Cemitério de elefantes
POR ADEMIR LUIZ
Ao contrário do que reza a lenda, “Cidadão Kane” foi um sucesso de crítica e poderia ter sido um sucesso de público se não sofresse o boicote capitaneado pelo magnata das comunicações, e patriarca da imprensa marrom, William Randolph Hearst, que chegou a oferecer dinheiro para que o estúdio destruísse os negativos.
“O Nascimento de Uma Nação” já foi o melhor filme de todos os tempos. “O Encouraçado Potemkin” e “As Vinhas da Ira” também tiveram a honra. Desde 1971, com a eleição internacional realizada pela revista inglesa “Sight And Sound”, a coroa pertence a “Cidadão Kane”. Quase não há vozes dissonantes. Em todo caso, concordar ou não com esse diagnóstico não é relevante, diante da constatação inequívoca da grandeza do filme. “Cidadão Kane” simplesmente é. Sua própria existência trata-se de uma mirabolante obra do acaso. Como a surgimento do mundo. Estatisticamente não poderia acontecer. Diretor estreante, elenco inexperiente em cinema, roteirista problemático, um sem fim de experiências técnicas etc, etc, etc. Nem mesmo era a primeira opção. Orson Welles, o diretor, produtor, co-roteirista e protagonista, pretendia filmar “O Coração Das Trevas”, de Joseph Conrad. O estúdio, RKO, não permitiu a aventura. Diante da recusa, optou-se por analisar a decadência do sonho americano. O filme se chamaria “América”, e poderia ter sido sobre o milionário esquizofrênico Howard Hughes, o Aviador. Reestruturado e rebatizado “Cidadão Kane”, mudou-se o foco para o magnata das comunicações, e patriarca da imprensa marrom, William Randolph Hearst. Nasceu a obra-prima e começaram os problemas que transformariam Welles em um paria em Hollywood. O gênio que alcançou o auge aos 25 anos e daí em diante só decaiu.
Parecia a crônica de uma morte anunciada. Antes de revolucionar o cinema, Welles já havia revolucionado o teatro e o rádio. Em 1936 dirigiu uma montagem de “Macbeth”, de Shakespeare, com um elenco formado inteiramente por negros, com a ação passada no Haiti. Em 1938 espalhou pânico pelos Estados Unidos, ao dirigir uma adaptação radiofônica do clássico de ficção-científica “Guerra Dos Mundos”, de H. G. Wells, como se fosse um noticiário em tempo real. Resultado: suicídios, abortos espontâneos, capa da revista Time e contrato inédito em Hollywood, com liberdade artística quase total, algo, até então, inédito. Com toda pompa e circunstância, Welles desembarcou na capital do cinema com fama e atitudes de gênio precoce. Todos esperavam sua queda, que não demorou. O anjo vingador foi o próprio então velho e recluso Hearst, que não aprovou a “homenagem” e usou a força de seus jornais para boicotar o lançamento de “Kane”.
Não que Welles não fizesse por merecer tamanho prestígio. Seu filme deixou todos impressionados. Provavelmente, até mesmo Hearst que, é quase certo, assistiu-o escondido. O enredo narra os esforços do repórter Jerry Thompson, que nunca tem o rosto revelado, para reconstituir a trajetória do lendário Charles Foster Kane, um dos homens mais ricos e influentes do mundo. O ponto de partida seria a última palavra pronunciada por Kane no leito de morte: "rosebud". O que foi o botão de rosa? Eis a questão. Tentando decifrar o mistério, Thompson investiga e entrevista diversas pessoas que conviveram com o personagem, criando uma multifacetada teia de informações. Lê o diário de Walter Parks Thatcher, o banqueiro que tutelou a criação de Kane depois que sua família entregou-o à instituição que representava. Conversou com Jedediah Leland, antigo melhor amigo e posterior desafeto de Kane. Tentou extrair algo dos raros momentos de lucidez de Susan Alexander, cantora lírica fracassada, segunda esposa, dona de boate e pivô da derrocada política de Kane. Porém, como o mordomo é sempre o culpado, é justamente o mordomo de Xanadu, o magnífico e faraônico palácio de Kane, que leva Thompson a concluir que nenhum homem pode ser completamente compreendido. Ainda mais um grande homem.
Quem foi Kane? Um capitalista? Um comunista? Um patriota americano? Entusiasta do nazismo? A pergunta permanece sem resposta, tanto para Thompson quanto para o espectador. E é justamente essa dúvida que dá grandeza à obra. Sua trajetória representa a encarnação do sonho americano, a busca pela fama, fortuna, amor verdadeiro, imortalidade. Amigos e inimigos de Kane reconhecem sua iniciativa, muitas vezes travestida de idealismo. Característica que foi sendo minada pelo tempo e pelo acúmulo de fracassos, na vida pública e na particular. Perdeu esposa e filho em um acidente, jamais conseguiu ser eleito para um cargo público, abandonado pela segunda esposa, sabedor que traiu todos seus ideais de juventude, viu sua fortuna esvair-se por conta das próprias excentricidades. Quanto mais idoso e amargo Kane fica, mais seus defeitos tornam-se visíveis. Seu entusiasmo transforma-se em inércia, sua coragem em despotismo, sua autoconfiança em autocomiseração.
Talvez consciente do que se passava resolveu retirar-se do mundo. Retirar-se em grande estilo, como tudo o que fez. Constrói, sem nunca concluir, Xanadu, imensa propriedade que recebeu o mesmo nome do palácio de Kublai Khan, imperador dos tártaros. Sua fortaleza de solidão. Cheia de hóspedes que nunca vê. Animais exóticos que jamais visitou. Compra tudo o que o dinheiro pode comprar, de obras de arte caríssimas até bibelôs inúteis, sem nunca abrir as caixas. Xanadu é um grande mausoléu onde se isolou, como um elefante velho que sabe que vai morrer e afasta-se do grupo, em busca de um cemitério, que, por algum motivo, ele sabe onde fica.
Algumas das imagens mais impressionantes do filme tratam de signos de multiplicidade e impenetrabilidade. A cena dos espelhos, onde Kane se multiplica infinitamente ao longo de um corredor. A cena na qual um imenso quebra-cabeça é montado. E, sobretudo, as cenas de abertura e fechamento do filme, onde a câmera de Welles enfoca uma placa com os dizeres: entrada proibida. A entrada não é proibida somente em Xanadu, a entrada é vetada à alma de Kane. Depois de sua morte, só restaram quinquilharias que precisavam ser destruídas para desocupar o espaço. Incluindo “rosebud”, o trenó no qual brincava quando era uma criança pobre e despreocupada, embora, igualmente rebelde. Fim do mistério, “rosebud” é um trenó. Fim, ou não?
Poucos percebem que o mistério de “rosebud” é um falso problema. Kane, aparentemente, estava sozinho quando pronuncia a palavra-chave do filme. Só vemos a enfermeira entrar no quarto depois, pelo reflexo do peso de papel espatifado no chão. Será uma piada de Welles? Será que o mordomo estava escondido em algum canto fora de foco? Talvez não seja nada disso. Más línguas de Hollywood davam como certo que “botão de rosa” seria o apelido que Hearst deu para determinada parte da anatomia intima da jovem atriz Marion Davies, sua amante que inspirou a personagem Susan Alexander, interpretada por Dorothy Comingore. Isso explicaria o ódio do ofendido magnata contra um filme genial do qual ele poderia se orgulhar.
Ao contrário do que reza a lenda, “Cidadão Kane” foi um sucesso de crítica e poderia ter sido um sucesso de público se não sofresse o boicote capitaneado por Hearst, que chegou a oferecer dinheiro para que o estúdio destruísse os negativos. O RKO não aceitou e lançou-o. Agradou o público que pôde assisti-lo. Em cinema, salvo exceções pontuais, dificilmente se está adiante de seu tempo. Welles não foi um gênio incompreendido, foi um gênio infeliz na escolha dos inimigos. O grande mérito de Kane foi ser um filme de autor realizado dentro do sistema dos estúdios. Filme de autor? Eis outro aspecto relevante da mitologia acerca de “Kane”. Pauline Kael, decana da crítica cinematográfica norte-americana, no polêmico ensaio “Criando Kane”, demonstrou que as inovações técnicas e artísticas do filme representaram, acima de tudo, a junção de diversas experiências isoladas realizadas na época. Dentre elas estão o uso de “flashbacks” para desenvolver o enredo rocambolesco, planos seqüência longos e detalhados, transição musical entre as cenas, profundidade de campo que permitia deixar em foco tanto o primeiro quanto o segundo plano, diálogos sobrepostos, cenários com teto, utilização de pintura para criar ambientes e paisagens, ângulos de câmera inusitados fugindo do plano americano padrão etc, etc, etc. Kael não nega o brilhantismo de Welles, mas insiste na necessidade de distribuir os méritos com toda a equipe. Sobretudo com o roteirista Herman J. Mankiewicz, que, bebedor-mor de Hollywood, conhecia a intimidade da família Hearst e teria sido o responsável por alguns dos achados estilísticos da obra. Welles sentiu-se ofendido com as colocações da crítica. Polemizaram durante anos. A briga só ajudou a fortalecer a lenda em torno do melhor filme de todos os tempos... o melhor, até agora.
“O Nascimento de Uma Nação” já foi o melhor filme de todos os tempos. “O Encouraçado Potemkin” e “As Vinhas da Ira” também tiveram a honra. Desde 1971, com a eleição internacional realizada pela revista inglesa “Sight And Sound”, a coroa pertence a “Cidadão Kane”. Quase não há vozes dissonantes. Em todo caso, concordar ou não com esse diagnóstico não é relevante, diante da constatação inequívoca da grandeza do filme. “Cidadão Kane” simplesmente é. Sua própria existência trata-se de uma mirabolante obra do acaso. Como a surgimento do mundo. Estatisticamente não poderia acontecer. Diretor estreante, elenco inexperiente em cinema, roteirista problemático, um sem fim de experiências técnicas etc, etc, etc. Nem mesmo era a primeira opção. Orson Welles, o diretor, produtor, co-roteirista e protagonista, pretendia filmar “O Coração Das Trevas”, de Joseph Conrad. O estúdio, RKO, não permitiu a aventura. Diante da recusa, optou-se por analisar a decadência do sonho americano. O filme se chamaria “América”, e poderia ter sido sobre o milionário esquizofrênico Howard Hughes, o Aviador. Reestruturado e rebatizado “Cidadão Kane”, mudou-se o foco para o magnata das comunicações, e patriarca da imprensa marrom, William Randolph Hearst. Nasceu a obra-prima e começaram os problemas que transformariam Welles em um paria em Hollywood. O gênio que alcançou o auge aos 25 anos e daí em diante só decaiu.
Parecia a crônica de uma morte anunciada. Antes de revolucionar o cinema, Welles já havia revolucionado o teatro e o rádio. Em 1936 dirigiu uma montagem de “Macbeth”, de Shakespeare, com um elenco formado inteiramente por negros, com a ação passada no Haiti. Em 1938 espalhou pânico pelos Estados Unidos, ao dirigir uma adaptação radiofônica do clássico de ficção-científica “Guerra Dos Mundos”, de H. G. Wells, como se fosse um noticiário em tempo real. Resultado: suicídios, abortos espontâneos, capa da revista Time e contrato inédito em Hollywood, com liberdade artística quase total, algo, até então, inédito. Com toda pompa e circunstância, Welles desembarcou na capital do cinema com fama e atitudes de gênio precoce. Todos esperavam sua queda, que não demorou. O anjo vingador foi o próprio então velho e recluso Hearst, que não aprovou a “homenagem” e usou a força de seus jornais para boicotar o lançamento de “Kane”.
Não que Welles não fizesse por merecer tamanho prestígio. Seu filme deixou todos impressionados. Provavelmente, até mesmo Hearst que, é quase certo, assistiu-o escondido. O enredo narra os esforços do repórter Jerry Thompson, que nunca tem o rosto revelado, para reconstituir a trajetória do lendário Charles Foster Kane, um dos homens mais ricos e influentes do mundo. O ponto de partida seria a última palavra pronunciada por Kane no leito de morte: "rosebud". O que foi o botão de rosa? Eis a questão. Tentando decifrar o mistério, Thompson investiga e entrevista diversas pessoas que conviveram com o personagem, criando uma multifacetada teia de informações. Lê o diário de Walter Parks Thatcher, o banqueiro que tutelou a criação de Kane depois que sua família entregou-o à instituição que representava. Conversou com Jedediah Leland, antigo melhor amigo e posterior desafeto de Kane. Tentou extrair algo dos raros momentos de lucidez de Susan Alexander, cantora lírica fracassada, segunda esposa, dona de boate e pivô da derrocada política de Kane. Porém, como o mordomo é sempre o culpado, é justamente o mordomo de Xanadu, o magnífico e faraônico palácio de Kane, que leva Thompson a concluir que nenhum homem pode ser completamente compreendido. Ainda mais um grande homem.
Quem foi Kane? Um capitalista? Um comunista? Um patriota americano? Entusiasta do nazismo? A pergunta permanece sem resposta, tanto para Thompson quanto para o espectador. E é justamente essa dúvida que dá grandeza à obra. Sua trajetória representa a encarnação do sonho americano, a busca pela fama, fortuna, amor verdadeiro, imortalidade. Amigos e inimigos de Kane reconhecem sua iniciativa, muitas vezes travestida de idealismo. Característica que foi sendo minada pelo tempo e pelo acúmulo de fracassos, na vida pública e na particular. Perdeu esposa e filho em um acidente, jamais conseguiu ser eleito para um cargo público, abandonado pela segunda esposa, sabedor que traiu todos seus ideais de juventude, viu sua fortuna esvair-se por conta das próprias excentricidades. Quanto mais idoso e amargo Kane fica, mais seus defeitos tornam-se visíveis. Seu entusiasmo transforma-se em inércia, sua coragem em despotismo, sua autoconfiança em autocomiseração.
Talvez consciente do que se passava resolveu retirar-se do mundo. Retirar-se em grande estilo, como tudo o que fez. Constrói, sem nunca concluir, Xanadu, imensa propriedade que recebeu o mesmo nome do palácio de Kublai Khan, imperador dos tártaros. Sua fortaleza de solidão. Cheia de hóspedes que nunca vê. Animais exóticos que jamais visitou. Compra tudo o que o dinheiro pode comprar, de obras de arte caríssimas até bibelôs inúteis, sem nunca abrir as caixas. Xanadu é um grande mausoléu onde se isolou, como um elefante velho que sabe que vai morrer e afasta-se do grupo, em busca de um cemitério, que, por algum motivo, ele sabe onde fica.
Algumas das imagens mais impressionantes do filme tratam de signos de multiplicidade e impenetrabilidade. A cena dos espelhos, onde Kane se multiplica infinitamente ao longo de um corredor. A cena na qual um imenso quebra-cabeça é montado. E, sobretudo, as cenas de abertura e fechamento do filme, onde a câmera de Welles enfoca uma placa com os dizeres: entrada proibida. A entrada não é proibida somente em Xanadu, a entrada é vetada à alma de Kane. Depois de sua morte, só restaram quinquilharias que precisavam ser destruídas para desocupar o espaço. Incluindo “rosebud”, o trenó no qual brincava quando era uma criança pobre e despreocupada, embora, igualmente rebelde. Fim do mistério, “rosebud” é um trenó. Fim, ou não?
Poucos percebem que o mistério de “rosebud” é um falso problema. Kane, aparentemente, estava sozinho quando pronuncia a palavra-chave do filme. Só vemos a enfermeira entrar no quarto depois, pelo reflexo do peso de papel espatifado no chão. Será uma piada de Welles? Será que o mordomo estava escondido em algum canto fora de foco? Talvez não seja nada disso. Más línguas de Hollywood davam como certo que “botão de rosa” seria o apelido que Hearst deu para determinada parte da anatomia intima da jovem atriz Marion Davies, sua amante que inspirou a personagem Susan Alexander, interpretada por Dorothy Comingore. Isso explicaria o ódio do ofendido magnata contra um filme genial do qual ele poderia se orgulhar.
Ao contrário do que reza a lenda, “Cidadão Kane” foi um sucesso de crítica e poderia ter sido um sucesso de público se não sofresse o boicote capitaneado por Hearst, que chegou a oferecer dinheiro para que o estúdio destruísse os negativos. O RKO não aceitou e lançou-o. Agradou o público que pôde assisti-lo. Em cinema, salvo exceções pontuais, dificilmente se está adiante de seu tempo. Welles não foi um gênio incompreendido, foi um gênio infeliz na escolha dos inimigos. O grande mérito de Kane foi ser um filme de autor realizado dentro do sistema dos estúdios. Filme de autor? Eis outro aspecto relevante da mitologia acerca de “Kane”. Pauline Kael, decana da crítica cinematográfica norte-americana, no polêmico ensaio “Criando Kane”, demonstrou que as inovações técnicas e artísticas do filme representaram, acima de tudo, a junção de diversas experiências isoladas realizadas na época. Dentre elas estão o uso de “flashbacks” para desenvolver o enredo rocambolesco, planos seqüência longos e detalhados, transição musical entre as cenas, profundidade de campo que permitia deixar em foco tanto o primeiro quanto o segundo plano, diálogos sobrepostos, cenários com teto, utilização de pintura para criar ambientes e paisagens, ângulos de câmera inusitados fugindo do plano americano padrão etc, etc, etc. Kael não nega o brilhantismo de Welles, mas insiste na necessidade de distribuir os méritos com toda a equipe. Sobretudo com o roteirista Herman J. Mankiewicz, que, bebedor-mor de Hollywood, conhecia a intimidade da família Hearst e teria sido o responsável por alguns dos achados estilísticos da obra. Welles sentiu-se ofendido com as colocações da crítica. Polemizaram durante anos. A briga só ajudou a fortalecer a lenda em torno do melhor filme de todos os tempos... o melhor, até agora.
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