Ritual de Sádicos / O Despertar da Besta
Original:Ritual de Sádicos / O Despertar da BestaAno:1969•País:BRASIL
Direção:José Mojica Marins
Roteiro:José Mojica Marins, Rubens F. Luchetti
Produção:José Mojica Marins, Giorgio Attili, George Michel Serkeis
Elenco:José Mojica Marins, Ângelo Assunção, Ronaldo Beibe, Andreia Bryan, João Callegaro, Ozualdo Ribeiro Candeias, Maurice Capovila, José Carlos, Maria Cristina, Emília Duarte, Jaciara Ducena, Jairo Ferreira, Jandira Gabriel, Graveto, Sérgio Hingst
Um renomado psiquiatra injeta doses de LSD em quatro voluntários com o objetivo de estudar os efeitos do tóxico sob a influência da imagem de Zé do Caixão. O personagem aparece de maneira diferente nos delírios psicodélicos e multicoloridos de cada um, misturando sexo, perversão, sadismo e misoginia. Interrogado por um grupo de intelectuais, o psiquiatra faz uma revelação surpreendente que os obriga a questionar suas convicções. Em pleno apogeu do amor livre, das drogas psicodélicas e dos hippies, Jose Mojica Marins concebeu seu filme mais contundente, revoltado e arrebatador através de episódios aparentemente sem ligação, aderindo à metalinguagem para analisar o efeito de seu polêmico personagem no inconsciente coletivo. O surreal nunca pareceu tão verdadeiro. Vetado pela Censura Federal mesmo após inúmeros cortes, o filme permanece inédito nas telas de cinema até hoje.
“O meu mundo é estranho, mas digno de todos que o queiram aceitar.
E nunca corrupto como querem fazê-lo.
Pois é composto, meu amigo, de pessoas estranhas, mas não mais estranhas que VOCÊ!!!!”
O mais maldito dos filmes dirigidos pelo mais maldito dos cineastas, Ritual de Sádicos (1969) teve sua exibição proibida pela censura do governo militar, que não satisfeita, tentou ainda destruir todas as cópias e negativos do filme. A insana viagem de José Mojica Marins e seu personagem Zé do Caixão ao mundo das drogas e da perversão acabou no limbo até o ano de 1982, quando foi restaurada e apresentada em mostras especializadas e festivais, com o título de O Despertar da Besta.
Ousada e polêmica, a película abordava diretamente, pela primeira vez no cinema brasileiro e em pleno auge da repressão militar, o uso de drogas como maconha, cocaína e LSD. Não apenas abordava, mas mostrava os personagens consumindo “tóxicos” (assim eram referidos os entorpecentes no filme) antes de sessões coletivas de coprofilia, sadismo, zoofilia e outras “perversões”.
Na trama, um renomado psiquiatra injeta doses de LSD em quatro voluntários, com o objetivo de estudar os efeitos da droga sob a influência do personagem fictício Zé do Caixão. O roteiro escrito pelo especialista em horror, Rubens Francisco Lucchetti (autor de dezenas de HQs e pocket books do gênero, além de parceiro habitual dos diretores Mojica e Ivan Cardoso), foi baseado num argumento do próprio Mojica e a princípio revela uma visão um tanto pessimista e perturbadora sobre uso de drogas ilícitas, ainda que o resultado da experiência e o desfecho do enredo condenem o personagem e não o uso dos entorpecentes.
Ritual dos Sádicos pode ser dividido em duas partes totalmente distintas. Na primeira metade são apresentados vários episódios aparentemente sem ligação, com momentos de degradação, consumo de drogas, desvios de comportamento e práticas sexuais um tanto controversas (principalmente quando consideramos a sociedade da época, sempre oprimida por imposições morais e artísticas do governo). Entre estes episódios se intercala o depoimento de um médico psiquiatra (interpretado Sérgio Hingst, grande nome do cinema de pornochanchada), entrevistado por quatro intelectuais (entre eles os cineastas Carlos Reichenbach, de Garotas do ABC e Maurice Capovilla, que dirigiria no próximo ano O Profeta da Fome, filme também protagonizado por Mojica). O médico é questionado sobre acontecimentos recentes envolvendo jovens e o uso de entorpecentes. O cineasta José Mojica Marinsacompanha calado o debate. Mojica interpreta a si mesmo e em determinado momento, quando os ideais de seu personagem são questionados, se defende: “Zé do Caixão ficou no cemitério! Quem está aqui é o cineasta”.
Na metade seguinte de Ritual de Sádicos, o psiquiatra explica a sua controversa pesquisa com o uso dos “tóxicos” (sempre pronunciado como “tóchicos”) e a exposição de suas cobaias a figura obscura do Zé do Caixão. Os atos devassos de suas cobaias teriam sido encorajados pelo uso das drogas ou por influência do agente funerário?
Um artifício curioso usado por Mojica em Ritual dos Sádicos é a inserção de uma apresentação de um programa televisivo de grande audiência na época, chamado “Quem tem medo da verdade?”. No programa, o cineasta José Mojica Marins tem sua criação e seu cinema julgados numa espécie de tribunal. Entre os componentes do júri estão diversas celebridades, como o compositor musicalAdoniram Barbosa, a atriz Consuelo Leandro e o narrador esportivo Silvio Luiz. Em defesa de Mojicaestá o diretor Carlos Manga (hoje responsável por mini-séries de sucesso na Rede Globo, como Agosto eEngraçadinha).
Um outro artifício empregado brilhantemente por Mojica é o uso de sequências coloridas, com um resultado semelhante ao do “inferno gelado” de Esta Noite Encarnarei No Teu Cadáver, representando aqui o delírio psicodélico dos participantes do experimento, rompendo o realismo quase jornalístico da fotografia em preto-e-branco predominante no restante do filme. Estas sequências representam o clímax da trama, dando vida a imaginação “doentia” (no bom sentido, sempre) de José Mojica Marins. São cemitérios, mulheres nuas, homens mascarados e açoitados, bundas com rostos humanos tatuados, escadas formadas por corpos.
Mas a grande jogada de Mojica, em Ritual dos Sádicos, é a estrutura fragmentada e repleta de auto-referências. O cineasta aproveita a popularidade em alta de seu personagem Zé do Caixão, e num exercício metalinguístico, encaixa participações reais suas em programas de TV, imagens de revistas em quadrinhos de horror, marchinhas de carnaval e cenas do longametragem Esta Noite Encarnarei No Teu Cadáver. O vilão Zé do Caixão não aparece como um ser real neste filme. Ele é visto apenas como uma entidade presente no inconsciente coletivo de seus personagens (e numa análise um pouco mais profunda, presente também no inconsciente do próprio expectador).
Ritual dos Sádicos é uma obra inovadora, ousada e genial. Inovadora pela estrutura. Ousada pelo contexto em que foi concebida (auge da ditadura militar). E genial quando vista como um exercício cinematográfico, como uma obra pessoal e única. Obra que o próprio Mojica só pôde ver, em sua completitude no ano de 1982, quando uma cópia foi encontrada, restaurada e exibida pela primeira vez, treze anos após a sua finalização.
José Mojica Marins: Primitivo?
O polêmico cineasta baiano Glauber Rocha foi o primeiro intelectual a reconhecer a genialidade de José Mojica Marins. Muito respeitado na época do Cinema Novo, Glauber definiu Mojica como genial e primitivo. Sua crítica positiva ajudou a aceitação de Mojica pelos pseudo-intelectuais da época. Infelizmente o adjetivo primitivo acabou sendo incorporado como uma das principais características do cinema de Mojica. O sofisticado Ritual dos Sádicos marca a ruptura do cineasta com este rótulo, embora Mojica nunca fosse verdadeiramente merecedor da definição de primitivo como primário ou pobre de linguagem. Primitivo apenas pelas condições precárias em que realizou seus primeiros filmes. Mas mesmo com toda esta precariedade Mojica fez obras arrebatadoras.
Entre outras premiações, Ritual dos Sádicos foi homenageado e vencedor dos prêmios de Melhor Ator (José Mojica Marins) e Melhor Roteiro (Rubens F. Lucchetti) no Rio-Cine Festival, em 1986.
Episódio 1: Cropofilia.
Dentro de uma pequena sala estão trancados uma bela jovem e vários homens. A câmera varre a parede forrada com fotos com mulheres nuas, um close no rosto dos homens mostra uma grande inquietação, uma certa ansiedade sexual pelo que estaria por vir. Após injetar LSD, a jovem lentamente retira as suas roupas, até ficar completamente nua. Então um dos homens começa a desembrulhar um pequeno pacote contendo um… penico. A excitação aumenta, em êxtase os homens observam a linda jovem “defecar”!!
Coprofilia: interesse psicopatológico por fezes e associação ao prazer sexual.
Episódio 2: Orgia.
Uma linda estudante, de mini-saias, aceita a carona de alguns hippies desconhecidos. Eles a levam até um local onde jovens malucos passam o tempo se drogando e cantando músicas da Jovem Guarda. Em pouco tempo, a estudante está dividindo um baseado com seus novos amigos. Após beber e fumar, a estudante sobe em cima de uma pequena mesa. Os garotos a cercam. Ela deixa então que todos lambam a sua… bem, vocês imaginam o quê. Impassível. Sem um gemido. Até que um deles consegue excitá-la, arrancando lhe a calcinha. Começa então uma seção de “dedadas” na garota (nem vou descrever a cena, deixo por conta da imaginação pervertida de cada leitor). Ah, tudo isso ao som da marcha assoviada“Colonel Bogey”, tema de A Ponte do Rio Kwai! É nesta hora que chega outro maluco, vestido como um profeta carregando um enorme cajado de madeira. O cajado é lentamente introduzido na adolescente, que parece gostar. Mas a “sacanagem” tem fim com a morte da garota.
Orgia: festividade na qual sobressaem atos de euforia, excesso de bebidas, desregramento e libertinagem; bacanal.
Episódio 3: Zoofilia.
Num outro episódio, uma madame encoraja a filha a transar com um empregado. Escondida no quarto, a mulher cheira cocaína e assiste excitada a relação sexual de sua filha. Enquanto acaricia um… pônei. Quanto ao sexo com animais, fica apenas esta forte insinuação, o ato em si não é mostrado.
Zoofilia: atração ou envolvimento sexual de humanos com animais.
Episódio 4: Estranho Tesão.
Em uma seqüência um tanto cômica, um homem se encontra com três lindas garotas. Após o uso do “tóchico”, elas ficam nuas e dão para ele.. as suas calcinhas. Excitado, o rapaz sente prazer lavando a roupa íntima das mulheres!!
Tesão: motivador de desejo sexual.
Episódio 5: Voyeurismo e coerção sexual.
Procurando por um emprego, Maria encara um terrível teste de admissão: satisfazer sexualmente seu entrevistador. O homem, um gordo que come um prato gigantesco de macarronada e fala de boca cheia, deixa claro suas “boas” intenções. Um bom emprego aguarda a linda Maria se ela for boazinha. Maria ora o vê como um porco, ora o vê como um cachorro. Mas Maria acaba aceitando seu destino. Ele a manda entrar num quartinho e tirar a roupa. Aparece então outro homem bem mais jovem que parte para cima de Maria. O gordo espia pelo buraco da fechadura, enquanto cheira cocaína e se masturba.
Voyeurismo: satisfação em observar pessoas.
Mojica na Ativa.
Tanto Zé do Caixão quanto seu criador José Mojica Marins, hoje com 70 anos, estão mais vivos do que nunca. Lançado em 2007, Encarnação do Demônio é o grand finale da trilogia sobre o filósofo funerário Josefél Zanatas (Zé do Caixão), da qual fazem parte também À Meia-Noite Levarei Sua Alma e Esta Noite Encarnarei No Teu Cadáver. Com um orçamento superior a R$ 1 milhão, o longa é a produção mais ambiciosa de Mojica. Encarnação do Demônio foi produzido por Paulo Sacramento (produtor deAmarelo Manga e diretor de O Prisioneiro da Grade de Ferro), teve os figurinos desenhados porAlexandre Herchcovitch e contou com atores do calibre de Luís Mello no elenco. O filme começa explicando como Zé do Caixão foi salvo do pântano em que se afogava (final de Esta Noite Encarnarei No Teu Cadáver). Mostra ainda, que mesmo depois de salvo, Zé enlouquece e acaba preso. E hoje, depois de trinta anos cumprindo pena por seus crimes, Zé é solto. Ele está de volta, impiedoso com a humanidade, preparado para terminar a busca pela mulher ideal, destinada a parir um filho seu. Bruno, seu ajudante, construiu um quartel general no meio de uma favela para seu mestre. Mas Zé terá que enfrentar um novo mundo, miserável e tão implacável como o próprio coveiro.
Foi para prender Zé do Caixão, acabou como ator.
Ritual dos Sádicos foi rodado em 1969, num pequeno prédio na região da Liberdade, centro de São Paulo. Com tantos tipos esquisitos entrando e saindo do edifício, algum vizinho acabou chamando a polícia e denunciando um suposto consumo de drogas no local. Duas viaturas dirigiram-se para lá, com policiais armados com metralhadores e toda aquela delicadeza característica dos militares numa época em que eles eram o governo. Depois de revistarem a todos e revirarem o local, sem encontrar nenhum sinal de entorpecentes, um dos policiais recebe uma proposta um tanto indecente de Mojica: substituir um dos atores que havia faltado (no caso, Jô Soares). O policial José Carlos Cotrin a princípio titubeou, mas acabou encarando o papel do empregador que exige favores sexuais da personagem Maria (interpretada pela bela Ítala Nandi). Resultado: Cotrin tornou-se ator e amigo de Mojica.
Ritual dos Sádicos ou O Despertar da Besta?
Ritual dos Sádicos era o título original quando o longa foi finalizado ainda nos anos 60. Já quando o filme foi lançado comercialmente (em festivais e mostras) em 1982, ele recebeu o novo título de O Despertar da Besta. O roteirista Rubens Francisco Lucchetti prefere o título original, mas O Despertar da Besta não deixa de ser um título coerente, já que na trama a droga seria o catalisador da maldade existente dentro do ser humano. A droga apenas despertaria a besta (representada simbolicamente pelo personagem Zé do Caixão, representado o mal e os desejos mais obscuros), encorajando ainda o homem a executar o que há de perverso em sua alma. A droga é a desculpa para o usuário exteriorizar seus sentimentos.
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