quinta-feira, 30 de abril de 2015

CABEÇA DE PEDRA


Um vulto que surge no fundo do olho do caranguejo amputado

Ele foi criado dentro do ralo ao lado das mesas do necrotério onde se faziam as autópsias. Se alimentava de pedaços de seres humanos que para lá escorriam. Quando estava grande e gordo, foi comido com todo gosto por um dos vigias do local que ali o colocou para isso mesmo. Ele leu essa história há anos numa reportagem da revista Realidade e ficou pensando no bicho. Imaginou até o que seria dele se um dia escapasse pelas ruas do Rio de Janeiro, onde o fato aconteceu. Anos depois, visitando um paraíso ecológico 400 quilômetros dentro do Atlântico, ficou paralisado ao ver aquele que via só na imaginação. Estava encimado em pedras vulcânicas negras, suas cores eram fortes e mexia apenas os dois olhos que pareciam saltar daquela carapaça. Notou que uma das pernas dele desaparecera, amputada. Foi então que se aproximou e viu: um vulto em pé no fundo de um dos olhos do caranguejo. Forçou a visão e ali estava o homem que tratou da criatura que depois o alimentou.

sábado, 25 de abril de 2015

quinta-feira, 23 de abril de 2015

INFIDELIDADE FEMININA


por  Fabrício Carpinejar


Não sei se as mulheres sabem trair melhor os homens ou eles são tão ciumentos que não escolhem os verdadeiros indícios.

Certo é que os homens são precipitados, revelam suas escapadas para tentar inclusive salvar o casamento. Ficam engatilhados com o pecado, ansiosos, esperando o primeiro cutucão do silêncio para disparar a confissão (o negócio é deixar a televisão sempre ligada). As mulheres só revelam como um ultimato, quando estão dispostas a terminar de vez com o casamento e não acharam nenhuma maneira cortês de mandá-lo embora.

O homem é corno desde o ventre, quando perde a exclusividade de sua mãe. Depois resta como consolação ser manso ou ativo.

Por prevenção, repasso dicas para se manter atento às investidas dela.

As traições femininas costumam irromper no ambiente de trabalho. Com a falta de tempo, o entusiasmo sexual se revela pela cumplicidade profissional. Não será muito longe do escritório. Ela vai começar a elogiar uma parceria, dedicar-se a um projeto com uma disposição sobrenatural, tomando as horas de lazer e os finais de semana. Não falará de outra coisa e se penalizará diante do término da sexta-feira. Pode esquecer a sesta. Qualquer reclamação de sua parte cairá mal, como ciúme da independência dela. Não há o que palpitar, todo comentário correrá o risco de ser enquadrado como machismo.

Diante da inoperância de sua reação, ela vai elogiar o sujeito daquela parceria, destacar o raro entendimento dos problemas, a afinidade de preferências e escolhas.

Entrou no jogo de insinuações, sem nota fiscal. Tipo assim: você não é aquilo que ele é.

Controle-se, ainda não é oportuno meter o bedelho, apesar de perceber que o cara se tornou assunto obrigatório e referência constante nas conversas. Deve compreender que ele levantou a estima de sua parceira e, por conseqüência, possibilitou sua sonhada liberação para o futebol. É um amigo, coloque na cabeça, não é elegante isolá-la das amizades heterossexuais. Soa como tirania. Precisa confiar. Cuidará antes da úlcera que surgiu, sem explicação nenhuma, na última semana. Volte para academia e tome menos café.

O próximo passo é definitivo. Num jantar prosaico, com o claro objetivo de relaxar, ela criticará abertamente a namorada dele com uma paixão incomum, unicamente vista no início da relação de vocês. Comentará defeitos, exemplificará cenas de descaso e abrirá detalhes estranhos do convívio dos dois. Em seguida, sentirá uma coceira na garganta: “Como ela conhece tanto?” A coceira atinge à úlcera que não teve tempo de curar: “Será que ela confidencia o mesmo de mim?”

Duro aturar o processo, mas permaneça tranqüilo, enfrentou o pior com dignidade; ela não dirá mais nada pela frente. É o momento de procurar ajuda. Ou porque ela está o traindo ou porque você está seriamente paranóico.




SOLDA

CÁUSTICO


SOLDA CÁUSTICO: http://cartunistasolda.com.br/

FAB CIRAOLO








quarta-feira, 22 de abril de 2015

ALBERTO CAEIRO


O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...



*Alberto Caeiro, em "O Guardador de Rebanhos", 8-3-1914

FONTE: http://www.insite.com.br/art/pessoa/index.php

DISCOTECA BÁSICA

THE WHO | TOMMY (1969)


 por Tiago Ferreira

Com uma guitarra na mão e inúmeras ideias na cabeça, Pete Townshend moldou todo o cenário do rock. Depois da bombástica estreia, sua inconstância se tornaria presente para a elaboração de uma estética que ampliou as ramificações da música pop.
Antes disso, muitas de suas guitarras tiveram que ser sacrificadas; as cáusticas performances da banda durante a execução de “My Generation” estavam começando a irritar o epicentro do The Who.

Roger Daltrey (vocal), Keith Moon (bateria) e John Entwhistle (baixo) ainda se empolgavam com o ritmo contagiante de fúria roqueira diante de um público sedento por apresentações memoráveis. Entretanto, Townshend se sentia artisticamente diminuído ao continuar repetindo aquilo que iniciou com tanta ênfase.
Ele não admirava sua virtuosidade no instrumento. “Se eu pareço um grande guitarrista, simplesmente é uma particularidade minha: soar como um grande guitarrista que não sou”, declarou Townshend a Jann Wenner. Ele sempre preferiu aperfeiçoar suas habilidades como compositor. E se tornou uma das principais engrenagens do rock.

The Who Sell Out (1967) foi o primeiro dos grandes experimentos da banda. O álbum simula a transmissão de uma rádio pirata, em contraponto aos argumentos de parte da imprensa e de alguns fãs que reclamavam que o The Who estaria se vendendo. Os arranjos foram trabalhados mais densamente, com a inserção de vocais de fundo que enalteciam o poder lírico das canções.

Mas é em 1969 que seria lançado o álbum que fincou de vez a capacidade de uma produção literária e musical ao mesmo tempo: Tommy marcaria ainda mais a onipresença do The Who na importância da música.
Foi o primeiro trabalho de ópera-rock. Seguia com faixas que contavam a história de Tommy, um garoto que presenciou através de um espelho o assassinato do amante de sua mãe pelo próprio pai, renomado militar que acabara de voltar da Primeira Guerra Mundial.

É uma história que vislumbra os aspectos metafísicos do jovem garoto. Em “Amazing Journey”, os vocais de Daltrey procuram um sentido de identificação, mesmo depois de o garoto ficar surdo, cego e mudo por pressão dos pais. ‘A doença certamente dominará a mente/Para onde as mentes não costumam ir/Venha, incrível viagem/E ensine tudo o que [o garoto] deveria saber’.
O álbum discorre sobre toda a dor e a ingenuidade do garoto de 10 anos que perdeu todos os sentidos. Daltrey dramatiza a dor de Tommy em diversos momentos, como em “Christmas”, onde situa o desconhecimento do garoto diante de uma comemoração natalina. Como observador, o vocal tenta compartilhar a data causando mais dor ao mobilizá-lo: ‘Tommy, pode me escutar?’.

Para a sonoridade do álbum, o mesmo cuidado nos arranjos de The Who Sell Out foi mantido para explorar os sentimentos mais intensos que o trabalho exigia. Além dos convencionais guitarra/baixo/bateria, compunham o álbum órgãos, trompetes, pianos e diversos truques de vozes.
Em “Pinball Wizard”, o garoto exibe suas habilidades intuitivas e mostra ser capaz de cura, em um rock’n roll envolvente que rememora os clássicos tempos de euforia de My Generation (1965).

Um doutor examina o garoto e conclui que ele oculta um sentimento interior que repele sua capacidade de recuperar os sentidos. Ele ouve, vê e fala, mas tem que se libertar de um aprisionamento existencial. O pai sugere que ele volte ao espelho, mas a mãe o quebra tentando impedir que o garoto um dia espalhe o ocorrido em “1921”.
Por meio de sua experiência, Tommy tenta mostrar o caminho da salvação para os necessitados assumindo um papel parecido ao ‘Messias na Terra’. “I’m Free” explora este sentimento convidativo do rapaz à procura de seguidores. Indo a fundo nessa trajetória, Tommy tenta cativar pessoas comuns a trilharem seus passos. ‘Venha para esta casa/Seja um de nós/Faça dela a sua casa’, conclama, tal qual um anfitrião do paraíso.

Porém, a convite de um tio, o garoto encontra hóspedes que se recusam a aceitar sua bondade e contestam o andamento dos fatos. Com bombásticas declarações, eles confundem o rapaz.
Então a última faixa, “We’re Not Gonna Take It”, revela que Tommy foi explorado por seus parentes graças aos seus distúrbios psicológicos. A letra retoma a “Go To The Mirror!”, quando o garoto começa a retomar os sentidos, causando uma dúbia interpretação à ópera.

Tommy significou um passo avante do The Who e do próprio rock ao estrelato do lirismo. Provou que a geração de Townshend e companhia estavam evoluindo para romper ainda mais as barreiras da música pop.
E você acha que o The Who se inquietou? O melhor trabalho ainda estaria por vir em 1971, quando Townshend expôs seu ‘arquivo de preciosidades’ e lançou o estupendo Who’s Next.