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Por Raffael Zabbot
Há filmes que nos deixam pertubados, com um nó na garganta e a mais profunda sensação de miséria. Essa sensação incômoda é uma constante no cinema de guerra, principalmente quando ele se utiliza das possibilidades gráficas inerentes ao gênero. É um feito e tanto que O Túmulo dos Vagalumes, o anime clássico de Isao Takahata, consiga ser ainda mais inquietante e visceral que O Resgate do Soldado Ryan e A Lista de Schindler juntos, e apenas com uma carga mínima e necessária de violência. Não, o poder de O Túmulo dos Vagalumes não reside em ferimentos expostos ou numa polarização explícita de bem contra o mal. O drama, aqui, não se constrói nesses termos.
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Kobe, Japão, 1945. Seita é um pré-adolescente responsável, que ajuda a mãe nos afazeres domésticos (enquanto o pai, um marinheiro, luta no front) e, principalmente, toma conta de sua irmã mais nova, a pequena Setsuko. Quando a cidade – já então uma das maiores do Japão – é atacada por bombardeiros americanos, a mãe deles é brutalmente carbonizada e não resiste. Para desespero ainda maior dos novos órfãos, sua residência foi dizimada a pó, e, sem teto, são obrigados a pedir abrigo a uma tia paterna distante (aparentemente, o único parente que eles têm na cidade). O tratamento dickensiano dado pela tia (“Não aguento mais essa menina chorando na minha casa!”), aliado com o grande senso de orgulho do rapaz, culmina numa situação insustentável, onde é preferível arriscar a liberdade do que se submeter a tal acolhimento opressor.
Claro que, a princípio, Seita nem se dá conta da inconsequência dessa sua atitude. Ostentando feliz a trouxinha que carrega sobre os ombros (e que contém seus paupérrimos pertences), símbolo da recém-adquirida liberdade, o garoto acaba por descobrir, numa estrada um pouco distante da cidade, um pequeno lugar “paradisíaco” que tem perfeitas condições de alojar ele e sua irmã. Trata-se de um abrigo anti-bombas abandonado, encravado numa caverna e rodeado por uma natureza exuberante, com alguns pomares e um riacho. Os únicos habitantes desse abrigo são alguns vagalumes, que iluminam a noite para os dois irmãos. Ali, Seita e Setsuko, levam uma vida despreocupada, idílica, que remete aos ideais de Rousseau sobre o “bom selvagem”, mas que é gravemente fora de compasso com a realidade bélica e destrutiva que procede a não muitos quilômetros desse Jardim do Éden..jpg)
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Quando finalmente seus recursos acabam, resta aos irmãos saírem de seu redoma e procurar um novo jeito de sobreviver; não é surpresa nenhuma que a destruição da cidade não foi só física – foi moral, também: tão escassa quanto a comida é a compaixão humana. Para resistir, resta se apegarem àquilo que têm de mais precioso: a fraternidade, o amor que sentem um pelo outro e que os tornará inseparáveis para sempre. É essa dimensão humana que torna O Túmulo dos Vagalumes tão especial, mas ao mesmo tempo tão sombrio e pertubador: o choque de ver pessoas morrendo e lares sendo queimados é consideravelmente menor que o espanto de testemunhar o egoísmo, a abominável inclinação individualista do caráter humano, florescer num contexto que suplica por partilha e carinho.
Certamente O Túmulo… não é o primeiro filme a mostrar o lado da “vítima entre as vítimas”, mas ele o faz de maneira tão singular, contrastando o peso de sua história com a leveza de seus traços e, como disse lá em cima, omissão de excessos gráficos, que o resultado é nada abaixo de espetacular. É a maior bola dentro do Studio Ghibli, que nunca mais se aventuraria por águas tão escuras, devido à repercussão inicial negativa ao filme.
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