sábado, 31 de janeiro de 2015
CHARLES BUKOWSKI
quatro e meia da manhã
(Tradução: Jorge Wanderley)
os barulhos do mundo
com passarinhos vermelhos,
são quatro e meia da
manhã,
são sempre
quatro e meia da manhã,
e eu escuto
meus amigos:
os lixeiros
e os ladrões
e gatos sonhando com
minhocas,
e minhocas sonhando
os ossos
do meu amor,
e eu não posso dormir
e logo vai amanhecer,
os trabalhadores vão se levantar
e eles vão procurar por mim
no estaleiro
e dirão:
“ele tá bêbado de novo”,
mas eu estarei adormecido,
finalmente, no meio das garrafas e
da luz do sol,
toda a escuridão acabada,
os braços abertos como
uma cruz,
os passarinhos vermelhos
voando,
voando,
rosas se abrindo no fumo
e
como algo esfaqueado e
cicatrizando,
como 40 páginas de um romance ruim,
um sorriso bem na
minha cara de idiota.
FONTE:http://www.revistabula.com/835-os-10-melhores-poemas-de-charles-bukowski/
sexta-feira, 30 de janeiro de 2015
MANOEL DE BARROS
Autorretrato Falado
Venho de um Cuiabá de garimpos e de ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda no Beco da Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá entre bichos do chão,
aves, pessoas humildes, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar
entre pedras e lagartos.
Já publiquei 10 livros de poesia: ao publicá-los me sinto
meio desonrado e fujo para o Pantanal onde sou
abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me achei — pelo que
fui salvo.
Não estou na sarjeta porque herdei uma fazenda de gado.
Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral porque só faço
coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore.
quinta-feira, 29 de janeiro de 2015
CABEÇA DE PEDRA
Doença noticiosa
Não sabe como começou a ficar doente. Não sentia dor, mas a cada dia tudo ia perdendo a cor, interesse, brilho. Foi a todos os médicos possíveis e fez os exames. Nada! Psiquiatras, psicólogos, pais de santo, padres, pastores, ninguém conseguia identificar a origem daquilo. Um dia, descobriu. Foi por acaso. Tinha o costume de acompanhar o noticiário do Brasil e do mundo nos jornais impressos que assinava, nos sites, nos informativos de rádios e televisões. Por esquecimento, deixou de ler as páginas que chegavam de madrugada no jardim acondicionadas num saco plástico transparente. Quando se deu conta, estava mais esperto. Não ligou o computador, manteve o rádio mudo e a televisão como um quadro negro na parede da sala – para testar. Se sentiu tão bem, tão vivo, tão radiante, que foi dar uma volta na quadra e viu o quanto estavam belos os jardins dos vizinhos e as árvores das ruas. Sorriu e decidiu que nunca mais iria acompanhar as desgraças do mundo em forma de notícias. Só não contava com o telefone. No dia seguinte, logo cedo, um amigo ligou: “Viu que foi preso?”
CABEÇA DE PEDRA: http://cabecadepedra1.blogspot.com.br/
quarta-feira, 28 de janeiro de 2015
O Incrível Exército de Brancaleone
Branca! Branca! Branca! Leon, leon, leon! É esse o grito de guerra que embala mais uma maravilha da comédia italiana.
O Incrível Exército de Brancaleone (L’Armatta Brancaleone), lançado em 1966, serve até hoje como exemplo de filme sobre a época medieval (e, aliás, supera o humor bobo de Monty Python and the Holy Grail), sendo, ao mesmo tempo, uma maravilhosa comédia e uma das apresentações mais honestas sobre a época medieval que se pode ver hoje em dia.
Nessa maravilha da sétima arte, dirigida por Mario Monicelli e distribuída pela Titanus Film, não temos como personagem principal nenhum tipo de cavaleiro baitola que quer resgatar a amada, vingar o pai ou qualquer outro desses enredos clichês de filme. Brancaleone da Norcia (Vittorio Gassman) é um cavaleiro errante atrapalhado e mulherengo que tenta usar seu título de nobreza para aproveitar a vida, e, após ser abordado por um grupo de plebeus que o oferecem o título de posse de um feudo, parte em busca da glória e da fortuna em Aurocastro.
O filme, uma bela paródia a Dom Quixote, satiriza também a própria situação da Europa no século XI. Brancaleone e os quatro miseráveis famintos que acabam se tornando seu exército confrontam boa parte das grandes polêmicas da Baixa Idade Média. Percorrendo o longo caminho até Aurocastro no lombro do pangaré Aquilante (referência ao “Rocinante” do Quixote), Brancaleone se depara com a peste negra, bárbaros, piratas, leprosos, vigaristas e muito mais dos seres que povoavam a Europa medieval. Um dos pontos altos do filme é o encontro com o monge Zenone, que no meio do filme acaba recrutando Brancaleone e seu exército para lutar na guerra santa (o que, inclusive, gerou a maravilhosa continuação do filme: Brancaleone Alle Crociate)
Apesar de ser bem antigo, o filme até hoje parece ser o trabalho que melhor conseguiu ridicularizar o conceito de honra dos filmes e livros medievais. Como é dito na própria capa do DVD, você nunca verá O Senhor dos Anéis com os mesmos olhos após Brancaleone.
Enfim, eis aí uma comédia das melhores. Uma maravilha desde a primeira até a última cena. Recomendo a todos.
Não deixem de conferir também Brancaleone e as Cruzadas, onde Brancaleone enfrenta até a própria morte.
domingo, 25 de janeiro de 2015
PAULO LEMINSKI
Hai Kai
HAI
Eis que nasce completo
e, ao morrer, morre germe,
o desejo, analfabeto,
de saber como reger-me,
ah, saber como me ajeito
para que eu seja quem fui,
eis o que nasce perfeito
e, ao crescer, diminui.
KAI
Mínimo templo
para um deus pequeno,
aqui vos guarda,
em vez da dor que peno,
meu extremo anjo de vanguarda.
De que máscara
se gaba sua lástima,
de que vaga
se vangloria sua história,
saiba quem saiba.
A mim me basta
a sombra que se deixa,
o corpo que se afasta.
*Texto extraído do livro "Distraídos Venceremos". São Paulo: Brasiliense, 1987.
sábado, 24 de janeiro de 2015
sexta-feira, 23 de janeiro de 2015
LITTLE WALTER
Little Walter's Jump
Little Walter playing acoustically* (E harp, 2nd position - key of B), Hound Dog Taylor on guitar. From American Folk Blues Festival 1967, Germany. See "Legends Of: The American Folk-Blues Festivals"
quinta-feira, 22 de janeiro de 2015
O FIM É LINDO
Fabrício Carpinejar
Minha casa é estranhamente regulada. Quando uma lâmpada queima, as outras vão junto. É um boicote que aumenta em minutos para testar a paciência. O gás da cozinha falta bem no momento da janta, e logo de madrugada, com o objetivo de me constranger ao telefone com uma lista infindável de entregadores. Se o computador estraga, o chuveiro também e o microondas sofre problemas de circuito. Confio que os aparelhos se imitam e conversam entre si. Devem reivindicar melhores condições de trabalho e uso, cobrar insalubridade, ou estão cansados das extensões e da sobrecarga indevidas. O certo é que minha casa é grevista. Insurgente. Nunca acontece de algo quebrar isoladamente.
Cheguei a minha residência depois de uma série de viagens. E mal acendi a luz, puf, puf, puf. Meu dedo estalou em cada interruptor. Teve até choque. Foi patético, para não dizer desanimador. Corredores mexendo as sombras, as paredes escorrendo a cegueira.
Mas, um pouco antes de explodirem, as lâmpadas aumentaram sua fosforescência. Puxaram todo o resto de força para refulgirem a extinção. Estenderam seus aros como nunca antes, com a potência de um refletor.
O mesmo ocorreu com o gás de cozinha, a chama das bocas subiu com perigosa curiosidade. Poderia ouvir o fogo gemer. Ele escurecia as bordas das panelas com sua assinatura. Quase formava os dedos de uma mão.
Conclui que o fim é lindo.
Assim como as luzes da casa e do fogão, o amor perto do desastre não se economiza. Não mais se contém. É desesperadamente transparente.
Um casal diante do fim terá a grande noite de sua vida por não prever uma próxima. Sairá do esconderijo porque não se vê mais seguro. Mostrará do que é capaz. Queimará o que guardou, não fará mais nenhum jogo, esquecerá a sedução e os conselhos dos amigos. Mais intensidade do que intenção.
É o escândalo da verdade. Tímidos se transformam em terroristas, calmos ficam enervados, pacientes se portam como histéricos. Por um instante, não há medo de fazer as propostas mais desvairadas, confessar palavras reprimidas, estender os olhos como um lençol limpo.
O fim é lindo. Do crepúsculo, de uma vela, de uma chuva. O fim é esperançoso, exigente. Pancadas de beleza. O som e o sol pulam como um suicida ao avesso para dentro da vida.
*O poema acima foi extraído do livro "Canalha!", Ed. Bertrand Brasil - Rio de Janeiro, 2008, pág. 314.
DISCOTECA BÁSICA
Little Richard
Here's Little Richard (1957)
(Edição 72, Julho de 1991)
"A wop-bop-a-loo-bop-a-lop-bam-boom!... Tutti frutti, awrooty!"
O que exatamente quer dizer esta espécie de esperanto da selva, o mais célebre grito de guerra do rock'n'roll?
Exegetas atenciosos concordariam que tem algo a ver com o Poder Feminino, pelos parcos versos em inglês e suas referências a mulheres que jogam os quadris para o leste e oeste, garotas como "Sue... ela sabe exatamente o que fazer" e "Daisy... ela sempre me leva à loucura". Versos cuspidos como que por uma metralhadora encharcada de adrenalina, pelo homem que - ao trocar o rock'n'roll pelo gospel - declarou: "Eu era um homossexual descarado até Deus me transformar."
O compacto contendo "Tutti Frutti" surgiu do nada, em 1955, para vender mais de um milhão de cópias. Como a garotada poderia permanecer imune? O próprio Elvis parecia uma freira perto de Little Richard, com seu ritmo atropelador, cabelo armado num pompadour, rosto maquiado e dois faróis de pura ameaça no lugar dos olhos. Os limites estavam traçados: até hoje não apareceu nada tão selvagem ou brutal no picadeiro pop. O fato de o próprio Prince lembrar tanto a ambigüidade-com-bigodinho de Richard fala por si só. Assim como o gesto de seu conterrâneo James Brown - ambos, assim como Otis Redding, nasceram em Macon, Geórgia -, capturando os Upsetters, banda de apoio de Richard, quando este trocou palcos profanos pelos púlpitos do circuito evangélico.
Entre 55 e 58 (data e sua primeira conversão à igreja), a fórmula mágica do primeiro single rendeu uma saraivada de hits/clássicos. "Long Tall Sally" - apesar de posteriormente gravada por Elvis e pelos Beatles - consagrou-se como vítima de uma das maiores injustiças/ironias da civilização: a gravação mais vendida mundialmente foi a de Pat "Ser Bom Rapaz Foi O Meu Mal" Boone. Seguiram-se "Slippin' An Slidin", "Ready Teddy", "Jenny Jenny", "Good Golly Miss Molly" e "Lucille".
As últimas duas não foram incluídas neste LP, mas aqui estão gravações originais para o selo Specialty. Em 64, Little Richard as regravaria para a Vee-Jay, responsável pelo Greatest Hits disponível - lançado aqui, em 88, pela Som Livre, com o título Os Grandes Sucessos. Por outro lado, esta pseudocoletânea da Vee-Jay contém uma preciosidade que não pode ser desprezada, o único Little Richard pós-58 realmente fundamental: "I Don't Know What Got You But It's Got Me". Segundo o expert Peter Guralnick, "junto com 'The Dark End Of The Street', de James Carr, talvez a maior balada soul de todos os tempos" - com um detalhe: Jimi Hendrix na guitarra.
As outras faixas de Here's Little Richard apresentam um contraste interessante com a histeria de "Tutti Frutti" e derivadas, deixando à mostra o débito para com a tradição rhythm'n'blueseira de Nova Orleans - especialmente o boogie woogie preguiçoso de Fats Domino. Esta cidade, tão importante para a música negra americana, também foi sempre rica em excêntricos, extravagantes e aloprados como Professor Longhair - e duas figuras desta galeria são apontadas como fontes para a taquicardia sonora de Little Richard: Billy Wright (para o vocal) e Esquerita (piano, pompadour e bigodinho). Mas não há como compará-los à força bruta do "pequeno" Richard Penniman. Paul McCartney - que passou a vida imitando seu uivo em falsete - que o diga.
José Augusto Lemos
terça-feira, 20 de janeiro de 2015
HORÓSCOPO
por Zé da Silva
Capricórnio
não há poesia neste temporal porque ele me encharca a alma podre e começo a sentir o fedor de mim mesmo como se tivesse morrido mas não perdido os sentidos chove chuva o caralho porque não tenho teto e todos os abrigos e buracos estão ocupados por seres/vermes como eu nesta cidade sorriso desdentado e dominada por seres bem piores do que pois desonestos que se acham honestos perderam o senso o pudor a vergonha compraram imóveis carros gente um raio no céu mas não cai na cabeça de nenhum deles porque parecem protegidos e eu aqui com minha guimba despedaçada no bolso minha cueca furada e cagada pinto molhado no lixo urbano rezando por uma pneumonia fulminante para ser comido pelos vermes decentes pois os vermes estes que estão aí estes comeram a minha alma antes de eu nascer.
não há poesia neste temporal porque ele me encharca a alma podre e começo a sentir o fedor de mim mesmo como se tivesse morrido mas não perdido os sentidos chove chuva o caralho porque não tenho teto e todos os abrigos e buracos estão ocupados por seres/vermes como eu nesta cidade sorriso desdentado e dominada por seres bem piores do que pois desonestos que se acham honestos perderam o senso o pudor a vergonha compraram imóveis carros gente um raio no céu mas não cai na cabeça de nenhum deles porque parecem protegidos e eu aqui com minha guimba despedaçada no bolso minha cueca furada e cagada pinto molhado no lixo urbano rezando por uma pneumonia fulminante para ser comido pelos vermes decentes pois os vermes estes que estão aí estes comeram a minha alma antes de eu nascer.
quinta-feira, 15 de janeiro de 2015
sexta-feira, 9 de janeiro de 2015
SALGADO NO MON
por Yuri Vasconcelos Silva
Um grande fotógrafo de Palmeira dos Índios, interior de Alagoas, constatou o que já sabia por instinto. Não é necessário se ater às regras para produzir uma bela fotografia. Ele gastou duas horas para percorrer as galerias da mostra Gênesis, de Sebastião Salgado, no MON. Só saiu porque um segurança pediu. Era hora de o museu fechar.
Todo ofício que habita terras da criação precisa ser inspirado, aprendido e testado. No início, durante a aprendizagem, os artistas absorvem as técnicas e truques para alcançar a obra que cutuca em algum lugar dentro da mente. Na fotografia não é diferente. Na verdade, a técnica é fundamental. Lida-se com um equipamento complicado e traiçoeiro, que usa como matéria de impressão a tão presente e também imaterial luz. Complicado. Com o tempo, a máquina revela seus segredos – até, por fim, estar adestrada na mão do profissional ou amador. O controle do tempo de exposição, da abertura do obturador, o alinhamento do horizonte, a proporção de ouro, o foco e o iso. Tudo pode ser aprendido. Mas para o principiante tornar-se mestre, é preciso coragem para se libertar das regras. A subversão é o último estágio para um artista ser completo.
O que o fotógrafo constatou nas inspiradoras imagens captadas pelo olho de Salgado foi a busca pela força bruta da natureza selvagem congelada em um instante. A essência que emerge das paisagens em luzes e breus nos quatro cantos do planeta podem parecer uma invenção do artista. Não se assemelha em nada com a paisagem que os espectadores estão acostumados a viver. Salgado emoldura ambientes oníricos. São catedrais de pedras, curvas de areias, cidades de troncos ou castelos brancos de gelo. Os que habitam estas terras são seres tão exuberantes quanto os lugares onde nascem e morrem. A máquina de Salgado parece sugar os olhares e sentimentos de cada personagem retratado, impressos no papel fotográfico para deleite particular de cada visitante na exposição. Mas alguns olhares também prendem o fotógrafo para sempre na obra do artista. Ao aproximar bem a visão, é possível ver o reflexo de Salgado no olho de um bicho. É emocionante! As texturas, a granulometria da foto impressa, os espaços negativos e positivos são puro jogo estético de linhas e formas. Algumas fotos são tão gráficas que mal compreende-se do que se trata.
O fotógrafo de Palmeira dos Índios ouve então a conversa de um casal, com Canons penduradas em seus pescoços. O casal coloca em dúvida a qualidade do material, pois detectaram linhas de horizontes tortas, grânulos grandes demais, enquadramentos cortados. O fotógrafo passa por eles e diz:
“Voltem e comecem tudo de novo. Se afastem da lógica. Mergulhem em cada foto. Quando sentirem um formigamento, verão arte”