terça-feira, 10 de novembro de 2015
CABEÇA DE PEDRA
O terçol do olho cego
Não enxergo. Nasci assim. Não fiquem com pena. Desenvolvi ao máximo todas as sensibilidades possíveis. Tateio. Cheiro. Ouço. Penso. Meu mundo não é escuro. Porque são sei o que é a luz. Mas eu a sinto. Muito mais do que quem enxerga. Não gosto quando comparam os imbecis com a cegueira. Imbecil é quem faz isso. A convivência social é complicada. Odeio quem tem compaixão babaca ou fica perguntando sobre minhas dificuldades. Saio pouco de casa. Gosto de ouvir música clássica. Estou com um grande problema agora. Ainda não contei a ninguém. Comecei a sentir uma dor embaixo do olho esquerdo. Nasceu uma bolota. Terçol. A dorzinha incomoda, mas o que mais está me encafifando é que a coisa começou a aumentar muito e a tomar conta de todo o olho. Pior: ontem, ao acordar, eu percebi algo diferente e, pelo que já li e me falaram, tenho quase certeza de que era luz. Do dia. Não consegui interromper isso. Fiquei com medo. E se eu começar a ver tudo o que nunca vi em mais de trinta anos de vida? Não quero acabar com o meu mundo. Ele não é de trevas. Não precisa ser iluminado.
Não enxergo. Nasci assim. Não fiquem com pena. Desenvolvi ao máximo todas as sensibilidades possíveis. Tateio. Cheiro. Ouço. Penso. Meu mundo não é escuro. Porque são sei o que é a luz. Mas eu a sinto. Muito mais do que quem enxerga. Não gosto quando comparam os imbecis com a cegueira. Imbecil é quem faz isso. A convivência social é complicada. Odeio quem tem compaixão babaca ou fica perguntando sobre minhas dificuldades. Saio pouco de casa. Gosto de ouvir música clássica. Estou com um grande problema agora. Ainda não contei a ninguém. Comecei a sentir uma dor embaixo do olho esquerdo. Nasceu uma bolota. Terçol. A dorzinha incomoda, mas o que mais está me encafifando é que a coisa começou a aumentar muito e a tomar conta de todo o olho. Pior: ontem, ao acordar, eu percebi algo diferente e, pelo que já li e me falaram, tenho quase certeza de que era luz. Do dia. Não consegui interromper isso. Fiquei com medo. E se eu começar a ver tudo o que nunca vi em mais de trinta anos de vida? Não quero acabar com o meu mundo. Ele não é de trevas. Não precisa ser iluminado.
segunda-feira, 9 de novembro de 2015
O FIM É LINDO
por Fabrício Carpinejar
Minha casa é estranhamente regulada. Quando uma lâmpada queima, as outras vão junto. É um boicote que aumenta em minutos para testar a paciência. O gás da cozinha falta bem no momento da janta, e logo de madrugada, com o objetivo de me constranger ao telefone com uma lista infindável de entregadores. Se o computador estraga, o chuveiro também e o microondas sofre problemas de circuito. Confio que os aparelhos se imitam e conversam entre si. Devem reivindicar melhores condições de trabalho e uso, cobrar insalubridade, ou estão cansados das extensões e da sobrecarga indevidas. O certo é que minha casa é grevista. Insurgente. Nunca acontece de algo quebrar isoladamente.
Cheguei a minha residência depois de uma série de viagens. E mal acendi a luz, puf, puf, puf. Meu dedo estalou em cada interruptor. Teve até choque. Foi patético, para não dizer desanimador. Corredores mexendo as sombras, as paredes escorrendo a cegueira.
Mas, um pouco antes de explodirem, as lâmpadas aumentaram sua fosforescência. Puxaram todo o resto de força para refulgirem a extinção. Estenderam seus aros como nunca antes, com a potência de um refletor.
O mesmo ocorreu com o gás de cozinha, a chama das bocas subiu com perigosa curiosidade. Poderia ouvir o fogo gemer. Ele escurecia as bordas das panelas com sua assinatura. Quase formava os dedos de uma mão.
Conclui que o fim é lindo.
Assim como as luzes da casa e do fogão, o amor perto do desastre não se economiza. Não mais se contém. É desesperadamente transparente.
Um casal diante do fim terá a grande noite de sua vida por não prever uma próxima. Sairá do esconderijo porque não se vê mais seguro. Mostrará do que é capaz. Queimará o que guardou, não fará mais nenhum jogo, esquecerá a sedução e os conselhos dos amigos. Mais intensidade do que intenção.
É o escândalo da verdade. Tímidos se transformam em terroristas, calmos ficam enervados, pacientes se portam como histéricos. Por um instante, não há medo de fazer as propostas mais desvairadas, confessar palavras reprimidas, estender os olhos como um lençol limpo.
O fim é lindo. Do crepúsculo, de uma vela, de uma chuva. O fim é esperançoso, exigente. Pancadas de beleza. O som e o sol pulam como um suicida ao avesso para dentro da vida.
*Fabrício (Carpi Nejar) Carpinejar nasceu em Caxias do Sul – RS, em 23 de outubro de 1972, filho do poeta Carlos Nejar. É mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
FONTE:http://www.releituras.com/fcarpinejar_fim.asp
Minha casa é estranhamente regulada. Quando uma lâmpada queima, as outras vão junto. É um boicote que aumenta em minutos para testar a paciência. O gás da cozinha falta bem no momento da janta, e logo de madrugada, com o objetivo de me constranger ao telefone com uma lista infindável de entregadores. Se o computador estraga, o chuveiro também e o microondas sofre problemas de circuito. Confio que os aparelhos se imitam e conversam entre si. Devem reivindicar melhores condições de trabalho e uso, cobrar insalubridade, ou estão cansados das extensões e da sobrecarga indevidas. O certo é que minha casa é grevista. Insurgente. Nunca acontece de algo quebrar isoladamente.
Cheguei a minha residência depois de uma série de viagens. E mal acendi a luz, puf, puf, puf. Meu dedo estalou em cada interruptor. Teve até choque. Foi patético, para não dizer desanimador. Corredores mexendo as sombras, as paredes escorrendo a cegueira.
Mas, um pouco antes de explodirem, as lâmpadas aumentaram sua fosforescência. Puxaram todo o resto de força para refulgirem a extinção. Estenderam seus aros como nunca antes, com a potência de um refletor.
O mesmo ocorreu com o gás de cozinha, a chama das bocas subiu com perigosa curiosidade. Poderia ouvir o fogo gemer. Ele escurecia as bordas das panelas com sua assinatura. Quase formava os dedos de uma mão.
Conclui que o fim é lindo.
Assim como as luzes da casa e do fogão, o amor perto do desastre não se economiza. Não mais se contém. É desesperadamente transparente.
Um casal diante do fim terá a grande noite de sua vida por não prever uma próxima. Sairá do esconderijo porque não se vê mais seguro. Mostrará do que é capaz. Queimará o que guardou, não fará mais nenhum jogo, esquecerá a sedução e os conselhos dos amigos. Mais intensidade do que intenção.
É o escândalo da verdade. Tímidos se transformam em terroristas, calmos ficam enervados, pacientes se portam como histéricos. Por um instante, não há medo de fazer as propostas mais desvairadas, confessar palavras reprimidas, estender os olhos como um lençol limpo.
O fim é lindo. Do crepúsculo, de uma vela, de uma chuva. O fim é esperançoso, exigente. Pancadas de beleza. O som e o sol pulam como um suicida ao avesso para dentro da vida.
*Fabrício (Carpi Nejar) Carpinejar nasceu em Caxias do Sul – RS, em 23 de outubro de 1972, filho do poeta Carlos Nejar. É mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.