quinta-feira, 31 de julho de 2014

segunda-feira, 28 de julho de 2014

SOBERANIA


de Manoel de Barros

Naquele dia, no meio do jantar, eu contei que tentara pegar na bunda do vento — mas o rabo do vento escorregava muito e eu não consegui pegar. Eu teria sete anos. A mãe fez um sorriso carinhoso para mim e não disse nada. Meus irmãos deram gaitadas me gozando. O pai ficou preocupado e disse que eu tivera um vareio da imaginação. Mas que esses vareios acabariam com os estudos. E me mandou estudar em livros. Eu vim. E logo li alguns tomos havidos na biblioteca do Colégio. E dei de estudar pra frente. Aprendi a teoria das idéias e da razão pura. Especulei filósofos e até cheguei aos eruditos. Aos homens de grande saber. Achei que os eruditos nas suas altas abstrações se esqueciam das coisas simples da terra. Foi aí que encontrei Einstein (ele mesmo — o Alberto Einstein). Que me ensinou esta frase: A imaginação é mais importante do que o saber. Fiquei alcandorado! E fiz uma brincadeira. Botei um pouco de inocência na erudição. Deu certo. Meu olho começou a ver de novo as pobres coisas do chão mijadas de orvalho. E vi as borboletas. E meditei sobre as borboletas. Vi que elas dominam o mais leve sem precisar de ter motor nenhum no corpo. (Essa engenharia de Deus!) E vi que elas podem pousar nas flores e nas pedras sem magoar as próprias asas. E vi que o homem não tem soberania nem pra ser um bentevi.

sábado, 26 de julho de 2014

sexta-feira, 25 de julho de 2014

DALTON TREVISAN


Dois velhinhos


Dois pobres inválidos, bem velhinhos, esquecidos numa cela de asilo.

Ao lado da janela, retorcendo os aleijões e esticando a cabeça, apenas um podia olhar lá fora.

Junto à porta, no fundo da cama, o outro espiava a parede úmida, o crucifixo negro, as moscas no fio de luz. Com inveja, perguntava o que acontecia. Deslumbrado, anunciava o primeiro:

— Um cachorro ergue a perninha no poste.

Mais tarde:

— Uma menina de vestido branco pulando corda.

Ou ainda:

— Agora é um enterro de luxo.

Sem nada ver, o amigo remordia-se no seu canto. O mais velho acabou morrendo, para alegria do segundo, instalado afinal debaixo da janela.

Não dormiu, antegozando a manhã. Bem desconfiava que o outro não revelava tudo.

Cochilou um instante — era dia. Sentou-se na cama, com dores espichou o pescoço: entre os muros em ruína, ali no beco, um monte de lixo.


quinta-feira, 24 de julho de 2014

terça-feira, 22 de julho de 2014

FOLHA EM BRANCO


por Ticiana Vasconcelos Silva

Notícias de um mundo distante
Chegam a mim a todo instante
Tão perto, tão longe
E eu a sonhar nos olhos de cada passante
Todos sorriem como em uma festa de debutante
Mas poucos se escondem como aquela amante
Ela observa a vida como se nada fosse deslumbrante
Ela enxerga as pernas tortas dos que dançam uma valsa delirante
Ela se encolhe nos braços de todos aqueles falsos cantantes
Ela se cala quando alguém a toca como um sino
Que tenta soar seu som em um alto falante
Muitos são poucos a sua volta
E ela a ouvir os falsos murmurantes
Como se fossem estátuas lapidadas e sem semblante
Ela lê estas notícias nas entrelinhas destes instantes

E eu vejo que sou ela quando me espelho em seus olhos tão raros como diamantes.


quinta-feira, 17 de julho de 2014

JOHNNY WINTER

*Beaumont, Texas, 23 de fevereiro de 1944. 
*Zurique ,16 de julho de 2014.


quarta-feira, 16 de julho de 2014

PARA JOSÉ E JOSEFA


por Roberto José da Silva


Se bobear eles nasceram na mesma hora. O dia, com certeza, assim como o fato de serem vizinhos de sítio. Um 16 de julho como hoje. Naquele tempo ali havia muito mato, muito bicho, muito tudo nas cercanias de Palmeira dos Índios. Isso foi em 1926, um ano antes de Graciliano Ramos ser eleito prefeito do município com 433 votos. Muitos anos depois eles morreram no mesmo local, com diferença de quatro anos, na UTI do único hospital daquela cidade que, provavelmente, nunca mais teve um chefe de Executivo honesto como o escritor que despontou para o mundo da literatura com os relatórios que fez para o governo de Alagoas sobre a gestão que fez na cidade encravada no pé de uma serra. Eles se enamoraram no Rio de Janeiro, para onde desceram atrás dos irmãos. Depois do casamento, realizado na terra deles, só para provar que estavam casados mesmo, como mais tarde seria revelado, desceram praticamente direto para São Paulo. Retornaram para Alagoas, cumprindo a tradição dos paus-de-arara, para ali ficar eternamente. Estão juntinhos ao lado de um muro do cemitério que é vizinho dos sítios onde nasceram pelas mãos de parteiras. Cercados de plantação, com vista para a cidade, distante uns 5 quilômetros dali, que agora tem um Cristo em cima do morro, braços abertos tentando proteger tudo e todos. Josefa Maria da Silva e José Antonio da Silva deixaram dois filhos (o signatário e o artista Ricardo Silva), quatro netos (Yuri, Ticiana, Tarsila e Ana Carolina) e uma bisneta (Manuela), que seguem o caminho, quase sem pegadas, como diz o poeta, mas onde plantaram flores e ensinaram o que deve ser ensinado, mesmo com poucas palavras. Amém.


CHARLES BUKOWSKI

poema nos meus 43 anos

(Tradução: Jorge Wanderley)

terminar sozinho
no túmulo de um quarto
sem cigarros
nem bebida—
careca como uma lâmpada,
barrigudo,
grisalho,
e feliz por ter um quarto.
…de manhã

eles estão lá fora
ganhando dinheiro:
juízes, carpinteiros,
encanadores , médicos,
jornaleiros, guardas,
barbeiros, lavadores de carro,
dentistas, floristas,
garçonetes, cozinheiros,
motoristas de táxi…
e você se vira
para o lado pra pegar o sol
nas costas e não
direto nos olhos.



segunda-feira, 14 de julho de 2014

CINE CENA

HARPO

Love Happy (1949)



SEBASTIAN CABROL







CABEÇA DE PEDRA

Para engolir

O livro cheirava a mofo e havia túneis feitos por traças. Foi o único que ele encontrou na casa do bisavô paterno que herdou e estava fechada há muitos anos. Antes era uma fazenda. Foi engolida por uma cidade e estava cercada de favelas. Tentaram destruí-la, mas era impossível. Paredes de pedra, como uma fortaleza. Ele folheava as páginas escritas em latim quando um papel caiu sobre uma das tábuas largas do piso. Apanhou. Em letra garatujada estava escrito: “Coisa ruim eu não mastigo, engulo”. Aquilo foi como receber um soco no estômago da alma, se curvar com a dor, recuperar-se e nunca mais esquecer. Foi também como o canto de um anjo empunhando uma espada vingativa e com o fio ensanguentado. Ele então saiu dali, foi para casa e a primeira coisa que fez foi jogar algumas mudas de roupa na mochila e sair para sempre sem dizer absolutamente nada para a mulher que o atormentava há 25 anos. Fez isso porque, se ouvisse algo, poderia lhe quebrar os dentes e ser preso. Engoliu e voou, sabendo que ela também faria o mesmo.

domingo, 13 de julho de 2014

FRANK ZAPPA

Bobby Brown


FERNANDO PESSOA


Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.



Ricardo Reis

quarta-feira, 9 de julho de 2014

segunda-feira, 7 de julho de 2014

SOLDA


CÁUSTICO



SOLDA CÁUSTICO: http://cartunistasolda.com.br/2014/07/07/solda-453/

O HOMEM NU


de Fernando Sabino


Ao acordar, disse para a mulher:
— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.
— Explique isso ao homem — ponderou a mulher.
— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago.
Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.
Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:
— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa.
Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.
Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da televisão!
Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:
— Maria, por favor! Sou eu!
Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.
Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.
— Ah, isso é que não! — fez o homem nu, sobressaltado.
E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror!
— Isso é que não — repetiu, furioso.
Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.
— Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si.
Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:
— Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso. — Imagine que eu...
A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:
— Valha-me Deus! O padeiro está nu!
E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:
— Tem um homem pelado aqui na porta!
Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:
— É um tarado!
— Olha, que horror!
— Não olha não! Já pra dentro, minha filha!
Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.
— Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir.
Não era: era o cobrador da televisão.

THOMAS FOWLER




NA CAMA


De Dalton Trevisan

Na cama, diz o marido:
- Você é gorda, sim. Mas é limpa.
- ...
- Você é feia, certo? Mas é de graça.