, ele estava revolucionando o thriller de perseguição, pois “O Demônio da Noite” (He Walked by Night, EUA, 1948) agregava um nível de realismo inédito ao estilo. Por razões diversas, o filme acabou fadado a um estágio injusto de semi-obscuridade, merecendo menções por ter inspirado a famosa série “Dragnet” (primeiro na rádio, depois da TV). Trata-se de uma obra que merece ser revalorizada.
Pode-se atribuir esse fenômeno, de certa forma, à trajetória errática do homem que a assina. Alfred L. Werker jamais se destacou em Hollywood, e seu nome não sobreviveu bem ao teste do tempo. Como a maior parte dos cinéfilos guia seu processo particular de redescoberta dos grandes clássicos do passado pelo nome dos diretores, “O Demônio da Noite” costuma passar despercebido a muita gente. Um dado importante, porém, pode corrigir o problema: reza a lenda que boa parte das seqüências do longa-metragem de 1948 foi dirigida por Anthony Mann, que se tornaria um dos maiores nomes de Hollywood na década seguinte.

Como Howard Hawks e John Ford, Anthony Mann foi um cineasta clássico, preferindo narrativas limpas e sem muitas firulas visuais. Essa é uma das maiores qualidades de “O Demônio da Noite”: é um filme eletrizante, alucinante, mais interessado em radiografar o processo dinâmico de investigação de um rumoroso caso verdadeiro do que em criar drama a partir de uma história de ficção. De certa forma, “O Demônio da Noite” aspira algo diferente da ficção, como deixa claro o letreiro que abre o filme. O objetivo dos realizadores era narrar, com o máximo de fidelidade possível, os procedimentos policiais para capturar um veterano de guerra que matou várias pessoas e aterrorizou Los Angeles durante o ano de 1947. Objetivo cumprido com perfeição.

Quase todo o filme enfoca os esforços da polícia para identificar e capturar o assassino. A única exceção é a seqüência de abertura, que mostra o motivo da perseguição tão obstinada: o assassinato de um policial, algo que sempre melindra os colegas do morto, fazendo-os se desdobrar para prender o responsável no menor tempo possível. A cena é curta e impactante, em parte devido à fotografia cheia de sombras e fortes contrastes, egressa do film noir. Pego em flagrante por um investigador ao tentar arrombar uma loja de artigos eletrônicos, o criminoso acerta três tiros no detetive para poder se safar, e foge em seguida. Com a morte do colega, os policiais formam uma verdadeira força-tarefa, na tentativa de conseguir uma pista concreta que possa levar ao criminoso.

O trabalho é duro, dificultado ainda mais pelo perfil do matador. Este é um homem solitário e metódico, o que complica bastante as investigações. Ele não deixa impressões digitais nos locais dos crimes, muda sempre o horário e a forma de agir, e não possui nenhuma conexão com o submundo, operando sempre sozinho. Dessa forma, os policiais são obrigados a investigar exaustivamente, utilizando todas as ferramentas disponíveis, conduzindo dezenas de interrogatórios com suspeitos e testemunhas e usando as mais avançadas técnicas forenses disponíveis.

A objetividade do filme é tão grande que nenhum dos personagens, sem exceção, tem vida própria; todos são mostrados apenas e exclusivamente durante a investigação do caso. Isso é tudo o que interessa ao diretor. Nessa escolha, é possível perceber alguma influência do miolo do filme alemão “M – O Vampiro de Düsseldorf”, de Fritz Lang. Os momentos mais lembrados do longa de 1930, são a abertura poética e o “julgamento” teatral que o encerra, mas Lang recheou a produção com longas seqüências que mostravam as técnicas policiais utilizadas na investigação. É esse o enfoque que interessa a Alfred L. Werker. A narração em off, quase jornalística, reforça ainda mais o estilo documental.

A decisão mantém o filme um tanto frio, sem permitir o envolvimento emocional do espectador com nenhum personagem. Por outro lado, dá à trama um sentido de urgência realmente impressionante. Nesse sentido, é possível sentir uma influência indireta de “O Demônio da Noite” em trabalhos que seriam famosos no futuro, como os thrillers “Seven” e “O Silêncio dos Inocentes”, e também na série de TV “C.S.I.”, que mostra um grupo de peritos científicos analisando cenários de crimes para descobrir quem os cometeu.

O maior destaque individual de “O Demônio da Noite” é a interpretação minimalista de Richard Basehart, no papel do criminoso. Basehart enfatiza o caráter solitário do homem, mastigando os raros diálogos com traços de mau-humor e dotando-o de olhar e risada maníacos. Além disso, o clímax do longa-metragem, passado nos esgotos de Los Angeles, cita o noir “O Terceiro Tiro” de forma empolgante e cheia de energia. Grande filme.


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O Demônio da Noite (He Walked by Night, EUA, 1948)
Direção: Alfred L. Werker
Elenco: Richard Basehart, Scott Brady, Roy Roberts, Jack Webb
Duração: 79 minutos


CINE REPÓRTER


segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

RASTROS DE ÓDIO


The searchers, 1956, 119min. Direção: John Ford. Roteiro: Frank S. Nugent, baseado no romance de Alan LeMay. Fotografia: Winton C. Hoch. Montagem: Jack Murray. Música: Max Steiner. Produção executiva: Merian C. Cooper. Elenco: John Wayne, Jeffrey Hunter, Natalie Wood, Vera Miles, Henry Brandon. Estreia: 13/3/56


Gênero americano por excelência, o western tinha no cineasta John Ford seu representante máximo e no ator John Wayne sua imagem absoluta. Apesar de terem trabalhado juntos por diversas vezes, é "Rastros de ódio", lançado em 1956, que mantém-se como a obra máxima de sua colaboração. Acusado de racista à época de seu lançamento, é hoje considerado a obra-prima de Ford, o diretor mais vezes premiado com o Oscar da categoria (quatro vitórias, nem todas por faroestes, mas todas por filmes unanimemente incensados por crítica e público).

"Rastros de ódio" já começa antológico. A porta de um rancho se abre, a silhueta de uma mulher é recortada contra um belo pôr-do-sol e Ethan Edwards (John Wayne) entra em cena. Estamos no Texas em 1868 e apesar da Guerra de Secessão já ter acabado uns bons anos antes recém o soldado da Confederação está regressando para a família. A família, no caso, é seu irmão, Aaron (Walter Coy), a cunhada Martha (Dorothy Jordan, esposa do produtor Merian C. Cooper), as duas sobrinhas Debbie e Lucy e Martin Pawley (Jeffrey Hunter), um mestiço cherokee que ele mesmo salvou depois do massacre de sua tribo. Logo depois de seu retorno, no entanto, uma tragédia acontece: a casa de seu irmão é incendiada, suas sobrinhas sequestradas e o casal violentamente morto. Ele tem certeza de que foram índios comanches que perpetraram tamanha desgraça e resolve partir em busca de vingança. A princípio junto com um grupo de soldados e depois contando apenas com Pawley, ele passa anos em busca da única sobrevivente da chacina, sua sobrinha Debbie. Seu objetivo, no entanto, não é resgatá-la e sim, matá-la, por considerar que ela já assumiu a personalidade de uma índia.

Levando em consideração as intenções de Ethan e seus pensamentos bastante preconceituosos, se vistos com os olhos de hoje, as acusações de racismo até fazem certo sentido. Mas quem há de negar que o ranço politicamente correto que hoje contamina a produção cinematográfica vem emburrecendo e deixando de tocar em assuntos pertinentes por medo de ser crucificada pelo povo médio? Em 1868, ano em que a história do filme começa (logo após a Guerra de Secessão que opôs o norte abolicionista e o sul escravagista) não havia melindres de nenhum tipo - negros eram negros, índios eram índios e os conceitos de masculinidade eram bem definidos (taí a imagem intocada de Wayne como exemplo de uma virilidade talvez anacrônica hoje em dia, mas extremamente valorizada em um Oeste selvagem e violento).

É inegável o cuidado de Ford com o visual de sua obra. A fotografia espetacular de Winton C. Hoch (ajudada pela beleza natural do famoso Monument Valley e pelas paisagens de Alberta, no Canadá) é quase uma personagem a mais da trama, acompanhando a odisséia de Ethan e Pawley em sua busca desenfreada por justiça (ou vingança, qualquer adjetivo aqui é acertado). O uso exemplar de tomadas à distância e da música grandiloquente de Max Steiner colaboram em criar o clima de épico que "Rastros" esbanja em cada fotograma. E o roteiro, adaptado de um romance de Alan LeMay, ainda encontra espaço para aliviar a tensão da caçada, com uma subtrama que envolve um namoro à distância entre o jovem Pawley e a bela Laurie (Vera Miles). Apesar de engraçado no início, esse desvio do rumo principal é o responsável pela única quebra de ritmo do filme (a briga entre Pawley e seu rival toma diversos e preciosos minutos, em uma desnecessariamente longa sequência).

"Rastros de ódio" é a quintessência do western, a fórmula do gênero em seu máximo grau de qualidade e forma. É também um perfeito exemplo de entretenimento sério e, a despeito das suas hoje equivocadas maneiras de ver os índios e as mulheres, o maior legado da dupla Ford/Wayne ao cinema.


UM FILME POR DIA



domingo, 11 de fevereiro de 2018

SOLDA





SOLDA CÁUSTICO: http://cartunistasolda.com.br/

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE



Necrológio dos desiludidos do amor


Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.

Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.
Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno.

Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia.

Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e de segunda classe).

Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho
enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles.



quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018