quarta-feira, 9 de novembro de 2016

GRACILIANO RAMOS

(Trecho final de São Bernardo)


A agitação diminui. 
- Estraguei a minha vida estupidamente. 
Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos ... Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu. 
Não consigo modificar-me, é ò que me aflige. 
A molecoreba de Mestre Caetano arrasta-se por aí, lambuzada, faminta. A Rosa, com a barriga quebrada de tanto parir, trabalha em casa, trabalha no campo e trabalha na cama. O marido é cada vez mais molambo. E os moradores que me restam são uns cambembes como ele. 
Para ser franco, declaro que esses infelizes não me inspiram simpatia. Lastimo a situação em que se acham, reconheço ter contribuído para isso, mas não vou além. 
Estamos tão separados! A princípio estávamos juntos, mas esta desgraçada profissão nos distanciou. Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo. 
Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins. 
E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda a parte! 
A desconfiança é também consequência da profissão. 
Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.
Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio.

Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas. 
A vela está quase a extinguir-se. Julgo que delirei e sonhei com cheios e uma figura de lobisomem. Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. 
Entretanto o luar entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão. 
É horrível! Se aparecesse alguém ... Estão todos dormindo. Se ao menos a criança chorasse ... 
Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria! Casimiro Lopes está dormindo. 
Marciano está dormindo. Patifes! E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos.

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