terça-feira, 24 de agosto de 2010

O RESTO IMORTAL

de Paulo Leminski

Queria não morrer de todo. Não o meu melhor. Que o melhor de mim ficasse, já que sobre o além sou todo dúvida. Queria deixar aqui neste planeta não apenas um testemunho da minha passagem, pirâmide, obelisco, verbetes numa obscura enciclopédia, campos onde não crescem mais capim.

Queria deixar meu processo de pensamento, minha máquina de pensar, a máquina que processa meu pensamento, meu pensar transformado em máquina objetiva, fora de mim, sobrevivendo a mim.

Durante muito tempo, cultivei esse sonho desesperado. Um dia, intui. Essa máquina era possível.

Tinha que ser um livro.

Tinha que ser um texto. Um texto que não fosse apenas, como os demais, um texto pensado. Eu precisava de um texto pensante. Um texto que tivesse memória, produzisse imagens, raciocinasse.

Sobretudo, um texto que sentisse como eu.

Ao partir, eu deixaria esse texto como um astronauta solitário deixa um relógio na superfície de um planeta deserto.

Claro que eu poderia ter escolhido um ser humano para ser essa máquina que pensasse como eu penso. Bastava conseguir um aluno. Mas pessoas não são previsíveis. Um texto é.

A impressão do meu processo de pensamento não poderia estar na escolha das palavras nem no rol dos eventos narrados. Teria que estar inscrito no próprio movimento do texto, nos fluxos da sua dinâmica, traduzido para o jogo de suas manhas e marés.

Um texto assim não poderia ser fabricado nem forjado. Só poderia ser desejado. Ele mesmo escolheria, se quisesse, a hora de seu advento.

Tudo o que eu poderia fazer nessa direção era estar atento a todos os impulsos, mesmo os mais cegos, nunca sabendo se o texto estava vindo ou não.

Era óbvio, um texto assim teria, no mínimo, que levar uma vida humana inteira. Na melhor das hipóteses.

Uma questão colocou-se desde o início. A tensão da espera de um tal texto poderia ser o maior obstáculo para seu surgimento. Quanto a isto, não havia solução. A questão teria que ser vivida em nível de enigma e conflito, sigilo e dissimulação.

Evidentemente que o texto que resultasse desse estado deveria, por força, reproduzí-lo em sua essencial perplexidade. A máquina-texto que surgisse não seria um todo harmonioso, já que a harmonia só convém às coisas mortas. O que eu pretendia era uma coisa viva, uma vida que me sobrevivesse. E a vida é contraditória.

Não sei mais de esse texto virá. Ou se já veio.

Tudo o que quero é que, se vier, se lembre de mim tanto quanto eu soube desejá-lo.

fonte: http://jornale.com.br/zebeto/

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