Zé Luis e eu (1961).
Aos 15 anos ele calçou o primeiro par de sapatos. Não gostava muito do cabo da enxada e do trabalho pesado da roça. Talvez por ter as mãos finas, os dedos longos de um nobre. Preferiu sair no lombo de burro para vender leitões pelas cidades vizinhas a Palmeira dos Indios, Alagoas. Nasceu Zé, filho da Senhorinha e do Antonio Luis. Virou Zé do Luis, Zé Luis, meu pai. Aos 18 desceu ao sul pelo mar. Seria mais ou menos como pegar um foguete hoje e ir à lua, viagem ao desconhecido. Ele, semi-analfabeto, nascido e criado no Sítio São José. No Rio de Janeiro morou em pensão em Botafogo, trabalhou em bar de português e na Casa São Luis, no Largo do Machado, como ajudande de copa. Ali conheceu Chico Anísio, Grande Otelo, e muitos artistas em início de carreira. Namorou e casou com Josefa, menina que, ”lá no Norte”, era vizinha de sítio. Resolveu tentar a vida em São Paulo, início dos anos 50. Virou operário. Mas não se arrependeu. Fez porque “cismou”. E quando ele cismava… não tinha papo. Se apaixonou pelo Santos, mas nunca foi ver Pelé jogar. Ouvia no rádio, bigode retorcido como sinal de nervosismo. Não passeava. Não presenteava. Falava pouco. Só depois se soube que era um depressivo. E, por isso mesmo, quanta força para segurar o tranco do dia-a-dia! Força de caráter, de determinação em criar e educar os dois filhos. De trabalhar, sempre, e ser honesto e correto, acima de tudo. De operário, virou garçom e pequeno comerciante. Construiu a casa própria, depois de passar anos pagando aluguel por uma meia-água de fundos, quarto e cozinha, banheiro lá fora no quintal. Vinte anos passou sem beber. Um dia, sem querer, depois de uma cirurgia, um médico desavisado autorizou “um aperitivo”. Alcoólatra. Começou de onde parou. E ninguém sabia que era assim. Seu olhar era duro e feria como punhal. Por isso pouco falava. E ninguém ousava tentar conversar com ele. Uma pena! Voltou ao nordeste, fechando o tradicional ciclo de pau-de-arara. Levou um filho, ainda adolescentee (este Ricardo Silva, artista das fotos aqui publicadas). Ficou doente. Um dia faltou-lhe a perna esquerda quando caminhava em direção ao sítio herdado dos pais. Parou de andar (nunca teve um carro na vida). E de beber também. Porque, cismado, só entornava em bar, jamais em casa, para onde voltava mais calado ainda, sem dar alteração. Viveu na cama e em cadeira de rodas durante 15 anos. Nunca parou de fumar. Viu a companheira partir antes, vítima de câncer. Presenciou o filho mais velho jogar fora a couraça herdada e lhe dar um beijo aos quarenta anos de idade, numa das visitas vindo do sul do país. Porque ele, o filho, que sou eu, depois dos três internamentos por dependência de álcool e outras drogas, do sofrimento de anos nas trevas, descobriu o motivo de ele, meu pai, ser daquele jeito. Ou melhor, porque se protegia daquele jeito. E neste beijo, no abraço, no chegar perto, na declaração de amor, o que se descobriu foi um Zé Luis anjo, carinhoso, com coração enorme - mas que não sabia como dar todo este amor, provavelmente por ter medo de se entregar aos seus. E não é que Zé Luis um dia beijou este filho? Coisa jamais imaginada. O maior dos presentes da vida. Mas ele foi embora há dois anos. Na última semana entre nós, Roberto e Ricardo se revezaram na enfermaria do hospital. Dia e noite. Os olhos dele, de uma azul extremamente cristalino, às vezes entravam em sintonia com o que se passava - e ele sorria para nós. Porque cumpriu sua missão. Porque também viu seus filhos saudáveis como crianças. Longe da bebida. Porque passou o que tinha de passar sem gastar palavras. Apenas mostrando sua maneira de ser. E,nos deu a chance de continuar, de levar adiante a lição desta força tão incrível: aquela, do menino que calçou sapatos aos 15 anos e foi depois foi ao mar, à procura de nós.
POR ROBERTO JOSÉ DA SILVA
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