quinta-feira, 26 de junho de 2014

VOAR É COM OS PÁSSAROS


Brewster McCloud  (1970)


 Voar é com os pássaros é um filme curiosamente paradoxal: se é um dos exemplares mais evidentes do quanto o cinema de Robert Altman se deixou contagiar pelo clima de inovação narrativa próprio dos anos 70, com uma movimentação visual tomada pela vontade de voar que sua trama tematiza, este longa-metragem é também um diagnóstico severo sobre os limites dessa liberdade. Severo e bastante claro, a ponto de o filme intitulado originalmente com o nome de seu protagonista, Brewster McCloud, ter ganhado essa versão que explicita o tom de desilusão de seu enredo: Voar é com os pássaros. Aqui a ambição é livre, mas a quem está fora da sociedade e não dialoga com seus pares não resta caminho senão falhar. Ciente de ser uma versão hollywoodiana da lenda de Ícaro, Voar é com os pássaros é uma fábula que termina com autoconsciente amargura: no final das contas, nada resta senão seguir adiante com o espetáculo. Mas, ao mesmo tempo, esta fábula não constrói sua perspectiva a partir do ponto de vista conservador: ao contrário, Brewster McCloud, o filme, filia-se a seu protagonista, que por sua vez filia seu destino ao dos pássaros - a sempre pretender fazer mais do que pode. O filme sustenta esse sentimento presente na trama.

No primeiro momento do filme, o caminho de Brewster começa a se definir a partir da crise da situação estável inicial, quando Brewster mata seu patrão ricaço e sovina com a ajuda dos pássaros. Como numa variação do clássico Os Pássaros de Hitchcock, Brewster alia-se aos pássaros na sua revolta contra a civilização - e o faz a partir do momento em que se transforma em assassino; ou seja, para Brewster McCloud a possibilidade de voar é uma redenção para a morte. Ele mata sucessivamente para viver e quer voar para se sentir livre de uma sociedade que se apresenta como agressiva, autoritária e caótica, e é então que o envolvimento do desejo põe em jogo a sua vida. Este desejo de Brewster pela jovem Suzanne é definitivamente negativo para seus planos porque ele torna clara a sua distância dos pássaros: Brewster não é um deles, ele é apenas um rapaz esforçado. Assim, aquele rapaz que se sentiu do lado de fora de uma sociedade autoritária tem seu instante de vôo restrito ao espaço do circo; o sonho já nasce condenado a não poder escapar dos limites da tenda. Fábula pessimista, o filme se fecha como espetáculo circense, indicando que o sonho de alçar vôo pode ser destruído pela morte, mas o show não pára.

Se as tecnologias modernas como o cinema e a aviação trouxeram ao homem a possibilidade de voar, somente a sua própria ambição poderá fazê-lo ultrapassar os limites que sua condição inicial impõe. Brewster McCloud, o filme, realiza uma metáfora desse engajamento pela superação como que para evidenciar que somente dando asas e espaços a uma nova força poética que a criação poderá livrar-se do seu aspecto de circo fugaz. É preciso, para o filme, acreditar vitalmente na capacidade de ser como os próprios pássaros, de ter músculos para voar. Que o poema se finda em morte já é certo, mas isso não nega a aventura de romper os limites por alguns instantes. É uma ambição notável que o filme não abre mão de cumprir com inventividade até seu fim.


*Texto publicado originalmente no catálogo da mostra As Muitas Vidas de Robert Altman, que se realizou em maio e junho de 2008 nos CCBBs de Rio de Janeiro, SP e Brasília.

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