domingo, 28 de setembro de 2014

SE...


Max Nunes

Um dos poemas mais conhecidos é "Se...", de Rudyard Kipling, em que um pai diz a um filho o que é necessário para ele se tornar um homem. Mas isso foi em 1910. Como seria hoje o homem de Kyplinkg?


Meu filho:

Se és capaz de usar uma peruca

De caracóis dourados sobre a cuca

E manter a aparência dos esnobes

Ao dormir com uma touca sobre os bobs;

Se és capaz de rodar uma bolsinha,

Segurando-a com charme, pela alça,

Em lugar de levar a carteirinha

E o dinheiro guardados em tua calça;

Se és capaz de levar sobre o pescoço

Colares e medalhas como adornos

Usar calças bem justa e bordadas,

Que acentuem por trás os teus contornos;

Se és capaz de vestir essas camisas

Com frases pelas costas e abdômen

E, corajoso, nem te ruborizas,

Então, sim, filho meu,

Serás um homem.


Max Nunes nasceu no Rio de Janeiro, em 1922. Médico, acabou se tornando um dos maiores humoristas brasileiros. Criador do famoso programa Balança, mas não cai, da década de 50, na Rádio Nacional, passou pelo Diário da Noite e Tribuna da Imprensa, sendo hoje um dos produtores do programa de tv Jô Soares Onze e meia.

O texto acima foi extraído do livro "Uma pulga na camisola - O máximo de Max Nunes", Companhia das Letras - São Paulo, 1996, pág. 37, seleção e organização de Ruy Castro.

GEORGES PICHARD


KAMA SUTRA




quarta-feira, 24 de setembro de 2014

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Quando Vier a Primavera


de  Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)


Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.




É PRIMAVERA







 Fotografias de Ricardo Silva

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

DALTON TREVISAN


Minha Vida Meu Amor

Olha minha vida meu amor
Há muito não és mais meu
Toda a loucura que fiz
Foi por você
Que nunca me deu valor
Por isso perdeu tua mulher
E teus filhos
Não posso com esta cruz
Acho muito pesada João
Você vem me desgostando
A ponto de me por no hospício
Uma vez conseguiu
Mas duas não
Aqui ô babaca
De tuas negras
Que nem os filhos se interessou
De batizar na igreja
Você só vai no bar do Luís
Outro boteco não achou
Mais perto da tua família
Só me operei que você obrigou
Agora não presto
Já não sirvo na cama?
Quis fazer de mim
A última mulher da rua
Mas não deixei
Por tua causa amor
Eu morro pelada
Abraçada com os dois anjinhos
No fundo do poço
Amor desculpe algum erro
E a falta de vírgula


FOLHA DE SÃO PAULO, 27/11/1983¹

¹A pedido do autor, tem-se aqui uma versão revista do texto publicado pela primeira vez no “Folhetim”.

Textos extraídos do livro “FIGURAS DO BRASIL 80 AUTORES EM 80 ANOS DE FOLHA”, Editora PUBLIFOLHA. – FOLHA DE SÃO PAULO pág. 254 e 255.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

WILLIAM BOUGUEREAU






MILLÔR FERNANDES


A Esfinge Brasileira


VolksMillor, o humorista do povo, através deste órgão de grande penetração (Honni soit qui mal y pense) que é O PASQUIM, vem propor às autoridades este modelo para a confecção de uma estátua-símbolo-do-Brasil, a qual abalará os pósteros e até mesmo os retros.

Desta vez não só a Europa se curvará novamente diante do Brasil (ôba, ôba, Europa!) como também a Grécia, (ôba, ôba, Grécia, mais um pouquinho, sim? Assim; é!), não essa Grécia que está aí, a da junta, mas a velha Grécia, a Grécia Magna, a Grécia mesmo.

Porque, uma vez construída a estátua cujo modelo damos acima, evidentemente o mistério da Esfinge, considerado o máximo em sofisticação adivinhatória e metafísica de todos os tempos, passará a ser objeto de riso. Diante da concepção esfingética (gostaram?) brasileira estamos certos de que o drama de Édipo não teria lugar porque, não podendo, de modo algum, resolver o mistério proposto, consequentemente ele teria sido devorado e, portanto, mais tarde, não daria aquele vexame de traçar a própria mãe lá dele.

A estátua que V.M. propõe como símbolo supremo da enigmática nacional deverá ser instalada na Praça dos Três Poderes (Exército, Marinha e Aeronáutica), em Brasília. Como já perceberam os mais atiladinhos, esse gesto da estátua (8 metros de altura) não significa nenhum símbolo criptocomunista ou pantero-negro. A figura, na sua simplicidade clássica, representa apenas a figura bem tropical, bem brasileira do Jogador de Porrinha.

Colocada, como quer o autor, na praça principal do país, a estátua na certa atrairá milhões de visitantes de todas as partes do mundo que, boquiabertos, tentarão em vão resolver o mistério proposto. Mas VolksMillor, o humorista do povo, garante: por mais que examine o Jogador de Porrinha, em mármore, no Paraná nunca ninguém jamais conseguirá dizer quantos pauzinhos ele tem na mão.


Millôr, julho de 1976

JIMI HENDRIX

44 anos


por Roberto José da Silva

Quando me disseram quarenta e quatro anos eu me senti mais moço. Há quarenta e quatro anos ele foi beijar o céu e o corpo ficou inerte porque o vômito o afogou. “Eu vivia num quarto repleto de espelhos; tudo o que eu via era eu mesmo. Me apeguei ao meu espírito e quebrei meus espelhos, agora o mundo todo está aqui para me ver”. Disse isso e só li agora, mas aí entendo porque no primeiro acorde disparado não sei onde, ele entrou num radinho na cabeceira da cama do quarto num subúrbio e arrebentou as paredes, a casa, me alçou no vôo que depois quase me matou do mesmo jeito, mas foi uma grande experiência. Um anjo negro vestido de branco e disparando bombas no hino nos Estados Unidos e sobrevoando a jato aquela multidão de Woodstock, começo e início do fim de um sonho que foi enterrado em Altmont, com a facada do Hell Angels em alguém que queria atirar nos Rolling Stones. Quatro décadas e quatro anos se foram, mas o que Jimi Hendrix sinalizou depois de jogar napalm em quem jogava napalm nos norte vietnamitas, o que ele sinalizou com os acordes mais tranquilos deste mundo, foi isso que encontrei na hora certa. E o eterno Deus da guitarra continua deus, como provou naquela fazenda ao encerrar com calma sua apresentação pouco tempo antes de morrer aos 27 anos. O corpo se foi na busca do que não se sabe. A arte, essa é eterna. Sobreviver para confirmar isso é uma dádiva.




quarta-feira, 17 de setembro de 2014

B. B. KING'89


Riley Ben King, mais conhecido como B. B. King
16 de Setembro de 1925, Itta Bena, Mississippi






domingo, 14 de setembro de 2014

IKE & TINA TURNER

Proud Mary


O ÚLTIMO POEMA


por Manuel Bandeira


Assim eu quereria meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.



MOVIE STAR


BRIGITTE BARDOT






Petrobras x Paulo Francis


por Carlos Heitor Cony

Durante o escândalo do mensalão, a opinião pública acreditou que, em matéria de corrupção, o poder havia atingido um limite insuperável, para não dizer inédito, na política nacional. Ledo e ivo engano. Em poucos meses, com as sequelas que continuam e que ainda não terminaram, explode uma bomba bem maior e letal para o governo que há mais de dez anos vem sendo manipulado pelo PT.

Desde o início de que, mesmo não sendo a Dinamarca, havia alguma coisa de podre no reino da Petrobras, meu primeiro pensamento foi o calvário de um jornalista, meu amigo Paulo Francis. No programa que então fazia, e gravado em Nova York, ele acusou os sobas que mandavam na maior estatal do Brasil.

Não chegou a citar nomes, falou que o estado maior da Petrobras, engenheiros, diretores e seus respectivos patronos formavam uma quadrilha de bandidos que roubavam descaradamente a empresa, justamente em sua cúpula administrativa e técnica.

Evidente que a “suspeita” do Francis foi desmoralizada pela própria Petrobras, que usando e abusando do dinheiro da fraude, processou o jornalista por calúnia, no foro de um país que tem a fama de ser o mais severo na matéria. A multa chegaria a US$ 100 milhões, mais custas e honorários.

Seus amigos e admiradores, como Fernando Henrique Cardoso, José Serra e outros do mesmo nível procuraram o presidente da empresa para explicar o absurdo do processo e da multa. A Petrobras, com o dinheiro dos outros, venceu a questão.

Paulo Francis entrou em depressão, tal e tanta, que meses depois morreu subitamente. Agora tomamos conhecimento gradativo que um jornalista culto e bem informado tenha feito as acusações que hoje são objeto de uma CPI e de um clamor que atinge não somente a honra da nação, mas a vergonha de todos nós.


*Publicado na Folha de S.Paulo




BEN TOLMAN








Pensamentos que reúnem um tema


por Adalgisa Nery

Estou pensando nos que possuem a paz de não pensar,
Na tranqüilidade dos que esqueceram a memória
E nos que fortaleceram o espírito com um motivo de odiar.
Estou pensando nos que vivem a vida
Na previsão do impossível
E nos que esperam o céu
Quando suas almas habitam exiladas o vale intransponível.
Estou pensando nos pintores que já realizaram para as multidões
E nos poetas que correm indefinidamente
Em busca da lucidez dos que possam atingir
A festa dos sentidos nas simples emoções.
Estou pensando num olhar profundo
Que me revelou uma doce e estranha presença,
Estou pensando no pensamento das pedras das estradas sem fim
Pela qual pés de todas as raças, com todas as dores e alegrias
Não sentiram o seu mistério impenetrável,
Meu pensamento está nos corpos apodrecidos durante as batalhas
Sem a companhia de um silêncio e de uma oração,
Nas crianças abandonadas e cegas para a alegria de brincar,
Nas mulheres que correm mundo
Distribuindo o sexo desligadas do pensamento de amor,
Nos homens cujo sentimento de adeus
Se repete em todos os segundos de suas existências,
Nos que a velhice fez brotar em seus sentidos
A impiedade do raciocínio ou a inutilidade dos gestos.
Estou pensando um pensamento constante e doloroso
E uma lágrima de fogo desce pela minha face:
De que nada sou para o que fui criada
E como um número ficarei
Até que minha vida passe.


SOLDA


CARTUM





































SOLDA CÁUSTICO: http://cartunistasolda.com.br/


Meter a língua onde não é chamado


por Joaquim Ferreira dos Santos

(Sugestões de novas palavras antigas para “Mulheres apaixonadas”)


Azeite, não é meu parente! Nem todos entendem, mas a língua que se falava antigamente era tranchã, era não?

As palavras pareciam todas usar galocha, e eu me lembro como ficava cabreiro quando aquela tetéia da rua, sempre usando tank colegial, se aprochegava com a barra da anágua aparecendo, vendendo farinha, como se dizia. Só porque tinha me trocado pelo desgramado que charlava numa baratinha, ela sapecava expressões do tipo “conheceu, papudo?!”, “Ora, vá lamber sabão”, eu devolvia de chofre, com toda a agressividade da época, “deixa de trololó, sua sirigaita”.

Era tempo do onça total. As garotas, algumas tão purgantes que pareciam eternamente de chico, não davam esse mole de escancarar o formato do V-8 sob a saia, e os homens, tirando uma chinfra, botavam pra jambrar com quedes e outras papas-finas. Eu, hein, Rosa?! Tanto quanto o telefone preto, a geladeira branca e o sebo para se passar no couro da bola número 5, essas palavras foram sendo consideradas como as garotas feias de então — buchos. Aconteceu com elas, as palavras, o mesmo que ao Zé Trindade — empacotaram, bateram as botas. Tomaram um cascudo, levaram sopapo, catiripapo, e chisparam do vocabulário. Uma pena.

A língua mexe, pra frente e pra trás, e assim como o bacana retornou guaribado para servir de elogio nos tempos modernos, pode ser que breve, na legenda de uma foto da Daniela Cicarelli, os jornais voltem a fazer como diante da Adalgisa Colombo outrora, e digam que ela tem it, que ela é linda, um chuchu. São coisas do arco da velha, vai entender?! Não é só o mistério da ossada da Dana de Teffé que nos une ao passado. Não saberemos nunca, também, quem matou o mequetrefe, a pinimba, o tomar tenência e o neca de pitibiribas, essas delícias vocabulares que enxotadas pelo bom gosto gramatical picaram a mula e foram dormitar, como ursos no inverno, numa página escondida do dicionário.

Outro dia eu disse para as minhas filhas que o telefone estava escangalhado. Morreram de rir com esse maiô Catalina que botei na frase. Nada escangalha mais, no máximo não funciona. Me acharam, sem usar tamanho e tão cansativo polissílabo, um completo mocorongo. Como sempre, estavam certas. Eu tenho visto mulheres de botox, homens que escondem a idade, tenho visto todas as formas de burlar a passagem do tempo, mas o que sai da boca tem data. Cuidado cinqüentões com o ato falho de pedir um ferro de engomar, achar tudo chinfrim, reclamar do galalau que senta na sua frente no cinema e a mania de dizer que a fila do banco está morrinha. Esse papo, por mais que você curta música techno e endívias, denuncia de que década você veio.
Acho legal que a Sonia Braga volte, curto às pamparras a Emilinha vendendo CD na praça. Mas por que não dar uma linguada no passado? Sem querer amolar, sem bololô, sem querer fazer arte, sem querer, em tempos já tão complicados, trazer mais angu de caroço para a vida das pessoas, eu torço, quer dizer, tenho a maior queda por um revival lingüístico. As mães costumavam passar sabão na língua do ranheta que falava palavrões. De vez em quando, todos sofremos essa limpeza e perdemos palavrinhas tão gostosas quanto aquele mingau de maisena com uma banana caramelada no meio. Será o Benedito?! Ninguém merece, tá ligado?

Da mesma maneira que se foi, parece que para sempre, o cresceu a barba como sinônimo de passar vergonha, às vezes dá-se a ressurreição de uma dessas espoletas estabanadas. Eram palavrinhas catitas, todas do tempo em que as moças ficavam incomodadas mas não dormiam de touca. O borogodó, por exemplo, que andei saudando aqui semanas atrás como um mantra de felicidade solar por causa de seus redondos abertos e femininos, ganhou novo sopro de vida ao ser repetida em todos os capítulos de “Mulheres apaixonadas”. É a coqueluche semântica do momento. E, qual é o pó?!, por que não seria?! Se a bossa nova voltou, se a boca-de-sino também, por que não a moda da língua retrô? Manoel Carlos, que é meu chapa, poderia fazer o mesmo com songamonga. Cabe muito bem, seria batata!, na sonsa da Paloma Duarte. Ô mulherzinha pra gostar de um bafafá!

Essas palavrinhas das antigas, verdadeiros pitéus sonoros, podiam formar o MSL, Movimento das Sem-Língua, e exigir assentamento no papo do dia-a-dia ao lado de pamonhas, patas-chocas lamentáveis, como disponibilizar, fidelizar, maximizar e outras gaiatas que andam fazendo uma interface lambisgóia, totalmente lengalenga, na fala cotidiana. Ficaria um mix contemporâneo, como se diz.

Uma língua bem exercida é metida, jamais galinha morta. É feita de avanços e recuos, e se isso parece reclame de algum programa do canal a cabo Sexy Hot, digamos que, sim, pode ser. Língua, seja qual for, é erótica. Dá prazer brincar com ela. Uma lambida no passado envernizaria novamente palavras que estavam lá, macambúzias e abandonadas, como quizumba, alaúza e jururu, expressões da pá virada como “na maciota”, “onde é que nós estamos!” e “ir para a cucuia”. Certamente, por mais cara de emplastro Sabiá que tenham, elas dariam na verdade uma viagrada numa língua que tem sido sacudida apenas pelo que é acessado do cibercafé e o demorô dos manos e das minas.

Meter a língua onde não é chamado pode ser divertido. Lembro de Oscarito passando a mão na barriga depois de botar pra dentro uma feijoada completa e dizer, todo preguiçoso e feliz, “tô com uma idiossincrasia!”. Estava com o bucho cheio, empanturrado de palavras gordas, compridas e nonsenses como um paio de porco. É o banquete que eu sugiro. Troque essa dieta de alface americana, de palavras transgênicas, que anda na moda mas não vale um caracol. Caia de boca num sarrabulho com assistência na porta, um pifão de tirar uma pestana do caramba, uma carraspana batuta. Essa idiossincrasia vai fazer sentido. Se alguém, depois de receber todas essas palavras de lambuja, repetir a mamãe das antigas e, amuado, gritar “dobre a língua”, não se faça de rogado — estique.



sexta-feira, 12 de setembro de 2014

HENRI CARTIER-BRESSON






CABEÇA DE PEDRA


Olho partido

Caiu. Viajou metade do mundo desde uma ilha linda para, num descuido, despencar direto no piso de cerâmica. Olho Grego partido. Ele juntou as duas partes e viu que, bem colado, só apareceria uma reentrância. Lasquinha que sumiu. Alguém falou que isso dava azar. Por isso mesmo resolveu não colar. Ficou esperando. Azar como, se já era um azarado na vida? Talvez a coisa invertesse, no seu caso. O telefone tocou. Era um parente pedindo dinheiro emprestado. Pouca coisa. Ele não sabia dizer não. Enviou para a conta. No outro dia outro telefonema da mesma pessoa. Ia pagar e dar um presente. Muito dinheiro. Tinha ido ao cassino clandestino com o empréstimo. Quebrou a banca. O olho partido estava ali ao lado. Ele agradeceu. Jura que o viu piscar. Achou que estava delirando. A campainha toca. Achou que era mais mais novidade boa. Abriu a porta e só viu um vulto. Era a morte.


CABEÇA DE PEDRA: http://cabecadepedra1.blogspot.com.br/2014/09/olho-partido.html


quinta-feira, 11 de setembro de 2014

DISCOTECA BÁSICA


Robert Johnson

King of the Delta Blues Singers  
(Edição 17,Dezembro de 1986) 

No quarto de um hotel de segunda, em San Antonio, Texas, o garoto negro, alto, magro e elegante senta-se voltado para a parede, um enorme microfone à sua frente, o violão de aço National-Steel sobre o joelho. Um fio corre pelo chão de madeira até o outro quartinho, onde, concentrados, atentos, maravilhados, dois homens brancos de meia-idade manipulam pesados gravadores de rolo. Faz frio, uma fria noite de novembro de 1936. Olhos fechados, o garoto toca - alguém na sala de controle comenta que não é possível: deve haver mais alguém com ele no quarto. Como é que estamos ouvindo acompanhamento e solo ao mesmo tempo? Mais que isso - que tristeza, que tristeza infinita, que doçura angustiada nessas cordas. O garoto canta, uma voz aguda e ligeiramente fanhosa, e a primeira impressão é de transe, trânsito, fuga, como capturar o vento. Depois, abre-se um universo escuro, um poço das mais absolutas paixões - cada blue é curto, curto, dois minutos e pouco, cantado com quem perseguisse ou fosse perseguido. Nem amor, nem desejo, nem desespero: um pouco de cada uma dessas emoções e mais alguma outra coisa, alguma coisa que remonta à mais básica humanidade, fatalidade, destino, morte.
O garoto é Robert Johnson, 25 ano, nascido (presumivelmente) no vilarejo de Hazelhürst, Mississipi. Os homens são o pesquisador John Hammond e o então diretor artístico da gravadora Columbia, Don Law. O que eles estão gravando é a primeira parte do único registro da obra do virtual do cristalizador do blues moderno; um ano depois, num "estúdio" improvisado no galpão de um prédio em Dallas, Texas, Hammond e Law fariam uma segunda sessão. Quando, cinco meses depois, Hammond desceu de Nova York ao Sul em busca de Johnson para um grande concerto de blues programado para o Carnegie Hall, voltou apenas com a notícia: ele morrera em circunstâncias misteriosas, aos 27 anos, possivelmente assassinado por veneno, por alguma amante vingativa ou por algum marido ciumento. Isso é blues, baby.
Os dois LPs obtidos dessas sessões são, até hoje, os mais importantes discos de blues que existem, álbuns de cabeceira de Eric Clapton, Jimmy Page, Jeff Beck, John Mayall, Pete Townshend, Ron Wood, Keith Richards, Mick Jagger, Elvis Costello, Nick Cave. Neles estão blues gravados infinitas vezes por artistas contemporâneos - "Love in Vain", "Crossroads Blues", "Terraplane Blues", "Me and the Devil Blues", "RamblinÕ on My Mind", "Stop Breaking Down". Estão neles, também, dezenas de licks - fraseados solistas da guitarra - e riffs - séries de compassos rítmicos -, copiados nota a nota, milhares de vezes, por dúzias de músicos de blues, de jazz, de heavy metal, de rhythm'n'blues, de rock de todas as tendências. E está nesses discos, sobretudo, uma das poesias mais intensas e ousadas da história da cultura popular internacional. Clichê algum descreve a negra lira de Robert Johnson: não se trata de "lamento de raça", não se trata de "hino da salvação", não se trata de "lirismo popular". Trata-se de um mergulho sem amarras nos mais escuros desvãos da alma humana, lá onde mora o verdadeiro devil, o que comercia com as paixões, propõe negócios irremediáveis e não aceita tréguas. Havia uma lenda, já durante o tempo em que Johnson vivia, de que ele teria feito um "pacto com o diabo" em troca de seu notável talento com a música e sucesso com as mulheres. Vista de outro ângulo, a lenda vive: era com seu mais íntimo diabo, aquele que o mundo branco das leis e das normas trata de suprimir, que ele dialogava em seus blues.
E em seus blues resume-se sua biografia. Robert Johnson nasceu, amou, tocou, morreu. No espaço de 27 anos. Nos dois minutos de um blues.



Ana Maria Bahiana

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

VANIA ZOURAVLIOV







O vermelho e o silêncio do cinema


por Yuri Vasconcelos Silva

Ela aguarda sua caça descer pelo chão negro brilhante que se transforma apenas sob os pés da vítima em um líquido viscoso atraente. Em uma cena vazia, de total escuridão, apenas os corpos nus de Scarlett Johansson e do homem que ela capturou são visíveis e parecem flutuar no breu do nada. O filme “Sob a Pele” (2013. dir.Jonathan Glazer), apresenta uma proposta de experiência estética rara no cinema atual. O filme elimina diálogos e, mesmo assim, conta uma história capaz de fixar a atenção. Mostra cenas de uma cidade melancólica, recantos solitários, casas abandonadas à própria sorte, como muitos dos personagens do filme. A função dos espaços percorridos neste filme, assim como imagens com significados perturbadores mas, por serem belas, amenizam o conteúdo e nos satisfaz pela agradável experiência visual, serve como um suporte extraordinário a reforçar algum aspecto da trama ou protagonista. Neste caso, os papéis dos diretores de arte, fotografia, cenografia e efeitos especiais são primordiais ao diretor.

Impossível ignorar o trabalho de Stanley Kubrick nessa busca. A semelhança artística de “Sob a Pele” com “O Iluminado” (1980) e “2001:uma odisséia …” (1968) mostra que o deleite estético de uma obra cinematográfica pode até suplantar o texto, por mais rico que ele seja, sem que o entendimento do que se passa na película seja prejudicado. Na verdade, a interpretação subjetiva de uma imagem sugere ainda maiores possibilidades e riqueza de significados. Por exemplo, a cena em que o garoto em seu triciclo dá voltas pelos corredores do Hotel Overlook, exibindo uma complexidade crescente dos espaços indecifráveis do hotel, à medida que a tensão igualmente sobe – culminando na perseguição num labirinto gelado de arbustos e neve, ao final do filme. A inundação vermelha-sangue em um dos corredores, tecnicamente impecável em sua execução, mostra que a organização do espaço e os efeitos plásticos têm uma função superior à simples explicação lógica de um pedaço da história. A cena existe para ser bonita e também significativa.

O vermelho também presente nos interiores da mansão onde quatro mulheres vivem aflitas, em volta da morte e do passado, em “Gritos e Sussurros” (1972. dir. Ingmar Bergman), presta um papel fundamental, junto com todos os demais cômodos em que passeamos com os personagens nesta elegante e incômoda casa. Da mesma forma, vários momentos de vazios nos diálogos ou ações dos personagens sussurram ao espectador o olhar para os detalhes em cena, a mobília, janelas e paisagem, detalhes do espaço que encerra aquelas mulheres em suas angústias. O espaço grita, nos pisos e paredes em vermelho.

Atentar para o fundo, o espaço e efeitos plásticos pode ser a chave para a entendimento pleno da história, mesmo que de forma pessoal. A compreensão que nos escapa em um filme pode estar escondida na paisagem que sobra quando retiramos os personagens.




FOTOS








Fotografias de Ricardo Silva


terça-feira, 9 de setembro de 2014

O homem que viu o lagarto comer seu filho


Ignácio de Loyola Brandão
para Ligia Sanchez


Era uma noite de terça-feira, e eles viam televisão deitados na cama. Quase uma da manhã, estava quente. Ele levantou-se para tomar água. A casa silenciosa, moravam num bairro tranqüilo. Não havia ruídos, poucos carros. Ao passar pelo quarto das crianças, resolveu entrar. Empurrou a porta e encontrou o bicho comendo o menino mais velho, de três anos e meio. Era semelhante a um lagarto e, na penumbra, pareceu verde. Paralisado, não sabia se devia entrar e tentar assustar o animal, para que ele largasse a criança. Ou se devia recuar e pedir auxílio. Ele não sabia a força do bicho, só adivinhava que devia ser monstruosamente forte. Ao menos, forte demais para ele, franzino funcionário. E meio míope, ainda por cima. Se acendesse a luz do corredor, poderia verificar melhor que tipo de animal era. Mas não se tratava de identificar a raça e sim de salvar o menino. Ele tinha a impressão de que as duas pernas já tinham sido comidas, porque os lençóis estavam empapados de sangue. E a calça do pijama estava estraçalhada sob as garras horrendas do bicho repulsivo. Como é que uma coisa assim tinha entrado pela casa adentro? Bem que ele avisava a mulher para trancar portas. Ela esquecia, nunca usava o pega ladrão. Qualquer dia, em vez de um bicho, haveria um homem roubando tudo, a televisão colorida, o liquidificador, as coleções de livros com capas douradas, os abajures feitos com asas de borboletas, tão preciosos. Pensou em verificar as portas, se estavam trancadas. Porém, percebeu um movimento no animal, como se ele tentasse subir para a cama. Talvez tivesse comido mais um pedaço do menino. Precisava intervir. Como? Dando tapinhas nas costas do lagarto — não lagarto? Não tinha antas em casa e o cunhado sempre dizia que era coisa necessária. Nunca se sabia o que ia acontecer. Ali estava a prova. Queria ver a cara do cunhado, quando contasse. Não ia acreditar e ainda apostaria duas cervejas como tal animal não existia. Pode, um lagartão entrar em casa através de portas fechadas e comer crianças? Olhou bem. Comer crianças não era normal, nem certo. Devia ser uma visão alucinada qualquer. Não era, O bicho mastigava o que lhe pareceu um bracinho e o funcionário teve um instante d ternura ao pensar naqueles braços que o abraçavam tanto, quando chegava do emprego à noite. Urna faca de cozinha poderia ser útil? Mas quanto o bicho o deixaria se aproximar, sem perigo para ele, o homem? Tinha de impedir o lagarto de chegar à cabeça. Ao menos isso precisava salvar. Não conseguia dar um passo, sentia-se pregado à porta. Preocupava-se. Todavia não se sentia culpado. Era uma situação nova para ele. E apavorante. Como reagir diante de coisas novas e apavorantes? Não sabia. Preferia não ter visto o lagarto, encontrar a cama vazia, as roupas manchadas de sangue. Pensaria em sequestro ou coisas assim que lia nos jornais. Sequestro o intrigaria, uma vez que ganhava pouco mais de dois salários mínimos e não tinha acertado na loteria esportiva. Era apenas um funcionário dos correios que entregava cartas o dia todo e por isso tinha varizes nas pernas. Se gritasse, o lagarto iria embora? Continuou pensando nas coisas que podia fazer, até que a mulher chamou, uma, duas vezes. Depois ela gritou e ele recuou, sempre atento para saber quanto o bicho tinha comido do filho. À medida que recuou perdeu a visão do quarto. Sentindo-se aliviado, pelo que não via. A mulher chamava e ele pensou: o menino não chorou, não deve ter sofrido. Voltou ao quarto ainda com esperança de salvá-lo pela manhã e decidiu nada dizer à mulher. Apagaram a luz, ele se ajeitou, cochilou. Acordou sentindo um cheiro ruim e quando abriu os olhos viu sobre seu peito a pata, parecida com a do lagarto. Paralisado, não sabia se devia tentar as sustar o animal, ou tentar sair da cama e pedir auxílio. Pelo peso da pata, o bicho devia ser monstruosamente forte. Ao menos, forte demais para ele, franzino funcionário. Aí se lembrou que tinha dois sacos de cartas a entregar, era época de Natal e havia muitos cartões das pessoas para outras pessoas dizendo que estava tudo bem, felicidades. Tinha que tirar este bicho de cima. Não, hoje não haveria entregas. Nem amanhã, por muito tempo. O lagarto estava com metade de sua perna dentro da boca.

*O texto acima foi extraído do livro "Os melhores contos de Ignácio de Loyola Brandão", seleção de Deonísio da Silva, Global Editora — São Paulo, 1993, pág. 117.

sábado, 6 de setembro de 2014

GEORGES PICHARD










SOLDA


CÁUSTICO





TORQUATO NETO


Cogito

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim.



quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Go Motherfucker Go

NASHVILLE PUSSY 
(Live Trabendo, 10.12.2002)

CABEÇA DE PEDRA


Óculos

O óculos era dobrável. Escuro. Achou-o por acaso num canteiro de avenida. Não viu ninguém por perto. Pegou-o, levou para casa, lavou, desinfetou e colocou no rosto na primeira manhã de sol. Nunca mais o tirou, nem para dormir. Se quisesse, como tentou, não conseguiria. Mas, para que tentar? Ao colocar aquela armação com lentes negras, ele passou a enxergar o que jamais tinha prestado atenção. Os olhos das pessoas, seja conhecidas ou não. Antes, tinha medo.
Agora, não precisava, porque ninguém via os seus. Mas ao olhar os outros ele via além, ele conseguia distinguir entre os bons e maus. Os maus, descobriu logo, não revelavam o interior da alma. Os outros, sim. Como? Pelo brilho. Os olhos destes pareciam sorrir, se é que é possível. Ele também começou a ver os detalhes de tudo quanto a natureza oferecia, mesmo numa cidade grande. Por isso deu de cantar feliz por onde andava. Até o dia que alguém achou que ele estava de gozação. Um taco de beisebol apareceu, a pancada foi forte o suficiente para quebrar o óculos. Quando acordou, estava num quarto de hospital. Via tudo cinza. Saiu dali do mesmo jeito. Perdeu a vontade de viver. Mas segurou o tranco. Passa o dia procurando outro óculos igual. Acham que pirou.