terça-feira, 7 de junho de 2016

ATRAVÉS DO ESPELHO


por  Yuri Vasconcelos Silva

Você acorda de um sonho e percebe que mais um ciclo nasce na rotina do dia-após-dia. À exceção dos momentos esparsos, pontuais de alegria ou tristeza, a sequência martelada de pensamentos, sentimentos e ações moldam quem você é. No fundo, todos sabemos disso. A mesma quantidade de gotas de aspartame no café passado, virar o cabelo para o lado de sempre, os mesmos caminhos e tropeços até qualquer lugar. Os pensamentos são viciantes, eles nunca morrem. Ficam, em estado eterno de looping, retornando à cabeça e atormentando seu banho no final do dia. A vida então adiciona pequenas variações para que ninguém desista disto aqui. Um tesão que muda seu objeto de desejo a cada noventa dias, ser promovido a alguma coisa ou um livro delirante escrito por outro não muito diferente de você. O dia acaba, os olhos se fecham. Os sonhos retornam e são repetitivos também, mesmo os mais extraordinários. Dentro do sonho, raros são os momentos em que se percebe viver em um mundo que existe só na mente. Acredita-se em tudo o que acontece a ponto de influenciar as emoções, batimentos cardíacos e glândulas sudoríparas. O onírico atravessa a membrana da fantasia e estimula corpos reais desacordados na metade do mundo que está girando na escuridão. O problema é não saber, naquele momento, que são apenas ilusões que lhe atormentam. Elas sabem, com íntima precisão, o que deseja e o que teme. Elas criam paraísos efêmeros de alegria passageira ou infindável pesadelo. Você grita no escuro, preso em seu corpo imóvel, acreditando que a paisagem da mente que vive é tão real quanto sua carne. Ao acordar, com alívio ou decepção, levanta-se para mais um dia. Então alguém aparece em respeitável tom profético, com guarda-pó branco e centenas de artigos publicados, e lhe atira na testa que esta vida é uma simulação avançada de outra civilização. Você seria um personagem dentro de realidade virtual. Esta alegação não é nova. Abordada por cientistas há bastante tempo, já foi incorporada a livros e cinema de ficção. Matrix (1999), filme dos irmãos Wachowski, representa o exemplo mais notório. O paradoxo está no fato de que, ao contrário do sonho acordado da noite, onde é possível diferenciar com clareza os limites entre o onírico e a realidade, não é possível para a ciência no estado atual aferir o potencial de sermos todos frutos da imaginação de outro ser ou sistema. No fim das contas, a própria aferição pode nos dar um resultado que é também simulado. Assim, na eventualidade de você viver em uma camada de realidade criada, estará para sempre preso. Não poderá acordar e ter ciência de que continua dormindo. Se assim fosse possível, a liberdade máxima seria atingida. Seria semelhante ao pesadelo de um elevador que nunca para no seu andar e continua a descer até o inferno, sem nunca frear. Ao perceber que a situação não passa de um sonho, deixaria de sentir medo. Na verdade, poderia controlar a cabina para que te levasse onde seu desejo manda. Não ser dominado pelos sentimentos impostos pelo contexto da realidade é se livrar das mais poderosas amarras que lhe prendem. Sendo esta experiência de realidade o sonho de algum deus ou o vídeo-game de uma civilização distante, o que faria com este conhecimento?

Qualquer que seja a resposta, o olhar mais aprofundado indica que esta experiência não muda. Não importa se você acorda, trabalha todos os dias, sente fome e come, sofre ou se alegra. Estando dentro de uma simulação, de um sonho ou da realidade, o mundo como percebemos continuará operando da mesma maneira. O que pode ser alterado é como reagimos a causas da realidade, pois ela é subjetiva. Este posicionamento tem o potencial de alterar a experiência pessoal. As experiências podem ser boas ou ruins conforme o observador, não a realidade. Mas é bom sempre lembrar que, no final deste jogo, todos os personagens morrem com apenas uma vida.


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domingo, 5 de junho de 2016

ZÉ DA SILVA

Nada restará

Com ele não tinha essa de nhenhenhém. Talvez por ter passado a maior parte do tempo encolhido, dentro da toca da cabeça dele, envolvido pelas quatro paredes do quarto. Um dia abriu as porteiras do mundão – e foi. Quando gostava, se entregava feito bebê procurando o leite no peito da mãe. Se não, ficava na dele, mas como geralmente tentavam pisar no seu calo, a pancada, de qualquer forma, era violenta. E se não pudesse fazer isso, guardava no departamento da vingança. Às vezes esperava anos até surgir a chance do golpe a ser desferido – e ele era como o de Kyuzo, o mestre espadachim do filme “Os 7 Samurais”. Não entendia bem como isso funcionava, mas não se importava. Porque carregava tatuado no peito a inscrição que pouca gente conheceu, porque um dia sumiu de tudo e de todos: “Lapide a lápide como quiser; foto, nome, frase bonita e o escambau – no final das contas, nada restará”.


sábado, 4 de junho de 2016

MUHAMMAD ALI

Cassius Marcellus Clay Jr.
Da Folha.com

Lenda do boxe Mundial, Muhammad Ali morre aos 74 anos nos EUA

O ex-boxeador americano Muhammad Ali, 74, morreu após internação por problemas respiratórios, nos Estados Unidos. A morte foi anunciada na madrugada (de Brasília) deste sábado (4). Seu porta-voz, Bob Gunnell, anunciou nesta quinta (2) que o ex-atleta estava hospitalizado.

Ali foi campeão olímpico, participou da “Luta do Século” original, venceu o combate mais famoso da história, foi o primeiro tricampeão mundial dos pesados, dominou o boxe no período mais competitivo entre os grandalhões dos ringues e se tornou a primeira estrela globalizada do esporte, com duelos em países do Terceiro Mundo.

Poderia ter conquistado mais como atleta, muito mais, não tivesse sido forçado a ficar inativo durante mais de três dos anos mais produtivos da carreira de um esportista. Mas, graças a esse sacrifício, transcendeu o esporte e influenciou a sociedade americana em questões sociais, políticas e religiosas.
Nascido Cassius Marcellus Clay Jr. em 1942, na cidade de Louisville, oriundo de uma família humilde, Ali descobriu o boxe na infância por acaso. Aos 12 anos, quando roubaram sua bicicleta, procurou Joe Martin, um policial que dava aulas em um centro de recreação, para reclamar do roubo. Nunca mais viu a bicicleta, mas logo estava calçando as luvas de boxe.

Rapidamente ele conquistou títulos amadores que lhe abriram caminho até a Olimpíada de Roma, em 1960. Lá, aquele jovem tagarela ganhou a medalha de ouro entre os meio-pesados (categoria de peso imediatamente inferior à dos pesados no amadorismo).

Ao retornar aos Estados Unidos, foi acolhido como herói, homenageado por autoridades e assinou contrato com um grupo de milionários que o patrocinou.

Naquela época, prevalecia o racismo. Os restaurantes, hotéis e cinemas, especialmente os do sul do país, reservavam espaços para que os negros se acomodassem separados dos brancos.
Quando teve o pedido de um hambúrguer e um milk shake negado em uma lanchonete por causa da cor de sua pele, Ali foi à Ponte Jefferson County e atirou no Rio Ohio sua medalha olímpica, com a qual sonhava desde que desferira os primeiros socos no ginásio. “Não houve dor ou remorso, só alívio e renovação de forças”, disse Ali sobre o episódio, anos depois.

O boxeador se adaptou facilmente ao profissionalismo, no qual estreou ainda em 1960. Adotou um slogan simpático: “flutuar como uma borboleta, picar como uma abelha”, em referência à forma como bailava no ringue e à velocidade dos golpes. Seus reflexos faziam com que raramente fosse atingido com força.

Ele se dava ao luxo de prever, por meio de poemas, em que assalto derrubaria seus adversários. Na maioria das vezes, acertava. E não perdia a pose quando errava a previsão. Quando o ranqueado Doug Jones aguentou dez assaltos com ele, Ali argumentou: “Primeiro disse que venceria em seis assaltos, depois em quatro. Bom, seis mais quatro dá dez, não?”.
Poucos meses após conquistar o título mundial dos pesos-pesados, ao bater Sonny Liston, a quem apelidou de “O Grande Urso Feio”, em fevereiro de 64, revelou que se convertera ao islamismo, abrindo mão do seu “nome de escravo”, Cassius Clay, e passando a se chamar Muhammad Ali. Em suas próprias palavras, era agora “O Rei do Mundo” e “O Mais Bonito”.

Três anos depois, ainda campeão, foi convocado a comparecer ao centro de recrutamento do Exército, onde recusou o alistamento para a Guerra do Vietnã. “Nenhum vietnamita jamais me chamou de crioulo”, justificou Ali, que teve a licença de pugilista cassada e foi destituído do cinturão em 1967. Nos anos seguintes, ganhou a vida com palestras no circuito universitário. Viu aumentar o ódio daqueles que defendiam o sistema, mas seu discurso o tornou ídolo dos jovens, que à época clamavam veementemente por mudanças.
Após uma longa batalha jurídica, recuperou a licença de pugilista e retornou aos ringues em 1970, contra dois rivais de categoria, Jerry Quarry e o argentino Oscar “Ringo” Bonavena. No ano seguinte, enfrentou na “Luta do Século” “Smokin” Joe Frazier, que então era o dono de seu cinturão, em um choque de invictos. A comoção gerada pela luta foi tamanha que o cantor Frank Sinatra, já um grande astro àquela época, aceitou fazer um “bico” como fotógrafo para a revista “Life” apenas para garantir um lugar à beira do ringue, já que os ingressos estavam esgotados.

Ali perdeu por pontos em 15 assaltos, mas em 1974 ganhou nova oportunidade de lutar pelo título, desta vez contra George Foreman, na “Rumble in the Jungle” (“Briga na Selva”), no Zaire. Ali subiu ao ringue como o azarão. Afinal, Foreman tomara o cinturão de Frazier ao derrubá-lo seis vezes em dois assaltos, e precisara do mesmo número de assaltos para destruir outro algoz de Ali, Ken Norton.

Sem a agilidade e os reflexos do auge da carreira, Ali usou a cabeça. Encostou-se nas cordas e permitiu que o rival o castigasse, assalto após assalto, até que Foreman se cansasse. Então, no oitavo assalto, partiu para o ataque e derrotou o rival. O combate foi transformado em livro por Norman Mailer (“A Luta”) e gerou um documentário, “Quando Éramos Reis”, ganhador do Oscar em 1996.
Thomas Hoepker 

Ali disputou depois aquela que foi eleita pela publicação especializada “The Ring” a melhor luta da história, a “Thrilla in Manila”, seu terceiro duelo com Frazier, nas Filipinas. “Foi o mais próximo que cheguei da morte”, falou sobre a luta, que venceu no 14º assalto.

Em 1978, Ali perdeu o título para o novato de sete lutas Leon Spinks, mas o recuperou no mesmo ano para se tornar o primeiro tricampeão dos pesados. Anunciou sua aposentadoria, mas retornou contra seu ex-sparring Larry Holmes, agora campeão, e contra Trevor Berbick. Perdeu as duas e pendurou as luvas em definitivo.
Ele passou, então, a se dedicar a missões de cunho humanitário e político, visitando países como Cuba, China e Rússia. Foi ao acender a pira olímpica nos Jogos de Atlanta-96 que o mundo descobriu os avançados sintomas do Mal de Parkinson, que reduziu drasticamente a sua mobilidade e a sua capacidade de comunicação. Passou os últimos anos de sua vida dependente de tratamentos e remédios, e suas aparições públicas se tornaram cada vez mais raras.


quinta-feira, 2 de junho de 2016

FOTOGRAFIAS






Fotografias de Ricardo Silva

SOLDA

CÁUSTICO


SOLDA CÁUSTICOhttp://cartunistasolda.com.br/

LIGAÇÃO


por Miguel Sanches Neto

Súbito me lembro de um antigo telefone.
Seu número irrompe em minha memória
e não sei de quem é, nem quando nem onde,
sei apenas que é um endereço que dói.

Disco sem esperança estes dígitos antigos
e então ouço chamar numa casa no tempo
à qual me prendo pelo cordão do umbigo
que não pôde ser cortado a contento.

Através de um fio imaterial me religo
às ruínas de uma infância só mito.
Do outro lado, alguém atende o telefone

e a voz que me chega por este conduto
é a da criança que tem o meu nome,
é a que perdi quando me tornei adulto.