quinta-feira, 31 de março de 2016

DISCOTECA BÁSICA

Talking Heads
Talking Heads: 77 (1977)
(Edição 47,Junho de 1989) 

Por  Celso Pucci

Uma história verdadeira: era uma vez uma banda que, sem sombra de dúvida, merecia ter os seus quatros primeiros álbuns em qualquer lista de "melhores de todos os tempos". Sob este aspecto, além de sua formação relativamente recente, este fato se tornaria ainda mais incrível ao constatar-se que seus membros - depois de incursões solo e/ou com outros músicos e grupos - voltariam a se reunir para apresentar durante a década seguinte um sólido trabalho que, se já não possuía o mesmo teor inovador de sua fase anterior, ainda primava pela coesão e integridade. 
Pois bem... O nome desta banda era Talking Heads e os álbuns acima citados intitulavam-se "77, More Songs About Building and Food" (1978), "Fear of Music" (1979) e "Remain in Light" (1980). Estes três últimos LPs, porém, já contavam com as mãos do "não-músico" Brian Eno na produção. Eno, que anteriormente havia produzido uma fita demo com o Television - algo como uma "banda-gêmea" dessa primeira fase dos Heads -, partiu desta experiência abortada para uma profícua e crescente colaboração com as "cabeças falantes" e especialmente com seu band leader, David Byrne (que se estenderia inclusive ao LP "My Life in the Bush of the Ghosts", feito em colaboração com Eno, em 1980). Esta conjunção levaria o som dos Heads para oceanos musicais nunca dantes navegados e, em sua gradativa fusão de sons eletrônicos com polirritmia percussiva, influenciaria de modo incisivo o panorama da música pop dos anos 80. 
No entanto, a gênese dessa estética já estava condensada na despojada instrumentalização e na força das composições de seu LP de estréia, "77". Um álbum que transcendia pôr sua criatividade os próprios limites do cenário insurgente do punk-rock nova-iorquino depurado esta energia através da sutileza instrumental e com isso conseguido um resultado excepcionalmente original dentro de um contexto de absoluta efervescência criativa, em que despontavam nomes como Patti Smith, Ramones, Blondie e outros que tornaram legendário o então obscuro clube noturno CBGB, em Nova York 
No caso dos Heads, o núcleo inicial surgiu quando David Byrne decidiu formar uma banda, junto com seu colega da Rhode Island School of Design, Chris Frantz, também baterista. Eles chegaram a fazer algumas apresentações, às vezes denominando-se The Artistics, e outras, The Autistics. Mas a idéia só tomou fôlego quando convocaram a namorada de Chris, Martina Weymouth, Para o baixo e mudaram-se para Nova York, em 1974. Já como Talking Heads, o trio começou a se destacar no circuito local, mas foi a entrada de Jerry Harrison (ex-Modern Lovers) na segunda guitarra e teclados que daria um formato definitivo ao som da banda. 
Com essa formação eles entraram em um pequeno estúdio durante janeiro de 1977 para as sessões de gravação de seu LP de estréia, um álbum extraordinário, dadas as circunstâncias em que foi feito. O clima no estúdio era de tensão permanente entre a banda e um dos produtores, Tony Bongiovi, que a princípio queria outros músicos tocando os instrumentos no disco pôr não considerá-los suficientemente competente. Pôr seu lado, Byrne recusava-se a gravar qualquer vocal com a presença de Bongiovi no estúdio, pôr sorte, nesse impasse prevaleceu a concepção da banda, que forjou Uma trama musical ímpar para as canções de Byrne, repletas de observações cortantes a respeito das relações interpessoais ("Tentative Decisions", "The Book I Read", "Pulled Up") e perpassadas pela mais fina ironia ("No Compassion", "Don't Worry About the Government"). Em resumo, um álbum único, assim como cada um dos três que o sucederam. Ou como afirmava o próprio Byrne em "Psycho Killer": "Diga algo uma vez / Para que dizê-lo novamente?" 


CABEÇA DE PEDRA


Sangue

Gosto de sangue e não sou vampiro. Sangue é vida. Sem ele, acabou. Os japas adoram ver o líquido esguichando da carótida cortada pela lâmina perfeita da espada samurai. Tenho coleção de filmes assim. Gosto de sangue limpo. Pode ser do porco furado antes de virar toucinho. Pode ser do pescoço depenado da galinha que me faz lembrar mamãe cortando e aparando na tigela o que a gente iria comer no dia seguinte junto com as outras partes destrinchadas. Drácula com os dentes e a boca manchados depois de dilacerar o pescoço branco da donzela. Que delícia! A carne crua nos churrascos... Sangue temperado com sal grosso, quem há de resistir? Repito, não sou vampiro e não tenho intenção de matar gente ou bicho para ver o lindo líquido escorrer. Mas gosto. Sangue. Vida.

CABEÇA DE PEDRA: http://cabecadepedra1.blogspot.com.br/

SOLDA

CÁUSTICO

SOLDA CÁUSTICOhttp://cartunistasolda.com.br/

quarta-feira, 30 de março de 2016

STATUS QUO

Paper Plane live at the Marquee 1972


VAN GOGH, 163 ANOS

 


Hoje,163 anos atrás, Vincent van Gogh, nasceu em Zundert, North-Brabant, Holanda.


FERNANDO PESSOA


Ode marítima

Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.

Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.

Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É — sinto-o em mim como o meu sangue —
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui…

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve com uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.


segunda-feira, 28 de março de 2016

domingo, 27 de março de 2016

Ver, o verbo do cinema

Por  Nei Duclós 

Três grandes cineastas expõem o olhar de personagens em conflito com as imposições econômicas, sociais e culturais dispostas nos cenários e nas narrativas



Filme é o que enxergamos, inclusive a elipse, quando a cena nos remete a algo fora da tela. O exercício de ver serve para abordar o cinema pelo que ele é, quando estão dispostos os elementos chave para decifrarmos o que é visto. Limpar a obra da Sétima Arte de intenções adventícias é uma atividade valiosa, principalmente quando assistimos o trabalho de cineastas como Kubrick, Spielberg ou Chaplin. Ou quando conseguimos nos esclarecer sobre filmes aparentemente banais que provocam insights importantes para o trabalho ensaístico. Nesta coletânea de textos, aprofundamos essa percepção sobre o que o cinema nos mostra de mais impactante.

Charles Chaplin

Você consegue ver agora? Pergunta o vagabundo para a florista. Sim, agora eu consigo, diz ela, decepcionada com o que vê. Esse insight provocado pela ruptura da cegueira, fonte de ilusões de quem, no escuro, imagina um romance com um sujeito rico e que no fim era um mendigo fingidor, é um dos momentos mais importantes da sétima arte. Por ser uma absurda obra-prima absoluta, criada arduamente pelo gênio de Charles Chaplin, que inventou soluções cinematográficas deixando a equipe esperar por semanas a fio enquanto meditava sobre a melhor saída, “Luzes da Cidade” (1931) pode ser lida de várias formas em muitas camadas. Prefiro ver tudo como metáforas. É o caminho mais ó­bvio, e, portanto, irresistível. Isso não significa que vamos nos entregar a obviedades.

A história é conhecida: ela esperava que seu benfeitor, que pagou pela operação dos olhos, fosse alguém como o freguês rico que chegou num carro de luxo para fazer uma encomenda. Mas o que ela tem na sua frente é um mendigo, arrasado pela prisão provocada por um equívoco, um assalto cometido por dois ladrões, atribuído ao pobretão. O dinheiro conseguido foi doado por um milionário bêbado que sofria de amnésia alcoólica — a culpa da má distribuição de renda dando um intervalo no egoísmo e que volta ao normal na sobriedade. Mas a polícia achou que tinha sido roubo e prendeu o mendigo.

A florista (interpretada por Virginia Cherrill) que enfim enxerga, livre da ilusão provocada pela cegueira, onde construiu suas fantasias, é como o espectador que na sala escura enxerga o que a indústria do espetáculo lhe mostra. O espectador se projeta na tela e é protagonista do seu sonho. A florista se vê casada com um homem rico, mas não sabia que recuperar a visão tinha um contraponto, o de enfim ver o que a realidade lhe aprontava. Ela tinha sido alvo do amor e da solidariedade de alguém sem posses mas cheio de sentimento. Deixou-se seduzir porque imaginava estar assediada pela riqueza. Mas a verdade era outra.

As soluções cinematográficas são poucas e foram criadas em sua maioria no cinema mudo. Vemos a repetição delas a toda hora. A súbita revelação provocada pelo toque nas mãos é um lugar comum no cinema depois que Chaplin inventou essa cena. A confusão provocada pela porta de automóvel que se fecha, batida pelo mendigo, e que acaba iludindo a florista pelo som é talvez uma alfinetada de Chaplin no cinema sonoro: cinema é imagem e o som poderá apenas confundir. O que vale não é o barulho dos carros, as falas dos personagens, os ruídos da riqueza, e sim as formas de luz e sombra que aparecem na tela. Cinema é apenas o que vemos, não o que imaginamos ou ouvimos.

Em poucos minutos, neste filme, Chaplin faz talvez uma das cenas mais contundentes do cinema noir. É quando ele foge dos assaltantes apagando a luz da mansão do milionário onde foi recebido. Apenas alguns feixes de luz pipocam no ritmo da sequência, com sombras ameaçadoras perseguindo o protagonista, e um revólver tentando caçá-lo no escuro. A sombra como refúgio e a luz como ameaça: na alternância ou convivência desses dois elementos do claro-escuro, Chaplin constrói uma situação de perseguição, medo e suspense, pois a salvação da florista cega dependia do dinheiro que ele trazia no bolso naquele momento.

Há que se destacar também, entre inúmeras sacadas, a antológica cena da luta de boxe, um show coreográfico onde o malabarista Chaplin nos encanta com sua performance perfeita. Não é apenas hilária, não é apenas irresistível, não é apenas a melhor cena de boxe do cinema: é obra de gênio, e nunca é demais repetir isso. Que jamais tenha ganhado um Oscar diz tudo sobre a indústria do cinema, que apostou no mesmo e puniu a originalidade.

Ver, em Charles Chaplin, nos liberta da ilusão de uma sociedade dividida em classes sociais e nos devolve a humanidade perdida na cultura do dinheiro. O mendigo que é também trabalhador ocasional, autônomo, recolhendo excrementos de animais na rua, é o único capaz da solidariedade numa selva de falsos sentimentos, onde as flores são compradas, assim como os relacionamentos. A florista vive dessa ilusão de amores que se conquistam por mimos caros, mas acaba recebendo uma lição memorável: a de que a clareza do olhar sobre o coração alheio vale mais do que todas as mentiras sedutoras do mundo.

As luzes da cidade confundem o olhar. A luz do olhar sem a sombra do egoísmo enxerga o essencial.

Stanley Kubrick

Stanley Kubrick nos ensina que ver sem apoiar-se em parâmetro algum, ver pela primeira e única vez, ver como se o espectador estivesse nu diante do cosmo, é saber. Rever é arquivar, é perder esse tesouro do primeiro olhar, é desdobrá-lo, tentar entender o que foi visto. No filme “De Olhos Bem Fechados” (Eyes Wide Shut), o médico interpretado por Tom Cruise não pode ter acesso ao que a elite vê. E o que a elite vê? A própria elite, que não pode ser desmascarada. Ele descobre isso por meio do seu amigo pianista, que é contratado para uma festa em vasta mansão, desde que toque com um lenço tapando os olhos. Estão proibidos de ver, portanto, de saber. O protagonista então engana a segurança e vê o que jamais poderia ver, sabe o que nunca deveria ter sabido. Ver, portanto, é uma questão de classe social. Para o resto, é preciso cobrir o olhar com todo o tipo de repetição, para que se turve a percepção, para que nunca vejam e, portanto, saibam. Quem vê, tem poder.

Os anos 1960 pegou a elite desprevenida. Via-se pela primeira vez um monte de coisas. A saída foi enquadrar a criação que emitia a luz para o primeiro olhar. Entrou em cena o repeteco de massa, do qual a TV aberta brasileira é o mais sinistro exemplo. Só é permitido mostrar o já visto e se for algo inédito, é preciso vestir a novidade de todas as formas, para que tome uma forma reconhecível. Não nos deixam ver as imagens de Titan. Dizem antes que o satélite de Saturno é laranja, que tem mar de metano, ventos de tungstênio e outras bobagens. Deixem-nos ver, como Kubrick fez. Fui a um cinema da Cidade Baixa em Porto Alegre, a cidade da cultura, e vi então “2001” pela primeira vez. Nunca mais me refiz daquele susto. Pensei que aqueles homens-macacos do início do filme eram reais, e não atores. Vai ver, eram mesmo de verdade. Aquele travelling longuíssimo da nave em direção a Júpiter, que não acabava mais, marcou para sempre o cinema. “Star Wars” usou outro plano, um contra-plongée (como me ensinaram num curso de cinema que fiz ainda no ginásio, obra de um irmão marista que nos revelou pela primeira vez que os filmes não eram obra de atores, mas de diretores, o que é uma meia verdade). Mas no fundo é a mesma coisa. Vai fazer filme sobre o espaço? São aquelas roupas, aquela estética, aquele visual. Até o horrível “Cowboys do Espaço” (o tropeço de Clint Eastwood) usa essas soluções. É porque todos precisam repetir o que Kubrick fez, pois aprenderam com ele, mas não se dão conta que o perdem, pois o que realmente importa é aquela primeira percepção.

Em “O Iluminado”, Jack e o filho veem os fantasmas, só eles sabem o que está acontecendo. O terror da mulher é que ela não vê, apenas enxerga no que o marido se transformou, mas não sabe o que está por trás dessa mutação. Jack vê, e essa é a sua maldição. Vê não porque não tenha diversão, vê o horror insepulto no hotel vazio porque perdeu a capacidade de enxergar com a criação. Como não imagina, acaba se deparando com a brutal revelação dos assassinos fantasmas, que o orientam sobre o que deve fazer. Jack refugiou-se no hotel para não ver mais nada a não ser o que criaria no seu romance. Mas como ele vedou toda a capacidade de enxergar, ficou confinado no lugar que nada tinha a mostrar. Por isso ele consegue ver o que está por trás das paredes, o que se esconde embaixo do piso, o que desce do teto, o que escorrega pelos corredores. Somos transportados para essa maldição em Kubrick, o de ver o que nunca tínhamos visto, portanto o que jamais imaginávamos ver. No fundo não queríamos ver o que não sabemos, mas somos obrigados a isso pela câmara de Kubrick. Seu desafio foi o maior de todos, pois precisava impactar um público viciado em ver, cansado de tanto ver. A indústria audiovisual tinha chegado a sua saturação. Godard partiu para a ruptura, desistindo da intensificação do ver e levou todo mundo para a reflexão, fruto de sua formação literária. Godard disse: vejam, vocês estão vendo, aprendam a ver. Kubrick não é didático. Kubrick diz: veja só, um retângulo escuro e alto que emite um ruído e aparece no meio dos macacos e depois enterrado na Lua. Veja, um mar de sangue inunda o corredor. Vejam essas gêmeas fantasmas, esse rosto retorcido de Jack se anunciando depois de quebrar a porta com o machado. Godard explica: você está vendo. Kubrick te joga numa praia distante num mar de metano, sob fortes ventos de tungstênio. Tente respirar e terás ácido sulfúrico.

Em “Spartacus”, a revolta começa quando o grande escravo negro vê a elite gargalhando e pedindo a morte do adversário vencido. O escravo ousou levantar o olhar até o camarote onde estavam os poderosos e viu lá, pela primeira vez, a quem servia e o que ele, escravo, representava de verdade. Essa revelação desencadeou a revolta. Os escravos então optam pelo que sabem ver: querem ter a vida de senhores e fazem destes os novos servos. Spartacus orienta o olhar para outra direção: vamos formar um exército, diz ele e com essa estratégia quase derruba o império. O poder não vê Spartacus no final, mas tenta. Pergunta quem é o líder da guerra. Todos então se levantam e se anunciam, numa cena que arranca lágrima de rocha. Os escravos vencidos ludibriam o olhar do poder, não revelam o que a elite quer ver para que a vitória seja completa. Spartacus então se transforma em todo o povo submetido à escravidão. O poder vê a massa como um só líder e tem medo. Manda crucificar todo mundo. Até hoje agonizamos junto com Kirk Douglas, na cena final de mais esse filme de Kubrick, o cineasta da libertação do olhar. A versão de que a primeira descida do homem à Lua em 1969 é obra de Kubrick serve para múltiplas interpretações. A fraude revela a força do poder: ele submete o libertador do olhar, que se transforma num algoz, pois impõe a imagem de outro mundo por meio de truques. Ao mesmo tempo, essa versão pode ser vista como um reforço do que dizemos aqui: vimos a Lua pela primeira vez pela mão de Kubrick, se for correta a história que rola na internet. Em vez de ser uma fraude, é a glória: Kubrick teria levado o olhar para o outro lado por meio da imaginação e da ciência. No fundo, é o que deveria ser sempre. Prefiro Kubrick ao noticiário da tevê (me vê? Ou me obriga a ver daquele modo?). Kubrick mente menos.

Steven Spielberg

“Guerra dos Mundos”, de Steven Spielberg, é uma charada cinematográfica que propõe o verbo ver como a chave do enigma. Os invasores surgem no olho do furacão. Descem até suas máquinas enterradas no chão, ou seja, onde não eram vistas, apesar de estarem situadas bem no miolo da civilização (Nova York, Boston, especialmente a América). Para escapar, era preciso não ser visto. Para evitar que eles avançassem sobre o olhar inocente, foi preciso tapar os olhos da criança. Quando as máquinas emergem do solo, a população inteira está de olho no que está acontecendo.

A fabulosa sequência inicial, quando Tom Cruise (ator talentoso, apesar das inúmeras bobagens das quais participou) procura ficar perto dos acontecimentos, de olhos bem abertos, assim como o resto dos habitantes do seu bairro, diz tudo sobre o filme. Em nenhum momento se desvia o olhar, só para fugir. Escapar é ficar longe do alcance daquele olho gigante da máquina invasora. A solução do enigma fica a cargo de Tim Robbins, impressionante como sempre (não lembro de nenhuma performance ruim desse grande ator): quem sobrevive, nas ambulâncias onde trabalha, são apenas aqueles que ficam olhando firme para o paramédico. Olham e pensam, diz o personagem de Tim, um sobrevivente que, para escapar, se esconde num porão, procura ficar invisível.

Mas ele comete um erro: quer enfrentar o inimigo poderoso com as velhas armas, com as lições da América pioneira. Tom Cruise também comete o mesmo erro, pois coloca uma arma na cintura, que só serve para apontar contra seus semelhantes, jamais para o invasor, que não é atingido pelas armas tradicionais. A bola de beisebol que quebra a vidraça no início do filme, fruto do desentendimento entre Tom e o filho, abre um olho no vidro. É quando o pesadelo começa: alguém nos viu esse tempo todo e vai atacar. Qual a saída, além de ficar fora do alcance do olhar mortal? É enxergar o que não é visto a olho nu. É lá, onde mora a resistência, oculta por bilhões de ano de evolução genética, que está a força para derrotar os aliens.

A verdadeira guerra é entre o mundo visível e o invisível. Ou entre o mundo oculto que de repente mostra a cara e o mundo aparente e explícito (para os olhos) da vida diária. A guerra inverte a percepção: o que estava fora do olhar torna-se hegemônico, e a civilização que nos conforta com suas coisas visíveis praticamente desaparece.

Na cena impressionante em que um periscópio vivo e em forma de cobra tenta enxergar quem se esconde no porão, os seres de outro planeta ficam olhando para uma foto. Passam de mão em mão. Eles enxergam apenas o visível. Não ver o que está sob a toca do universo invisível foi a sua ruína. Tom só enxerga a dimensão real do perigo quando a câmara de televisão mostra como os invasores agem: descendo pela luz (visível) eles chegam até a máquina (oculta) e fazem a perseguição com um grande olho central dominando as ações, e olhos acessórios por meio dessas cobras/periscópios que rastreiam os habitantes apavorados.

Um detalhe, também na primeira sequência: o olhar catatônico de quem viu demais nos remete aos filmes de zumbis e de invasão de alienígenas dos anos 1950 e 60. É uma referência, e uma explicação, para esse olhar sonâmbulo, zumbi, que permeou nossa infância. Ver torna-se um pesadelo e o choque desse contato transforma os humanos em seres pasmos diante do inimaginável.

Li algumas críticas sobre o filme e os equívocos são recorrentes. Primeiro, acusam Spielberg de americano. Mas o que ele mais poderia ser? A antropologia nos ensina que precisamos analisar os fatos e as culturas nas suas especificidades. Spielberg jamais será outra coisa do que um americano. Também dizem que ele usou o velho truque do deus ex-maquina, a intervenção que vem de outro lugar, para resolver o problema. É exatamente aí que reside a qualidade do filme: a coerência com que ele desenvolve e cria o desfecho da trama é que é importante. Também invocam outros filmes como melhores do que este. Quando lançou “Tubarão” e suas outras obras, caíram de pau em cima dele. Agora invocam o que malharam para criticar “Guerra dos Mundos”. É muita estreiteza de visão.

Spielberg é um criador poderoso e nos legou imagens que vão ficar para sempre. “Guerra dos Mundos” é um filme assustador que merece ser visto pelo que ele é: um exercício em cima da mais importante vetor do cinema, que é o verbo ver. Ver, em Spielberg, neste filme, é uma porta para a sua permanência como cineasta do primeiro time. Americano, por certo. Profun­damente comercial, naturalmente (o que é coerente com sua cultura). E com a força e a profundidade dos verdadeiros criadores. O que não é pouco, dada a enorme quantidade de asneiras com que nos brindam todos os dias.


sábado, 26 de março de 2016

quinta-feira, 24 de março de 2016

UMA FACA SÓ LÂMINA


por JOÃO CABRAL DE MELO NETO 


Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse um
vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.


quarta-feira, 23 de março de 2016

FREDDIE KING

Have You Ever Loved A Woman


terça-feira, 22 de março de 2016

FOTOGRAFANDO





Fotografias de Ricardo Silva

SOLDA

CÁUSTICO


SOLDA CÁUSTICO:http://cartunistasolda.com.br/

MANUEL BANDEIRA


Poética

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor.
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.


domingo, 20 de março de 2016

BETTIE PAGE







CIDADÃO KANE

Cemitério de elefantes

POR  ADEMIR LUIZ

Ao contrário do que reza a lenda, “Cidadão Kane” foi um sucesso de crítica e poderia ter sido um sucesso de público se não sofresse o boicote capitaneado pelo magnata das comunicações, e patriarca da imprensa marrom, William Randolph Hearst, que chegou a oferecer dinheiro para que o estúdio destruísse os negativos.


“O Nascimento de Uma Nação” já foi o melhor filme de todos os tempos. “O Encouraçado Potemkin” e “As Vinhas da Ira” também tiveram a honra. Desde 1971, com a eleição internacional realizada pela revista inglesa “Sight And Sound”, a coroa pertence a “Cidadão Kane”. Quase não há vozes dissonantes. Em todo caso, concordar ou não com esse diagnóstico não é relevante, diante da constatação inequívoca da grandeza do filme. “Cidadão Kane” simplesmente é. Sua própria existência trata-se de uma mirabolante obra do acaso. Como a surgimento do mundo. Estatisticamente não poderia acontecer. Diretor estreante, elenco inexperiente em cinema, roteirista problemático, um sem fim de experiências técnicas etc, etc, etc. Nem mesmo era a primeira opção. Orson Welles, o diretor, produtor, co-roteirista e protagonista, pretendia filmar “O Coração Das Trevas”, de Joseph Conrad. O estúdio, RKO, não permitiu a aventura. Diante da recusa, optou-se por analisar a decadência do sonho americano. O filme se chamaria “América”, e poderia ter sido sobre o milionário esquizofrênico Howard Hughes, o Aviador. Reestruturado e rebatizado “Cidadão Kane”, mudou-se o foco para o magnata das comunicações, e patriarca da imprensa marrom, William Randolph Hearst. Nasceu a obra-prima e começaram os problemas que transformariam Welles em um paria em Hollywood. O gênio que alcançou o auge aos 25 anos e daí em diante só decaiu.

Parecia a crônica de uma morte anunciada. Antes de revolucionar o cinema, Welles já havia revolucionado o teatro e o rádio. Em 1936 dirigiu uma montagem de “Macbeth”, de Shakespeare, com um elenco formado inteiramente por negros, com a ação passada no Haiti. Em 1938 espalhou pânico pelos Estados Unidos, ao dirigir uma adaptação radiofônica do clássico de ficção-científica “Guerra Dos Mundos”, de H. G. Wells, como se fosse um noticiário em tempo real. Resultado: suicídios, abortos espontâneos, capa da revista Time e contrato inédito em Hollywood, com liberdade artística quase total, algo, até então, inédito. Com toda pompa e circunstância, Welles desembarcou na capital do cinema com fama e atitudes de gênio precoce. Todos esperavam sua queda, que não demorou. O anjo vingador foi o próprio então velho e recluso Hearst, que não aprovou a “homenagem” e usou a força de seus jornais para boicotar o lançamento de “Kane”.

Não que Welles não fizesse por merecer tamanho prestígio. Seu filme deixou todos impressionados. Provavelmente, até mesmo Hearst que, é quase certo, assistiu-o escondido. O enredo narra os esforços do repórter Jerry Thompson, que nunca tem o rosto revelado, para reconstituir a trajetória do lendário Charles Foster Kane, um dos homens mais ricos e influentes do mundo. O ponto de partida seria a última palavra pronunciada por Kane no leito de morte: "rosebud". O que foi o botão de rosa? Eis a questão. Tentando decifrar o mistério, Thompson investiga e entrevista diversas pessoas que conviveram com o personagem, criando uma multifacetada teia de informações. Lê o diário de Walter Parks Thatcher, o banqueiro que tutelou a criação de Kane depois que sua família entregou-o à instituição que representava. Conversou com Jedediah Leland, antigo melhor amigo e posterior desafeto de Kane. Tentou extrair algo dos raros momentos de lucidez de Susan Alexander, cantora lírica fracassada, segunda esposa, dona de boate e pivô da derrocada política de Kane. Porém, como o mordomo é sempre o culpado, é justamente o mordomo de Xanadu, o magnífico e faraônico palácio de Kane, que leva Thompson a concluir que nenhum homem pode ser completamente compreendido. Ainda mais um grande homem.

Quem foi Kane? Um capitalista? Um comunista? Um patriota americano? Entusiasta do nazismo? A pergunta permanece sem resposta, tanto para Thompson quanto para o espectador. E é justamente essa dúvida que dá grandeza à obra. Sua trajetória representa a encarnação do sonho americano, a busca pela fama, fortuna, amor verdadeiro, imortalidade. Amigos e inimigos de Kane reconhecem sua iniciativa, muitas vezes travestida de idealismo. Característica que foi sendo minada pelo tempo e pelo acúmulo de fracassos, na vida pública e na particular. Perdeu esposa e filho em um acidente, jamais conseguiu ser eleito para um cargo público, abandonado pela segunda esposa, sabedor que traiu todos seus ideais de juventude, viu sua fortuna esvair-se por conta das próprias excentricidades. Quanto mais idoso e amargo Kane fica, mais seus defeitos tornam-se visíveis. Seu entusiasmo transforma-se em inércia, sua coragem em despotismo, sua autoconfiança em autocomiseração.

Talvez consciente do que se passava resolveu retirar-se do mundo. Retirar-se em grande estilo, como tudo o que fez. Constrói, sem nunca concluir, Xanadu, imensa propriedade que recebeu o mesmo nome do palácio de Kublai Khan, imperador dos tártaros. Sua fortaleza de solidão. Cheia de hóspedes que nunca vê. Animais exóticos que jamais visitou. Compra tudo o que o dinheiro pode comprar, de obras de arte caríssimas até bibelôs inúteis, sem nunca abrir as caixas. Xanadu é um grande mausoléu onde se isolou, como um elefante velho que sabe que vai morrer e afasta-se do grupo, em busca de um cemitério, que, por algum motivo, ele sabe onde fica.

Algumas das imagens mais impressionantes do filme tratam de signos de multiplicidade e impenetrabilidade. A cena dos espelhos, onde Kane se multiplica infinitamente ao longo de um corredor. A cena na qual um imenso quebra-cabeça é montado. E, sobretudo, as cenas de abertura e fechamento do filme, onde a câmera de Welles enfoca uma placa com os dizeres: entrada proibida. A entrada não é proibida somente em Xanadu, a entrada é vetada à alma de Kane. Depois de sua morte, só restaram quinquilharias que precisavam ser destruídas para desocupar o espaço. Incluindo “rosebud”, o trenó no qual brincava quando era uma criança pobre e despreocupada, embora, igualmente rebelde. Fim do mistério, “rosebud” é um trenó. Fim, ou não?

Poucos percebem que o mistério de “rosebud” é um falso problema. Kane, aparentemente, estava sozinho quando pronuncia a palavra-chave do filme. Só vemos a enfermeira entrar no quarto depois, pelo reflexo do peso de papel espatifado no chão. Será uma piada de Welles? Será que o mordomo estava escondido em algum canto fora de foco? Talvez não seja nada disso. Más línguas de Hollywood davam como certo que “botão de rosa” seria o apelido que Hearst deu para determinada parte da anatomia intima da jovem atriz Marion Davies, sua amante que inspirou a personagem Susan Alexander, interpretada por Dorothy Comingore. Isso explicaria o ódio do ofendido magnata contra um filme genial do qual ele poderia se orgulhar.

Ao contrário do que reza a lenda, “Cidadão Kane” foi um sucesso de crítica e poderia ter sido um sucesso de público se não sofresse o boicote capitaneado por Hearst, que chegou a oferecer dinheiro para que o estúdio destruísse os negativos. O RKO não aceitou e lançou-o. Agradou o público que pôde assisti-lo. Em cinema, salvo exceções pontuais, dificilmente se está adiante de seu tempo. Welles não foi um gênio incompreendido, foi um gênio infeliz na escolha dos inimigos. O grande mérito de Kane foi ser um filme de autor realizado dentro do sistema dos estúdios. Filme de autor? Eis outro aspecto relevante da mitologia acerca de “Kane”. Pauline Kael, decana da crítica cinematográfica norte-americana, no polêmico ensaio “Criando Kane”, demonstrou que as inovações técnicas e artísticas do filme representaram, acima de tudo, a junção de diversas experiências isoladas realizadas na época. Dentre elas estão o uso de “flashbacks” para desenvolver o enredo rocambolesco, planos seqüência longos e detalhados, transição musical entre as cenas, profundidade de campo que permitia deixar em foco tanto o primeiro quanto o segundo plano, diálogos sobrepostos, cenários com teto, utilização de pintura para criar ambientes e paisagens, ângulos de câmera inusitados fugindo do plano americano padrão etc, etc, etc. Kael não nega o brilhantismo de Welles, mas insiste na necessidade de distribuir os méritos com toda a equipe. Sobretudo com o roteirista Herman J. Mankiewicz, que, bebedor-mor de Hollywood, conhecia a intimidade da família Hearst e teria sido o responsável por alguns dos achados estilísticos da obra. Welles sentiu-se ofendido com as colocações da crítica. Polemizaram durante anos. A briga só ajudou a fortalecer a lenda em torno do melhor filme de todos os tempos... o melhor, até agora.



DRAN


sábado, 19 de março de 2016

RITUAL DOS SÁDICOS / O DESPERTAR DA BESTA




Ritual de Sádicos / O Despertar da Besta
Original:Ritual de Sádicos / O Despertar da Besta
Ano:1969•País:BRASIL
Direção:José Mojica Marins
Roteiro:José Mojica Marins, Rubens F. Luchetti
Produção:José Mojica Marins, Giorgio Attili, George Michel Serkeis
Elenco:José Mojica Marins, Ângelo Assunção, Ronaldo Beibe, Andreia Bryan, João Callegaro, Ozualdo Ribeiro Candeias, Maurice Capovila, José Carlos, Maria Cristina, Emília Duarte, Jaciara Ducena, Jairo Ferreira, Jandira Gabriel, Graveto, Sérgio Hingst



Um renomado psiquiatra injeta doses de LSD em quatro voluntários com o objetivo de estudar os efeitos do tóxico sob a influência da imagem de Zé do Caixão. O personagem aparece de maneira diferente nos delírios psicodélicos e multicoloridos de cada um, misturando sexo, perversão, sadismo e misoginia. Interrogado por um grupo de intelectuais, o psiquiatra faz uma revelação surpreendente que os obriga a questionar suas convicções. Em pleno apogeu do amor livre, das drogas psicodélicas e dos hippies, Jose Mojica Marins concebeu seu filme mais contundente, revoltado e arrebatador através de episódios aparentemente sem ligação, aderindo à metalinguagem para analisar o efeito de seu polêmico personagem no inconsciente coletivo. O surreal nunca pareceu tão verdadeiro. Vetado pela Censura Federal mesmo após inúmeros cortes, o filme permanece inédito nas telas de cinema até hoje.
“O meu mundo é estranho, mas digno de todos que o queiram aceitar.
E nunca corrupto como querem fazê-lo.
Pois é composto, meu amigo, de pessoas estranhas, mas não mais estranhas que VOCÊ!!!!”


O mais maldito dos filmes dirigidos pelo mais maldito dos cineastas, Ritual de Sádicos (1969) teve sua exibição proibida pela censura do governo militar, que não satisfeita, tentou ainda destruir todas as cópias e negativos do filme. A insana viagem de José Mojica Marins e seu personagem Zé do Caixão ao mundo das drogas e da perversão acabou no limbo até o ano de 1982, quando foi restaurada e apresentada em mostras especializadas e festivais, com o título de O Despertar da Besta.

Ousada e polêmica, a película abordava diretamente, pela primeira vez no cinema brasileiro e em pleno auge da repressão militar, o uso de drogas como maconha, cocaína e LSD. Não apenas abordava, mas mostrava os personagens consumindo “tóxicos” (assim eram referidos os entorpecentes no filme) antes de sessões coletivas de coprofilia, sadismo, zoofilia e outras “perversões”.

Na trama, um renomado psiquiatra injeta doses de LSD em quatro voluntários, com o objetivo de estudar os efeitos da droga sob a influência do personagem fictício Zé do Caixão. O roteiro escrito pelo especialista em horror, Rubens Francisco Lucchetti (autor de dezenas de HQs e pocket books do gênero, além de parceiro habitual dos diretores Mojica e Ivan Cardoso), foi baseado num argumento do próprio Mojica e a princípio revela uma visão um tanto pessimista e perturbadora sobre uso de drogas ilícitas, ainda que o resultado da experiência e o desfecho do enredo condenem o personagem e não o uso dos entorpecentes.

Ritual dos Sádicos pode ser dividido em duas partes totalmente distintas. Na primeira metade são apresentados vários episódios aparentemente sem ligação, com momentos de degradação, consumo de drogas, desvios de comportamento e práticas sexuais um tanto controversas (principalmente quando consideramos a sociedade da época, sempre oprimida por imposições morais e artísticas do governo). Entre estes episódios se intercala o depoimento de um médico psiquiatra (interpretado Sérgio Hingst, grande nome do cinema de pornochanchada), entrevistado por quatro intelectuais (entre eles os cineastas Carlos Reichenbach, de Garotas do ABC e Maurice Capovilla, que dirigiria no próximo ano O Profeta da Fome, filme também protagonizado por Mojica). O médico é questionado sobre acontecimentos recentes envolvendo jovens e o uso de entorpecentes. O cineasta José Mojica Marinsacompanha calado o debate. Mojica interpreta a si mesmo e em determinado momento, quando os ideais de seu personagem são questionados, se defende: “Zé do Caixão ficou no cemitério! Quem está aqui é o cineasta”.

Na metade seguinte de Ritual de Sádicos, o psiquiatra explica a sua controversa pesquisa com o uso dos “tóxicos” (sempre pronunciado como “tóchicos”) e a exposição de suas cobaias a figura obscura do Zé do Caixão. Os atos devassos de suas cobaias teriam sido encorajados pelo uso das drogas ou por influência do agente funerário?

Um artifício curioso usado por Mojica em Ritual dos Sádicos é a inserção de uma apresentação de um programa televisivo de grande audiência na época, chamado “Quem tem medo da verdade?”. No programa, o cineasta José Mojica Marins tem sua criação e seu cinema julgados numa espécie de tribunal. Entre os componentes do júri estão diversas celebridades, como o compositor musicalAdoniram Barbosa, a atriz Consuelo Leandro e o narrador esportivo Silvio Luiz. Em defesa de Mojicaestá o diretor Carlos Manga (hoje responsável por mini-séries de sucesso na Rede Globo, como Agosto eEngraçadinha).

Um outro artifício empregado brilhantemente por Mojica é o uso de sequências coloridas, com um resultado semelhante ao do “inferno gelado” de Esta Noite Encarnarei No Teu Cadáver, representando aqui o delírio psicodélico dos participantes do experimento, rompendo o realismo quase jornalístico da fotografia em preto-e-branco predominante no restante do filme. Estas sequências representam o clímax da trama, dando vida a imaginação “doentia” (no bom sentido, sempre) de José Mojica Marins. São cemitérios, mulheres nuas, homens mascarados e açoitados, bundas com rostos humanos tatuados, escadas formadas por corpos.

Mas a grande jogada de Mojica, em Ritual dos Sádicos, é a estrutura fragmentada e repleta de auto-referências. O cineasta aproveita a popularidade em alta de seu personagem Zé do Caixão, e num exercício metalinguístico, encaixa participações reais suas em programas de TV, imagens de revistas em quadrinhos de horror, marchinhas de carnaval e cenas do longametragem Esta Noite Encarnarei No Teu Cadáver. O vilão Zé do Caixão não aparece como um ser real neste filme. Ele é visto apenas como uma entidade presente no inconsciente coletivo de seus personagens (e numa análise um pouco mais profunda, presente também no inconsciente do próprio expectador).

Ritual dos Sádicos é uma obra inovadora, ousada e genial. Inovadora pela estrutura. Ousada pelo contexto em que foi concebida (auge da ditadura militar). E genial quando vista como um exercício cinematográfico, como uma obra pessoal e única. Obra que o próprio Mojica só pôde ver, em sua completitude no ano de 1982, quando uma cópia foi encontrada, restaurada e exibida pela primeira vez, treze anos após a sua finalização.


José Mojica Marins: Primitivo?

O polêmico cineasta baiano Glauber Rocha foi o primeiro intelectual a reconhecer a genialidade de José Mojica Marins. Muito respeitado na época do Cinema Novo, Glauber definiu Mojica como genial e primitivo. Sua crítica positiva ajudou a aceitação de Mojica pelos pseudo-intelectuais da época. Infelizmente o adjetivo primitivo acabou sendo incorporado como uma das principais características do cinema de Mojica. O sofisticado Ritual dos Sádicos marca a ruptura do cineasta com este rótulo, embora Mojica nunca fosse verdadeiramente merecedor da definição de primitivo como primário ou pobre de linguagem. Primitivo apenas pelas condições precárias em que realizou seus primeiros filmes. Mas mesmo com toda esta precariedade Mojica fez obras arrebatadoras.

Entre outras premiações, Ritual dos Sádicos foi homenageado e vencedor dos prêmios de Melhor Ator (José Mojica Marins) e Melhor Roteiro (Rubens F. Lucchetti) no Rio-Cine Festival, em 1986.

Episódio 1: Cropofilia.

Dentro de uma pequena sala estão trancados uma bela jovem e vários homens. A câmera varre a parede forrada com fotos com mulheres nuas, um close no rosto dos homens mostra uma grande inquietação, uma certa ansiedade sexual pelo que estaria por vir. Após injetar LSD, a jovem lentamente retira as suas roupas, até ficar completamente nua. Então um dos homens começa a desembrulhar um pequeno pacote contendo um… penico. A excitação aumenta, em êxtase os homens observam a linda jovem “defecar”!!
Coprofilia: interesse psicopatológico por fezes e associação ao prazer sexual.

Episódio 2: Orgia.

Uma linda estudante, de mini-saias, aceita a carona de alguns hippies desconhecidos. Eles a levam até um local onde jovens malucos passam o tempo se drogando e cantando músicas da Jovem Guarda. Em pouco tempo, a estudante está dividindo um baseado com seus novos amigos. Após beber e fumar, a estudante sobe em cima de uma pequena mesa. Os garotos a cercam. Ela deixa então que todos lambam a sua… bem, vocês imaginam o quê. Impassível. Sem um gemido. Até que um deles consegue excitá-la, arrancando lhe a calcinha. Começa então uma seção de “dedadas” na garota (nem vou descrever a cena, deixo por conta da imaginação pervertida de cada leitor). Ah, tudo isso ao som da marcha assoviada“Colonel Bogey”, tema de A Ponte do Rio Kwai! É nesta hora que chega outro maluco, vestido como um profeta carregando um enorme cajado de madeira. O cajado é lentamente introduzido na adolescente, que parece gostar. Mas a “sacanagem” tem fim com a morte da garota.
Orgia: festividade na qual sobressaem atos de euforia, excesso de bebidas, desregramento e libertinagem; bacanal.

Episódio 3: Zoofilia.

Num outro episódio, uma madame encoraja a filha a transar com um empregado. Escondida no quarto, a mulher cheira cocaína e assiste excitada a relação sexual de sua filha. Enquanto acaricia um… pônei. Quanto ao sexo com animais, fica apenas esta forte insinuação, o ato em si não é mostrado.
Zoofilia: atração ou envolvimento sexual de humanos com animais.

Episódio 4: Estranho Tesão.

Em uma seqüência um tanto cômica, um homem se encontra com três lindas garotas. Após o uso do “tóchico”, elas ficam nuas e dão para ele.. as suas calcinhas. Excitado, o rapaz sente prazer lavando a roupa íntima das mulheres!!
Tesão: motivador de desejo sexual.

Episódio 5: Voyeurismo e coerção sexual.

Procurando por um emprego, Maria encara um terrível teste de admissão: satisfazer sexualmente seu entrevistador. O homem, um gordo que come um prato gigantesco de macarronada e fala de boca cheia, deixa claro suas “boas” intenções. Um bom emprego aguarda a linda Maria se ela for boazinha. Maria ora o vê como um porco, ora o vê como um cachorro. Mas Maria acaba aceitando seu destino. Ele a manda entrar num quartinho e tirar a roupa. Aparece então outro homem bem mais jovem que parte para cima de Maria. O gordo espia pelo buraco da fechadura, enquanto cheira cocaína e se masturba.
Voyeurismo: satisfação em observar pessoas.
 
Mojica na Ativa.


Tanto Zé do Caixão quanto seu criador José Mojica Marins, hoje com 70 anos, estão mais vivos do que nunca. Lançado em 2007, Encarnação do Demônio é o grand finale da trilogia sobre o filósofo funerário Josefél Zanatas (Zé do Caixão), da qual fazem parte também À Meia-Noite Levarei Sua Alma e Esta Noite Encarnarei No Teu Cadáver. Com um orçamento superior a R$ 1 milhão, o longa é a produção mais ambiciosa de Mojica. Encarnação do Demônio foi produzido por Paulo Sacramento (produtor deAmarelo Manga e diretor de O Prisioneiro da Grade de Ferro), teve os figurinos desenhados porAlexandre Herchcovitch e contou com atores do calibre de Luís Mello no elenco. O filme começa explicando como Zé do Caixão foi salvo do pântano em que se afogava (final de Esta Noite Encarnarei No Teu Cadáver). Mostra ainda, que mesmo depois de salvo, Zé enlouquece e acaba preso. E hoje, depois de trinta anos cumprindo pena por seus crimes, Zé é solto. Ele está de volta, impiedoso com a humanidade, preparado para terminar a busca pela mulher ideal, destinada a parir um filho seu. Bruno, seu ajudante, construiu um quartel general no meio de uma favela para seu mestre. Mas Zé terá que enfrentar um novo mundo, miserável e tão implacável como o próprio coveiro.

Foi para prender Zé do Caixão, acabou como ator.

Ritual dos Sádicos foi rodado em 1969, num pequeno prédio na região da Liberdade, centro de São Paulo. Com tantos tipos esquisitos entrando e saindo do edifício, algum vizinho acabou chamando a polícia e denunciando um suposto consumo de drogas no local. Duas viaturas dirigiram-se para lá, com policiais armados com metralhadores e toda aquela delicadeza característica dos militares numa época em que eles eram o governo. Depois de revistarem a todos e revirarem o local, sem encontrar nenhum sinal de entorpecentes, um dos policiais recebe uma proposta um tanto indecente de Mojica: substituir um dos atores que havia faltado (no caso, Jô Soares). O policial José Carlos Cotrin a princípio titubeou, mas acabou encarando o papel do empregador que exige favores sexuais da personagem Maria (interpretada pela bela Ítala Nandi). Resultado: Cotrin tornou-se ator e amigo de Mojica.

Ritual dos Sádicos ou O Despertar da Besta?

Ritual dos Sádicos era o título original quando o longa foi finalizado ainda nos anos 60. Já quando o filme foi lançado comercialmente (em festivais e mostras) em 1982, ele recebeu o novo título de O Despertar da Besta. O roteirista Rubens Francisco Lucchetti prefere o título original, mas O Despertar da Besta não deixa de ser um título coerente, já que na trama a droga seria o catalisador da maldade existente dentro do ser humano. A droga apenas despertaria a besta (representada simbolicamente pelo personagem Zé do Caixão, representado o mal e os desejos mais obscuros), encorajando ainda o homem a executar o que há de perverso em sua alma. A droga é a desculpa para o usuário exteriorizar seus sentimentos.



quinta-feira, 17 de março de 2016

CABEÇA DE PEDRA

Sem pau

A turma se achava da pesada. Quase gangue. Treinavam dia e noite para o dia em que o pau fosse comer firme - não importa contra quem e em qualquer lugar. Esse papo surgiu certa vez quando, pra variar, saíram da academia de porrada e foram tomar muitas num boteco sórdido Sabe como é: muito treino e... quebrar alguém, nunca. O lero filosófico de treinar pancadaria para manter o equilíbrio era encarado como coisa de goiaba. Até que um dia aconteceu. Foram para um baile nas quebradas do mundaréu. Lá, um da turma, entusiasmado pelo balde de rabo-de-galo que tinha tomado, se engraçou com uma menina de olhos azuis da cor do mar. Ela estava com o namorado. Um mirrado, seco, que não gostou da paquera e engrossou. A tropa se reuniu e mandou ele chamar a turma, porque bater em um só seria covardia. O desafeto disse que não tinha turma e que só andava na companhia de uma coisa, além de Deus. Antes que os brigões dissessem alguma coisa, o baixinho mostrou: o globo que refletia luz fez brilhar a lâmina da larga navalha. Havia um desenho nela - e o cabo era de osso. Num piscar de olhos o espirro de gente tirou os sapatos, as meias, colocou a arma branca e fatal entre os dedos - e um rabo de arraia cortou o ar. Todos correram como nunca. O salão inteiro, aliás. Ficou o casal sozinho olhando aquilo. A menina, de voz doce e meiga, então disse: "Na hora em que o pau come, nem sempre quem tem pau fica". E riu apaixonada para o seu herói.


terça-feira, 15 de março de 2016

FESTIVAL EXPRESS

Festival Express (2006)
No verão de 1970, um trem fretado cruzou o Canadá levando algumas das maiores bandas do mundo na época. The Grateful Dead, Janis Joplin, The Band, Buddy Guy e outras lendas viajaram juntas por cinco dias fazendo uma verdadeira festa dia e noite. Durante a jornada, de Toronto a Winnipeg, eles pararam nas maiores cidades do caminho e fizeram verdadeiros mega festivais de música. Essa viagem, pouca conhecida até então, foi gravada e hoje, quase 35 anos depois, vira um documentário musical que mostra como dormiam e divertiam-se no trem, além de exibir seus shows e entrevistas.
TRAILLER

segunda-feira, 14 de março de 2016

FOTOS

NO QUINTAL DE DONA ZEFA




Fotografias de Ricardo Silva

domingo, 13 de março de 2016

SOLDA

CÁUSTICO


SOLDA CÁUSTICO:http://cartunistasolda.com.br/

PAULO LEMINSKI


Parada cardíaca

Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.
Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.

quinta-feira, 10 de março de 2016

GEORGES PICHARD





MILLÔR FERNANDES

FÁBULAS FABULOSAS

O Grande Sábio e o Imenso Tolo

Por um acaso do destino, um velho e sábio professor e um jovem e estulto aluno se encontraram dividindo bancos gêmeos num ônibus interestadual. O estulto aluno, já conhecido do sábio professor exatamente por sua estultície, logo cansou o mestre com seu matraquear ininterrupto e sem sentido. O professor aguentou o quando pôde a conversa insossa e descabida. Afinal, cansado, arranjou, na sua cachola sábia, uma maneira de desativar o papo inútil do aluno. Sugeriu:
- Vamos fazer um jogo que sempre proponho nestas minhas viagens. Faz o tempo passar bem mais depressa. Você me faz uma pergunta qualquer. Se eu não souber responder, perco cem pratas. Depois eu lhe faço uma pergunta. Se você não souber responder, perde cem. 
- Ah, mas isso é injusto! Não posso jogar esse jogo – disse o aluno, provando que não era tão tolo quanto aparentava -, eu vou perder muito dinheiro! O senhor sabe infinitamente mais do que eu. Só posso jogar com a seguinte combinação: quando eu acertar, ganho cem pratas. Quando o senhor acertar, ganha só vinte. 
- Está bem – concordou o professor – pode começar.
- Me diz, professor – perguntou o aluno , o que é que tem cabeça de cavalo, seis patas de elefante e rabo de pau?
O professor, sem sequer pensar, respondeu:
- Não sei; nem posso saber! Isso não existe.
- O senhor não disse se devia existir ou não. O fato é que o senhor não sabe o que é – argumentou o aluno – e, portanto, me deve cem pratas. 
- Tá bem, eu pago as cem pratas – concordou o professor pagando -, mas agora é minha vez. Me diz aí: o que é que tem cabeça de cavalo, seis patas de elefante e rabo de pau?
- Não sei – respondeu o aluno. E, sem maior discussão, pagou vinte pratas ao professor.


Moral: A sabedoria, nos dias de hoje, está valendo 20% da esperteza.


quarta-feira, 9 de março de 2016

NANÁ VASCONCELOS

Naná Vasconcelos - Africadeus (live Rome '83)

Egberto Gismonti & Naná Vasconcelos 
Dança das Cabeças - Kaiser Bock Winter Festival 1996

terça-feira, 8 de março de 2016

domingo, 6 de março de 2016

RECEITA

Nicolas Behr


Ingredientes:

2 conflitos de gerações
4 esperanças perdidas
3 litros de sangue fervido
5 sonhos eróticos
2 canções dos beatles

Modo de preparar

dissolva os sonhos eróticos
nos dois litros de sangue fervido
e deixe gelar seu coração

leve a mistura ao fogo
adicionando dois conflitos de gerações
às esperanças perdidas

corte tudo em pedacinhos
e repita com as canções dos beatles
o mesmo processo usado com os sonhos
eróticos mas desta vez deixe ferver um
pouco mais e mexa até dissolver

parte do sangue pode ser substituído
por suco de groselha
mas os resultados não serão os mesmos
sirva o poema simples ou com ilusões


sábado, 5 de março de 2016

sexta-feira, 4 de março de 2016

O TRAÇO


por  Yuri Vasconcelos Silva

 
Um ponto, o toque do grafite no papel. É o zero em arquitetura, em desenho, na arte. Às vezes morre nisso mesmo, porque a ideia teima em não descer, não passar das pontas do dedo para o lápis. Quando há sorte, o ponto se estende em um traço. Gosto do traço reto. É objetivo, racional, um mínimo múltiplo que representa muitas formas sintetizadas em um gesto. O horizontal é a terra, o mundano, o humano. É o sentido natural do olhar. É cinemático. Representa aquilo que é seguro e estável. A linha vertical faz olhar para o alto. Não se conecta ao homem, está fora de nossa percepção ordinária. É extraordinário e transcende. Vai aos céus, esse local da busca constante do homem. Com os pés no chão, olhamos para as torres e catedrais, erguendo a cabeça para o alto e, conforme o estado da alma e da arte, ajoelhando-se. Estes objetos nos escapam e também nos esmagam com sua grandiosidade. A linha vertical é aquela que conecta a terra com o transcendental. As curvas são variações desnecessárias, habilidade que pertence à esfera natural. Jamais saberei traçar uma curva tão bem quanto o vento faz com as montanhas, a água faz com as pedras ou a terra faz com os troncos de árvores. Não tenho o tempo e a paciência de traçar a linha torta que leva mil anos para ficar perfeita e ainda não está terminada. O barroco das curvas é instrumento exclusivo da natureza – e exclui a criação do homem. A curva é divina. Para nós, sobram as retas. Elas se cruzam e criam ângulos. Elas se fecham em espaços bidimensionais. Planos, linhas que são arrastadas, partem espaços. Reservam algo para alguma função, mesmo que seja apenas a fruição. Como um bolo que é fatiado através do fio laminar em apenas dois golpes, duas linhas. Quando é concedido ao plano a liberdade de subir em outro eixo, para o alto, então ele ganha a existência tridimensional, o nosso universo. Desenhos ganham o espaço, tornam-se construções sólidas. Esculturas funcionais nas quais podemos entrar. Ou apenas sentar e apreciar. Saborear o objeto apenas com os olhos. Perceber o tempo passar através do lento avanço das sombras, da sutil mudança de cores. Por vezes, até mesmo alguma música vem à cabeça, uma trilha sonora pessoal para deleite do espaço. Não se trata apenas de pura construção organizada de blocos, cimento e ferro. É intencional e planejado para provocar respostas emocionais em todos que entram em contato com o objeto. Se nada provocar, nem mesmo algum estranhamento, então não é arquitetura. É apenas mais um lançamento no mercado imobiliário.


SOLDA

CÁUSTICO



SOLDA CÁUSTICO: http://cartunistasolda.com.br/ 

quinta-feira, 3 de março de 2016

quarta-feira, 2 de março de 2016

MILLÔR FERNANDES


FÁBULAS FABULOSAS

A baratinha velha subiu pelo pé do copo quase cheio de vinho, que tinha sido largado a um canto da cozinha, desceu pela parte de dentro e começou a lambiscar o vinho. Dada a pequena distância, que nas baratas vai da boca ao cérebro, o álcool lhe subiu logo a este. Bêbada, a baratinha caiu dentro do copo. Debateu-se, bebeu mais vinho, ficou mais tonta, debateu-se mais, bebeu mais, tonteou mais e já quase morria quando deparou com o carão do gato doméstico que sorria de sua aflição, no alto do copo.

- Gatinho, meu gatinho – pediu ela –, me salva, me salva. Me salva que assim que eu sair eu deixo você me engolir inteirinha, como você gosta. Me salva. - Você deixa mesmo eu engolir você? – disse o gato. - Me saaalva! – implorou a baratinha. – Eu prometo.

O gato virou o copo com uma patada, o líquido escorreu e com ele a baratinha que, assim que se viu no chão, saiu correndo para o buraco mais perto, onde caiu na gargalhada. - Que é isso? – perguntou o gato. – Você não vai sair daí e cumprir sua promessa? Você disse que deixava eu comer você inteira.

- Ah, ah, ah! – ria então a barata, sem poder se conter. – E você é tão imbecil a ponto de acreditar na promessa de uma barata velha e bêbada?

Moral: Às vezes a auto depreciação nos livra do pelotão.