Praia da Tabuba, Barra de Santo Antonio, Alagoas
Fotografias de Ricardo Silva
domingo, 31 de março de 2013
VI JESUS CRISTO DESCER À TERRA
de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha
fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas pelas estradas
Que vão em ranchos pela estradas
com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha
fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas pelas estradas
Que vão em ranchos pela estradas
com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou —
“Se é que ele as criou, do que duvido” —
“Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.”
E depois, cansados de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
e eu levo-o ao colo para casa.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou —
“Se é que ele as criou, do que duvido” —
“Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.”
E depois, cansados de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
e eu levo-o ao colo para casa.
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta
sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta
sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer nos olhos os muros caiados.
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer nos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
*No livro “O Guardador de Rebanhos – Poema VIII”
sexta-feira, 29 de março de 2013
SEMANA SANTA
Tempo de vestidos escuros, de escapulários vermelhos, de cataduras sombrias. Enchem-se as ruas de vultos negros macambúzios solitários, aos grupos, que lá vão chorar algumas horas o drama da Paixão. Há em tudo uma expressão de tristeza muito característica. Sente-se um cheiro esquisito, que vem das roupas desenterradas do fundo de arcas antigas, odor indeterminado, complicada combinação de môfo, cânfora, naftalina e rapé. Macróbios soturnos passam, trôpegos, trêmulos, na morna calma das tardes abrasadoras. A voz dos sinos emudeceu. Ao grito áspero e irritante da matraca, sombras acorrem, pesarosas, compungidas, a vista baixa, o rosário entre os dedos, como convêm a criaturas que sabem sofrer quando o tempo é de pranto. Procissões vagarosas desfilam, lúgubres, envôltas na poeira tênue que o sol doira. Dentre o negror pesado dos trajes avultam as manchas rubras das opas. As imagens, no altar, cobriram-se de crepe. As naves dos templos enchem-se, esvaziam-se, num vaivém contínuo. À luz oscilante dos círios, surgem rostos bisonhos, meio velados, em que se estampa não sei que de funesto. Num doce rumor, ouve-se o ciciar de preces apressadas. Por vezes as ruas estão êrmas, lôbregas, num silêncio que aflige. Cerraram-se as portas. Dir-se-ia que a vida desertara a cidade.
Aí está a semana santa externa.
Olhemo-la internamente.
É a época das indigestões. Não se espantem. É durante a quaresma que mais se come. E com razão – a quaresma é tempo de jejum.
Sabem os senhores hereges, que nunca fizeram penitência, a terrível coisa que é o jejum?
Não sabem.
Pois eu digo. Levanta-se uma alma piedosa pela manhã, executa uma razoável quantidade de rezas, limpa os dentes, se tem este costume, lava os olhos, senta-se à mesa e ingere uma certa porção de café, uma porção regular, pois isto de jejuar sem café está banido, que ninguém é de ferro. Às onze horas o penitente almoça um quilo de bacalhau, três pratos de arroz com feijão, uma travessa de fôlhas de bredo, algumas dezenas de banana, mangas e outras frutas, café e... só.
Alguns engolem também uma traíra do açude, mas isto não é obrigatório. Mesmo sem ela, fica-se bem jejuado. Devora-se tudo com fé. Para que a cerimônia tenha valor é preciso haver uma firme intenção no ânimo de quem a pratica.
Depois do almoço, que finda as duas horas da tarde, dorme-se. Enquanto se ronca, proibição completa de mastigar qualquer coisa.
Às sete da noite acorda-se e ceia-se. A ceia, em qualidade e quantidade, é igual ao almôço.
Come-se tudo, menos os pratos, que são de louça e necessário se tornam para o serviço do dia seguinte. Faz-se o sacrifício de não jantar, por dois motivos: primeiro porque o jantar quebra o jejum; segundo porque seria difícil encontrar onde colocá-lo.
Dura coisa é o jejum. Quem nunca o experimentou pensa, talvez, que êle seja fácil.
Engano. Não é todo estômago devoto que resiste impunemente a quatro pratadas de feijão com coco e uma banda de curimão assada. Nem tôda alma carente tem capacidade para ingerir uma ingente bacalhauzada gordurosa, com meio quilograma de cebolas e profusas rodelas de batatas.
Antigamente, nos bons tempos de ascetismo, era possível a um cidadão dispéptico penitenciar-se moderadamente, sem esfôrço apreciável, com um copo d’água e um pão. Vão obrigar uma criatura assim a deglutir uma peixada de escabeche e meio cento de laranjas! é morte certa ou, pelo menos, um estrago geral nos intestinos.
“A carne é fraca”. É dos evangelhos. Pelo menos foi o que me disseram, e eu não tenho motivo para duvidar. Ora, é inegável que o estômago seja feito de carne. Como exigir, pois, da fraqueza deste pobre órgão, elasticidade bastante para transformar numa jibóia o mísero bípede religioso que nós somos?
É muito! Não se morre por passar um dia sem comer. Pode-se muito bem rebentar comendo, rezando e dormindo doze horas consecutivas.
O prefeito de Cork esteve quase três meses sem alimentar-se, e esticou a canela no dia em que o obrigaram a tomar uma colher de extrato de carne. Donde eu concluo que foi o alimento que o matou e não a abstinência absoluta de comidas em que viveu durante quase um trimestre.
Ora, se uma simples colherada de inofensivo líquido que se enseja no bôjo exíguo de um frasco pode matar um homem, conforme o grau de enfraquecimento em que ele tenha o organismo, que pensar de feijoada titânica, da vasta macarronada oleosa, dos monumentos de verdura, das tentadoras pirâmides de frutos que se oferecem à gula quaresmal dos fiéis!
Comparem um devoto de hoje, repleto, empanzinado, a arfar, a arrotar, ao crente antigo, que fugindo às vaidades do mundo, às tentações femíneas, à maldade dos homens, penetrava os desertos asiáticos e lá se deixava ficar anos e anos, bebendo a água dos regatos e roendo raízes.
Qual dos dois se sacrifica mais?
Evidentemente, o primeiro. O eremita, todo espírito, entregue aos arroubos místicos, esquecia por completo os acepipes com que se delicia o cristão atual, guloso, com os olhos no altar e as mãos na caçarola.
O primeiro tinha necessidades muito reduzidas e limitava-se a satisfazê-las. O segundo não tem precisão de empanturrar-se e empanturrar-se.
O primeiro vivia um século. O segundo arrisca-se a apanhar um estupor e rebentar antes do tempo.
Demais o anacoreta, dado a vida contemplativa, pouco ou nada trabalhava. Quando chegava a um grau de perfeição que nós, leitor, provàvelmente não atingiremos nunca a escassa alimentação que tomava vinha-lhe do céu, por intermédio de um mensageiro em forma de pássaro, que a trazia no bico. Ao crente moderno não sucede o mesmo. Milagres assim já não se fazem. Tem ele que recorrer ao vendeiro, ao padeiro, ao hortelão e, depois de uma penitência de substância, ao farmacêutico.
O místico aperfeiçoava o espírito na solidão e ainda em vida participava da graça celeste. O beato contemporâneo faz despesas, estraga a saúde e não aperfeiçoa coisa nenhuma.
Pelo que aqui fica, creio haver demonstrado que o jejum em que nada se come é mais fácil de executar que o jejum em que se come de tudo. Pode ser que eu esteja em êrro. Minha opinião, no assunto, tem um valor muito relativo. Penso, entretanto, haver dito muitas verdades.
E se o leitor duvida, faça como o patriota irlandês – fique dois meses e meio sem comer.
Depois, se não tiver morrido, veja se lhe é possível passar igual tempo a comer sem parar.
GRACILIANO RAMOS, Palmeira dos Índios, 1921
Aí está a semana santa externa.
Olhemo-la internamente.
É a época das indigestões. Não se espantem. É durante a quaresma que mais se come. E com razão – a quaresma é tempo de jejum.
Sabem os senhores hereges, que nunca fizeram penitência, a terrível coisa que é o jejum?
Não sabem.
Pois eu digo. Levanta-se uma alma piedosa pela manhã, executa uma razoável quantidade de rezas, limpa os dentes, se tem este costume, lava os olhos, senta-se à mesa e ingere uma certa porção de café, uma porção regular, pois isto de jejuar sem café está banido, que ninguém é de ferro. Às onze horas o penitente almoça um quilo de bacalhau, três pratos de arroz com feijão, uma travessa de fôlhas de bredo, algumas dezenas de banana, mangas e outras frutas, café e... só.
Alguns engolem também uma traíra do açude, mas isto não é obrigatório. Mesmo sem ela, fica-se bem jejuado. Devora-se tudo com fé. Para que a cerimônia tenha valor é preciso haver uma firme intenção no ânimo de quem a pratica.
Depois do almoço, que finda as duas horas da tarde, dorme-se. Enquanto se ronca, proibição completa de mastigar qualquer coisa.
Às sete da noite acorda-se e ceia-se. A ceia, em qualidade e quantidade, é igual ao almôço.
Come-se tudo, menos os pratos, que são de louça e necessário se tornam para o serviço do dia seguinte. Faz-se o sacrifício de não jantar, por dois motivos: primeiro porque o jantar quebra o jejum; segundo porque seria difícil encontrar onde colocá-lo.
Dura coisa é o jejum. Quem nunca o experimentou pensa, talvez, que êle seja fácil.
Engano. Não é todo estômago devoto que resiste impunemente a quatro pratadas de feijão com coco e uma banda de curimão assada. Nem tôda alma carente tem capacidade para ingerir uma ingente bacalhauzada gordurosa, com meio quilograma de cebolas e profusas rodelas de batatas.
Antigamente, nos bons tempos de ascetismo, era possível a um cidadão dispéptico penitenciar-se moderadamente, sem esfôrço apreciável, com um copo d’água e um pão. Vão obrigar uma criatura assim a deglutir uma peixada de escabeche e meio cento de laranjas! é morte certa ou, pelo menos, um estrago geral nos intestinos.
“A carne é fraca”. É dos evangelhos. Pelo menos foi o que me disseram, e eu não tenho motivo para duvidar. Ora, é inegável que o estômago seja feito de carne. Como exigir, pois, da fraqueza deste pobre órgão, elasticidade bastante para transformar numa jibóia o mísero bípede religioso que nós somos?
É muito! Não se morre por passar um dia sem comer. Pode-se muito bem rebentar comendo, rezando e dormindo doze horas consecutivas.
O prefeito de Cork esteve quase três meses sem alimentar-se, e esticou a canela no dia em que o obrigaram a tomar uma colher de extrato de carne. Donde eu concluo que foi o alimento que o matou e não a abstinência absoluta de comidas em que viveu durante quase um trimestre.
Ora, se uma simples colherada de inofensivo líquido que se enseja no bôjo exíguo de um frasco pode matar um homem, conforme o grau de enfraquecimento em que ele tenha o organismo, que pensar de feijoada titânica, da vasta macarronada oleosa, dos monumentos de verdura, das tentadoras pirâmides de frutos que se oferecem à gula quaresmal dos fiéis!
Comparem um devoto de hoje, repleto, empanzinado, a arfar, a arrotar, ao crente antigo, que fugindo às vaidades do mundo, às tentações femíneas, à maldade dos homens, penetrava os desertos asiáticos e lá se deixava ficar anos e anos, bebendo a água dos regatos e roendo raízes.
Qual dos dois se sacrifica mais?
Evidentemente, o primeiro. O eremita, todo espírito, entregue aos arroubos místicos, esquecia por completo os acepipes com que se delicia o cristão atual, guloso, com os olhos no altar e as mãos na caçarola.
O primeiro tinha necessidades muito reduzidas e limitava-se a satisfazê-las. O segundo não tem precisão de empanturrar-se e empanturrar-se.
O primeiro vivia um século. O segundo arrisca-se a apanhar um estupor e rebentar antes do tempo.
Demais o anacoreta, dado a vida contemplativa, pouco ou nada trabalhava. Quando chegava a um grau de perfeição que nós, leitor, provàvelmente não atingiremos nunca a escassa alimentação que tomava vinha-lhe do céu, por intermédio de um mensageiro em forma de pássaro, que a trazia no bico. Ao crente moderno não sucede o mesmo. Milagres assim já não se fazem. Tem ele que recorrer ao vendeiro, ao padeiro, ao hortelão e, depois de uma penitência de substância, ao farmacêutico.
O místico aperfeiçoava o espírito na solidão e ainda em vida participava da graça celeste. O beato contemporâneo faz despesas, estraga a saúde e não aperfeiçoa coisa nenhuma.
Pelo que aqui fica, creio haver demonstrado que o jejum em que nada se come é mais fácil de executar que o jejum em que se come de tudo. Pode ser que eu esteja em êrro. Minha opinião, no assunto, tem um valor muito relativo. Penso, entretanto, haver dito muitas verdades.
E se o leitor duvida, faça como o patriota irlandês – fique dois meses e meio sem comer.
Depois, se não tiver morrido, veja se lhe é possível passar igual tempo a comer sem parar.
GRACILIANO RAMOS, Palmeira dos Índios, 1921
quinta-feira, 28 de março de 2013
DISCOTECA BÁSICA
BLACK SABBATH (1970)
(Edição 70,Maio de 1991)
No início de 70, um então desconhecido quarteto da cidade inglesa de Birmingham chocaria a Europa ao gravar um álbum que ultrapassava todas as fronteiras da brutalidade sonora que eram conhecidas até então.
Muitas bandas já tocavam alto na época: The Who, Cream, Deep Purple, Led Zeppelin e o pré-punk de Detroit (The Stooges e MC5). O heavy do Black Sabbath, no entanto, era diferente - mórbido, cruel, demoníaco. Enquanto o psicodelismo dos hippies ainda ecoava por todo o mundo e o rock progressivo passava por seu período mais promissor, o vocalista Ozzy Osbourne declarava: "Nossa música é uma reação a toda essa babaquice de paz, amor e felicidade. Os hippies ficam tentando te convencer de que o mundo é uma maravilha, mas é só olhar ao redor para ver em que merda nós estamos."
Ozzy tinha todas as razões para reclamar da vida: teve uma infância pobre e passou boa parte de sua adolescência trancado nas cadeias de Aston, o bairro miserável de sua cidade natal. Em 67 resolveu montar um grupo com o guitarrista Tony Iommi, o baixista Terry "Geezer" Butler e o baterista Bill Ward, começando a tocar no circuito de bares por cachês irrisórios. Como resultado direto de suas frustrações e problemas financeiros, viram seu som se tornar mais sujo e agressivo a cada dia.
Black Sabbath, o álbum de estréia do grupo - lançado numa sexta-feira, 13 de fevereiro -, foi a válvula de escape de toda essa revolta acumulada ao longo de três anos de estrada. A violência condensada em vinil. Da abertura da faixa-título, com o som de chuva e sinos, até o último acorde de "Warning", tínhamos um festival de acordes tonitruantes, vocais ensandecidos e ritmo pulsante. Os temas abordados - missas negras, encontros com Lúcifer e predições catastróficas - eram frutos, principalmente, da leitura exaustiva das obras do inglês Dennis Wheatley. Três músicas deste LP, ao menos, ficariam marcadas para sempre na história do heavy: a já citada "Black Sabbath", "The Wizard" e "N.I.B.". Junto a "Behind The Walls of Sleep" (inspirada num livro de H.P. Lovecraft), "Evil Woy Your Games With Me", "Sleeping Village", "Warning" e, em algumas edições, a faixa extra "Wicked World" (lançada no mês anterior como o primeiro compacto da banda), formam um álbum fundamental e precursor do que se viria a fazer em termos de rock pesado.
Com sua sonoridade única, o heavy do Black Sabbath não nasceu de nenhum desdobramento de outro gênero, mas surgiu num rompante de ousadia de quatro músicos moldados pelas dificuldades e pela revolta contra o establishment "bicho-grilo". Enquanto o rock progressivo promovia viagens por paisagens idílicas, o Black Sabbath oferecia uma passagem sem volta ao inferno. Nesse contexto, a banda viveria momentos de glória até 75, com o lançamento de seu sexto LP, "Sabotage". Depois entrou em lento processo de decadência, movido por batalhas egocêntricas.
No entanto, o grupo permanece como um dos mais subestimados de todos os tempos. É bem verdade que o heavy tem uma incrível facilidade em gerar mediocridades, dando farta munição para os detratores de gênero. Mas é inadmissível que a importância de Black Sabbath ainda seja posta em dúvida no momento em que algumas das mais conceituadas bandas da atualidade - como o Faith No More e o Soundgarden - se declaram tão influenciadas por seu som.
André Barcinski
(Edição 70,Maio de 1991)
No início de 70, um então desconhecido quarteto da cidade inglesa de Birmingham chocaria a Europa ao gravar um álbum que ultrapassava todas as fronteiras da brutalidade sonora que eram conhecidas até então.
Muitas bandas já tocavam alto na época: The Who, Cream, Deep Purple, Led Zeppelin e o pré-punk de Detroit (The Stooges e MC5). O heavy do Black Sabbath, no entanto, era diferente - mórbido, cruel, demoníaco. Enquanto o psicodelismo dos hippies ainda ecoava por todo o mundo e o rock progressivo passava por seu período mais promissor, o vocalista Ozzy Osbourne declarava: "Nossa música é uma reação a toda essa babaquice de paz, amor e felicidade. Os hippies ficam tentando te convencer de que o mundo é uma maravilha, mas é só olhar ao redor para ver em que merda nós estamos."
Ozzy tinha todas as razões para reclamar da vida: teve uma infância pobre e passou boa parte de sua adolescência trancado nas cadeias de Aston, o bairro miserável de sua cidade natal. Em 67 resolveu montar um grupo com o guitarrista Tony Iommi, o baixista Terry "Geezer" Butler e o baterista Bill Ward, começando a tocar no circuito de bares por cachês irrisórios. Como resultado direto de suas frustrações e problemas financeiros, viram seu som se tornar mais sujo e agressivo a cada dia.
Black Sabbath, o álbum de estréia do grupo - lançado numa sexta-feira, 13 de fevereiro -, foi a válvula de escape de toda essa revolta acumulada ao longo de três anos de estrada. A violência condensada em vinil. Da abertura da faixa-título, com o som de chuva e sinos, até o último acorde de "Warning", tínhamos um festival de acordes tonitruantes, vocais ensandecidos e ritmo pulsante. Os temas abordados - missas negras, encontros com Lúcifer e predições catastróficas - eram frutos, principalmente, da leitura exaustiva das obras do inglês Dennis Wheatley. Três músicas deste LP, ao menos, ficariam marcadas para sempre na história do heavy: a já citada "Black Sabbath", "The Wizard" e "N.I.B.". Junto a "Behind The Walls of Sleep" (inspirada num livro de H.P. Lovecraft), "Evil Woy Your Games With Me", "Sleeping Village", "Warning" e, em algumas edições, a faixa extra "Wicked World" (lançada no mês anterior como o primeiro compacto da banda), formam um álbum fundamental e precursor do que se viria a fazer em termos de rock pesado.
Com sua sonoridade única, o heavy do Black Sabbath não nasceu de nenhum desdobramento de outro gênero, mas surgiu num rompante de ousadia de quatro músicos moldados pelas dificuldades e pela revolta contra o establishment "bicho-grilo". Enquanto o rock progressivo promovia viagens por paisagens idílicas, o Black Sabbath oferecia uma passagem sem volta ao inferno. Nesse contexto, a banda viveria momentos de glória até 75, com o lançamento de seu sexto LP, "Sabotage". Depois entrou em lento processo de decadência, movido por batalhas egocêntricas.
No entanto, o grupo permanece como um dos mais subestimados de todos os tempos. É bem verdade que o heavy tem uma incrível facilidade em gerar mediocridades, dando farta munição para os detratores de gênero. Mas é inadmissível que a importância de Black Sabbath ainda seja posta em dúvida no momento em que algumas das mais conceituadas bandas da atualidade - como o Faith No More e o Soundgarden - se declaram tão influenciadas por seu som.
André Barcinski
sábado, 16 de março de 2013
BOOKER T. AND THE MGs
Green Onions - live 1965
BOOKER T. AND THE MGs (1965):
Booker T. Jones - Keyboards
Steve Cropper - Guitar
Donald "Duck" Dunn - Bass
Al Jackson, Jr. - Drums
BOOKER T. AND THE MGs (1965):
Booker T. Jones - Keyboards
Steve Cropper - Guitar
Donald "Duck" Dunn - Bass
Al Jackson, Jr. - Drums
sexta-feira, 15 de março de 2013
HORÓSCOPO
por Zé da Silva
Gêmeos
o filme entrou e ele ficou parado olhando o céu para sempre era aquele do marido que se matava de trabalhar na fazenda com a mulher mandona e ela morreu e ele resolveu nunca mais sair da cama para descansar até o descanso final e criou então uma parafernália em volta do leito que permitia ele não levantar a bunda dali só virar de ladinho e era o cachorro amigo de fé irmão camarada que ia buscar comida e levar dinheiro e toda a comunidade daquele local se solidarizou porque sabia que era um escravo da mulher que àquela altura estava sendo comida pelos vermes e este filme não saiu da cabeça e ele parou também mas ficou sentado de frente para a janela e eram tantas as nuvens e sol e lua e tudo que maravilha nunca tinha notado nos anos de trabalho pesado de pegar ônibus lotado levar comida na marmita esquentar no banho-maria sujar as mãos de dedos finos na graxa e o cheiro entranhado de tudo também do rio que corria na frente da fábrica ai meu deus não quero mais e sentou na poltrona rasgada e assim ficou até ver um disco voador e chamaram a ambulância e ele foi mas levou a poltrona junto.
quinta-feira, 14 de março de 2013
TEN YEARS AFTER
Good morning little school girl
quarta-feira, 13 de março de 2013
CHICO SCIENCE
Chico Science nasceu no dia 13 de março de 1966
Dia de Francisco de Assis. O nosso ainda tem um França no nome para ser universal desde o nascimento na Olinda onde, no Carnaval, nas ladeiras, vielas, com moldura de casarios, entoa-se um “quero cantar” depois do nome da cidade histórica. Mas este Chico foi além da história e transformou a energia catalisada no entorno que vai das profundezas abissais do mar e atravessa o agreste e se embrenha lá na frente na floresta amazônica e dá a volta no mundão e aterrissa no mangue e entranha nos bichos bichos e bichos homens e mulheres na lama para sair de novo no caos urbano. Isso é Science. Com o apoio da Nação Zumbi. Quem pode com tal força? Todos os brasileiros com parabolicamará tecida por Villa Lobos, Gilberto Freire, Darcy Ribeiro, Ariano Suassuna, Glauber Rocha, Manoel de Barros, Graciliano Ramos, Luiz Gonzaga, Câmara Cascudo, Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Wally Salomão, Aldir Blanc, Guinga, Helio Oiticica e por aí vai e vem. Chico Science menino do maracatu, boi-bumbá, Jimi Hendrix, forró, blues, jazz, embolada, ciranda, samba de roda, rock, pedra rolando, poeira levantando. Visionário no “Urubuservando, a situação: uma carraspana, na putrefação; a lama chega até o meio da canela;o mangue tá afundando e não nos dá mais trela!” Enxergando pelo olho vazado de Lampião. Bala certeira nos nossos corações. Para sempre.
por Roberto José da Silva
domingo, 10 de março de 2013
DISCOTECA BÁSICA
LUIZ MELODIA
Pérola Negra (1973)
(Edição 136,Novembro de 1996)
Algumas vidas se revelam como nota de rodapé, a sombra, o apêndice de um único gesto da juventude. Por mais que um artista queira se subtrair do estigma, este se impõe contra a vontade do criador, como letra marcada a feno. Aos 46 anos de idade, o compositor e cantor carioca Luiz Melodia tenta esquecer em que ano estamos - exatamente como nos versos de "Pérola Negra". a faixa-título do seu primeiro LR de 1973. Houvesse ele abandonado a carreira para virar contrabandista na África, como o poeta Arthur Rimbaud (outro maldito pelos feitos juvenis), ainda assim seria lembrado por causa de Pérola Negra. Estacou ali, aos 23 anos, num ano que todo mundo já esqueceu, salvo ele.
Melodia extraiu material do Estácio, bairro-berço do samba clássico, cuja forma foi fixada em 1931 pelos bambas do local, como Ismael Silva. Bide, Balaco e Brancura. Seu pai, o violonista Osvaldo Melodia, freqüentava a roda de bambas, e o influenciou. O auxílio do pandeiro foi luxuoso. Mas Luiz não se via como pagodeiro. O blues e o pop tropicalista lhe eram também fundamentais. O Rimbaud do mono estreou aos 15 anos, num grupo de baile. Compunha sambas acartolados e rocks lisérgicos.
Pouco antes de os poetas Torquato Neto e Waly Salomão descobrirem suas músicas numa visita ao mono de São Carlos (hábito desenvolvido pelo artista plástico Hélio Oiticica). Melodia pensou em parar, em trocar a música pelo serviço de garçom numa academia de ginástica. Waly, então, levou uma fita com "Pérola Negra" para Gal Costa. Ela gravou a música e passou a atuar como divulgadora do seu trabalho. Contratado pelo empresário Guilherme Araújo, ele terminou por ser convidado para gravar um disco pela Philips.
Pérola Negra traz dez faixas arranjadas pelo violonista Perinho Albuquerque. Um solo de flauta de Canhoto, acompanhado por seu regional, dá a largada à eternidade de Melodia, no samba "Estácio, Eu E Você", inspirado em Cartola A segunda faixa já é um blues, "Vale Quanto Pesa", em instrumentação acústica. O destaque é o refrão dos metais, enquanto Melodia canta "ai de mim de nós dois", Rildo Hora preludia com a gaita o samba-canção "Estácio, Holly Estácio", peça fundamental do desbunde setentista: "Trago não traço/ Faço não caço/ E o amor da morena maldita/ Domingo no espaço". Versos assim vincaram uma geração.
O rockão "Pra Aquietar" - em estilo Dededrim (inseticida) traçado pela guitarra do soul- man carioca Hyldon - conserva em formol um passeio suburbano à calorenta Ilha De Paquetá. "Abundantemente Morte", "Pérola Negra" e "Magrelinha" são blues interligados pelo cordão de amor e morte. Dificilmente superada, essa trilogia de canções forma o tesouro nacional do oxímoro - das frases que se contradizem ("Baby te amo! Nem sei se te amo") para definir uma situação existencial. A verdade é que a sombra sobrevem na obra do compositor a partir das três faixas seguintes. "Farrapo Humano", "Objeto H" e o "Forró De Janeiro" já adentram pela rota da variação sobre os primeiros temas. Pérola Negra é ápice e lápide estética Ouvimos hoje o Melodia desse disco, ainda que ele cante outros e melhores blues. Todos os seus atos são e serão regidos pelo LP. Não tem por que se lamentar da reprodução do mesmo modelo. O grande artista é sempre resultado de uma cena originária.
Luis Antônio Giron
FONTE: http://rateyourmusic.com/lists/list_view?list_id=133037&show=50&start=100
Pérola Negra (1973)
(Edição 136,Novembro de 1996)
Algumas vidas se revelam como nota de rodapé, a sombra, o apêndice de um único gesto da juventude. Por mais que um artista queira se subtrair do estigma, este se impõe contra a vontade do criador, como letra marcada a feno. Aos 46 anos de idade, o compositor e cantor carioca Luiz Melodia tenta esquecer em que ano estamos - exatamente como nos versos de "Pérola Negra". a faixa-título do seu primeiro LR de 1973. Houvesse ele abandonado a carreira para virar contrabandista na África, como o poeta Arthur Rimbaud (outro maldito pelos feitos juvenis), ainda assim seria lembrado por causa de Pérola Negra. Estacou ali, aos 23 anos, num ano que todo mundo já esqueceu, salvo ele.
Melodia extraiu material do Estácio, bairro-berço do samba clássico, cuja forma foi fixada em 1931 pelos bambas do local, como Ismael Silva. Bide, Balaco e Brancura. Seu pai, o violonista Osvaldo Melodia, freqüentava a roda de bambas, e o influenciou. O auxílio do pandeiro foi luxuoso. Mas Luiz não se via como pagodeiro. O blues e o pop tropicalista lhe eram também fundamentais. O Rimbaud do mono estreou aos 15 anos, num grupo de baile. Compunha sambas acartolados e rocks lisérgicos.
Pouco antes de os poetas Torquato Neto e Waly Salomão descobrirem suas músicas numa visita ao mono de São Carlos (hábito desenvolvido pelo artista plástico Hélio Oiticica). Melodia pensou em parar, em trocar a música pelo serviço de garçom numa academia de ginástica. Waly, então, levou uma fita com "Pérola Negra" para Gal Costa. Ela gravou a música e passou a atuar como divulgadora do seu trabalho. Contratado pelo empresário Guilherme Araújo, ele terminou por ser convidado para gravar um disco pela Philips.
Pérola Negra traz dez faixas arranjadas pelo violonista Perinho Albuquerque. Um solo de flauta de Canhoto, acompanhado por seu regional, dá a largada à eternidade de Melodia, no samba "Estácio, Eu E Você", inspirado em Cartola A segunda faixa já é um blues, "Vale Quanto Pesa", em instrumentação acústica. O destaque é o refrão dos metais, enquanto Melodia canta "ai de mim de nós dois", Rildo Hora preludia com a gaita o samba-canção "Estácio, Holly Estácio", peça fundamental do desbunde setentista: "Trago não traço/ Faço não caço/ E o amor da morena maldita/ Domingo no espaço". Versos assim vincaram uma geração.
O rockão "Pra Aquietar" - em estilo Dededrim (inseticida) traçado pela guitarra do soul- man carioca Hyldon - conserva em formol um passeio suburbano à calorenta Ilha De Paquetá. "Abundantemente Morte", "Pérola Negra" e "Magrelinha" são blues interligados pelo cordão de amor e morte. Dificilmente superada, essa trilogia de canções forma o tesouro nacional do oxímoro - das frases que se contradizem ("Baby te amo! Nem sei se te amo") para definir uma situação existencial. A verdade é que a sombra sobrevem na obra do compositor a partir das três faixas seguintes. "Farrapo Humano", "Objeto H" e o "Forró De Janeiro" já adentram pela rota da variação sobre os primeiros temas. Pérola Negra é ápice e lápide estética Ouvimos hoje o Melodia desse disco, ainda que ele cante outros e melhores blues. Todos os seus atos são e serão regidos pelo LP. Não tem por que se lamentar da reprodução do mesmo modelo. O grande artista é sempre resultado de uma cena originária.
Luis Antônio Giron
FONTE: http://rateyourmusic.com/lists/list_view?list_id=133037&show=50&start=100
FERNANDO PESSOA
- Ah quanta melancolia!
Quanta, quanta solidão!
Aquela alma, que vazia,
Que sinto inútil e fria
Dentro do meu coração!
- Que angústia desesperada!
- Fernando Pessoa 03-09-1924
Que mágoa que sabe a fim!
Se a nau foi abandonada,
E o cego caiu na estrada -
Deixai-os, que é tudo assim.
Sem sossego, sem sossego,
Nenhum momento de meu
Onde for que a alma emprego -
Na estrada morreu o cego
A nau desapareceu.
sábado, 9 de março de 2013
sexta-feira, 8 de março de 2013
FALSIDADE
de Ticiana Vasconcelos Silva
Meu rapaz,
Eu venho te pedir a gentil compreensão
De não me dizeres sim
Querendo dizer não
Por favor, chega de respostas prontas
De que tudo vai dar certo
Pois confesso que agradar não é consolo
E muito menos resignação
É falta de tato e – pior!
Problemas com a imaginação
Faça-me amar-te por não ter resposta
Ou por ser grosso sem razão
Mas não me toques sem jeito
E não te faças de um sujeito de boa afeição
Que o sol vai nascer amanhã, eu sei
Mas se estarei viva é que é o X da questão.
Eu venho te pedir a gentil compreensão
De não me dizeres sim
Querendo dizer não
Por favor, chega de respostas prontas
De que tudo vai dar certo
Pois confesso que agradar não é consolo
E muito menos resignação
É falta de tato e – pior!
Problemas com a imaginação
Faça-me amar-te por não ter resposta
Ou por ser grosso sem razão
Mas não me toques sem jeito
E não te faças de um sujeito de boa afeição
Que o sol vai nascer amanhã, eu sei
Mas se estarei viva é que é o X da questão.
quarta-feira, 6 de março de 2013
terça-feira, 5 de março de 2013
DISCOTECA BÁSICA
NEIL YOUNG with CRAZY HORSE
EVERYBODY KNOWS THIS IS NOWHERE (1969)
(Edição 91,Fevereiro de 1993)
Por estranho que pareça, um dos pilares do rock americano é o canadense Neil Young. Dono da conjunção voz/guitarra mais descarnada do rock'n'roll, ele sempre se manteve como um outsider, ao mesmo tempo fiel às raízes e franco-atirador nas mais diversas tendências.
A revolta inerente ao trabalho de Young deveu-se em boa parte à sua origem. De compleição frágil e saúde precária (além de epilético e diabético, teve poliomielite aos seis anos), ele compensava o temperamento introvertido com a dedicação à música. Tocou em clubes folk de Toronto e com grupos como The Squires e The Mynah Birds (cujo cantor era Rick James!), do qual saiu - com o baixista Bruce Palmer - para ir a Califórnia, no início de 66.
Consta que a dupla estava presa num engarrafamento em Los Angeles, quando topou com o carro onde estavam os guitarristas Stephen Stills e Richie Furay. Young já conhecera Stills há alguns anos no Canadá e deste reencontro nasceu o Buffalo Springfield.
Em dois anos de existência, o grupo formou - ao lado dos Byrds - umas das correntes mais influentes do rock sessentista, que eletrificou o country e o inseriu no contexto psicodélico da época. Apesar de ter grande repercussão, o BS foi logo esfacelado devido às mudanças de membros e à rusgas constantes entre Young e Stills pela voz de comando.
Com o fim do grupo, Stills foi se agregar a David Crosby e ao inglês Graham Nash (egressos dos Byrds e dos Hollies, respectivamente) e - com a futura inclusão de Neil - formariam o supergrupo Crosby, Stills, Nash And Young, na virada dos anos 60/70.
Porém, entre essas duas experiências de sucesso fulminante, Young iniciara carreira solo, gravando um álbum com seu nome e a ajuda de amigos como os produtores David Biggs, Jack Nitzche e o guitarrista Ry Cooder. Mas um encontro com um grupo chamado The Rockets - cujo núcleo era composto pelo guitarrista Danny Whitten, o baixista Billy Talbot e o baterista Ralph Molina - definiu seu passo seguinte.
Young tomara contato com a banda há alguns anos (através da namorada, a cantora folk Robin Lane), mas os compromissos com o Buffalo Springfield impediram-no de tocar com eles. Ao rever o grupo, Neil rebatizou-o como Crazy Horse e passaram a ensaiar juntos. Logo a trupe estava afiada para gravar (em apenas duas semanas) o álbum "Everybody Knows This Is Nowhere", feito praticamente ao vivo em estúdio.
Desde a faixa de abertura (o hit "Cinnamon Girl"), o disco mostrava uma união absolutamente instintiva entre o country rocks sem firulas do grupo e Neil se alternando entre os vocais e os delírios guitarrísticos. O ápice disso surgia em "Down By The River" e "Cowgirl In The Sand" (ambas com mais de nove minutos), em que os longos solos eram a extensão musical dos versos apaixonados de Young. "Round And Round (It Won't Be Long)" e "Running Dry (Requiem For The Rockets)" também não deixavam por menos: a primeira era um lírico tema acústico gravado apenas por Young, Whitten e Robin Lane, enquanto a outra contrapunha os vocais angustiados de Neil ao violino do ex-The Rockets, Bobby Notkoff. A sonoridade crua da faixa-título e de "The Losing End (When You're On)" completavam este registro antológico, acrescentando-lhe a pitada necessária de despojamento.
Young continuaria a forjar outras obras-primas pelas décadas seguintes, na maioria escoradas pelo Crazy Horse. Poderia se listar o aterrador "Tonight's The Night" (75) - dedicado a Danny Whitten e Bruce Berry (roadie do CSN&Y), mortos por overdose em 72 e 73, respectivamente - ou o hard country rock de "Zuma" (também de 75, já com Frank Sampedro na segunda guitarra). Ou mesmo a dobradinha Rust Never Sleeps/Live Rust (ambos de 79), com canções como "My, My, Hey, Hey (Out Of The Blue)" e "Powderfinger", primeiro nas versões de estúdio e depois ao vivo. Uma interação que voltou a surpreender nas trovoadas retumbantes de "Freedom" (89), de "Ragged Glory" (90) e do ao vivo "Weld" (91, agregado ou não ao EP "Arc", apenas com ruídos de feedback).
Depois das tormentas, Young retomou outra antiga colaboração com os Stray Gators em "Harvest Moon" (92), um álbum límpido e eminentemente acústico inspirado em "Harvest" (72), seu disco de maior sucesso. Mas no caso de Neil, seria impossível uma previsão quanto a um futuro musical. Afinal, enquanto a maioria de seus colegas de geração resignaram-se em viver de louros passados ou se acomodaram na auto-indulgência, a chama do rock'n'roll permanece viva em Young. Do alto de seus 47 anos, vividos sem enferrujar.
Celso Pucci
FONTE:http://rateyourmusic.com/lists/list_view?list_id=133037&show=50&start=50
EVERYBODY KNOWS THIS IS NOWHERE (1969)
(Edição 91,Fevereiro de 1993)
Por estranho que pareça, um dos pilares do rock americano é o canadense Neil Young. Dono da conjunção voz/guitarra mais descarnada do rock'n'roll, ele sempre se manteve como um outsider, ao mesmo tempo fiel às raízes e franco-atirador nas mais diversas tendências.
A revolta inerente ao trabalho de Young deveu-se em boa parte à sua origem. De compleição frágil e saúde precária (além de epilético e diabético, teve poliomielite aos seis anos), ele compensava o temperamento introvertido com a dedicação à música. Tocou em clubes folk de Toronto e com grupos como The Squires e The Mynah Birds (cujo cantor era Rick James!), do qual saiu - com o baixista Bruce Palmer - para ir a Califórnia, no início de 66.
Consta que a dupla estava presa num engarrafamento em Los Angeles, quando topou com o carro onde estavam os guitarristas Stephen Stills e Richie Furay. Young já conhecera Stills há alguns anos no Canadá e deste reencontro nasceu o Buffalo Springfield.
Em dois anos de existência, o grupo formou - ao lado dos Byrds - umas das correntes mais influentes do rock sessentista, que eletrificou o country e o inseriu no contexto psicodélico da época. Apesar de ter grande repercussão, o BS foi logo esfacelado devido às mudanças de membros e à rusgas constantes entre Young e Stills pela voz de comando.
Com o fim do grupo, Stills foi se agregar a David Crosby e ao inglês Graham Nash (egressos dos Byrds e dos Hollies, respectivamente) e - com a futura inclusão de Neil - formariam o supergrupo Crosby, Stills, Nash And Young, na virada dos anos 60/70.
Porém, entre essas duas experiências de sucesso fulminante, Young iniciara carreira solo, gravando um álbum com seu nome e a ajuda de amigos como os produtores David Biggs, Jack Nitzche e o guitarrista Ry Cooder. Mas um encontro com um grupo chamado The Rockets - cujo núcleo era composto pelo guitarrista Danny Whitten, o baixista Billy Talbot e o baterista Ralph Molina - definiu seu passo seguinte.
Young tomara contato com a banda há alguns anos (através da namorada, a cantora folk Robin Lane), mas os compromissos com o Buffalo Springfield impediram-no de tocar com eles. Ao rever o grupo, Neil rebatizou-o como Crazy Horse e passaram a ensaiar juntos. Logo a trupe estava afiada para gravar (em apenas duas semanas) o álbum "Everybody Knows This Is Nowhere", feito praticamente ao vivo em estúdio.
Desde a faixa de abertura (o hit "Cinnamon Girl"), o disco mostrava uma união absolutamente instintiva entre o country rocks sem firulas do grupo e Neil se alternando entre os vocais e os delírios guitarrísticos. O ápice disso surgia em "Down By The River" e "Cowgirl In The Sand" (ambas com mais de nove minutos), em que os longos solos eram a extensão musical dos versos apaixonados de Young. "Round And Round (It Won't Be Long)" e "Running Dry (Requiem For The Rockets)" também não deixavam por menos: a primeira era um lírico tema acústico gravado apenas por Young, Whitten e Robin Lane, enquanto a outra contrapunha os vocais angustiados de Neil ao violino do ex-The Rockets, Bobby Notkoff. A sonoridade crua da faixa-título e de "The Losing End (When You're On)" completavam este registro antológico, acrescentando-lhe a pitada necessária de despojamento.
Young continuaria a forjar outras obras-primas pelas décadas seguintes, na maioria escoradas pelo Crazy Horse. Poderia se listar o aterrador "Tonight's The Night" (75) - dedicado a Danny Whitten e Bruce Berry (roadie do CSN&Y), mortos por overdose em 72 e 73, respectivamente - ou o hard country rock de "Zuma" (também de 75, já com Frank Sampedro na segunda guitarra). Ou mesmo a dobradinha Rust Never Sleeps/Live Rust (ambos de 79), com canções como "My, My, Hey, Hey (Out Of The Blue)" e "Powderfinger", primeiro nas versões de estúdio e depois ao vivo. Uma interação que voltou a surpreender nas trovoadas retumbantes de "Freedom" (89), de "Ragged Glory" (90) e do ao vivo "Weld" (91, agregado ou não ao EP "Arc", apenas com ruídos de feedback).
Depois das tormentas, Young retomou outra antiga colaboração com os Stray Gators em "Harvest Moon" (92), um álbum límpido e eminentemente acústico inspirado em "Harvest" (72), seu disco de maior sucesso. Mas no caso de Neil, seria impossível uma previsão quanto a um futuro musical. Afinal, enquanto a maioria de seus colegas de geração resignaram-se em viver de louros passados ou se acomodaram na auto-indulgência, a chama do rock'n'roll permanece viva em Young. Do alto de seus 47 anos, vividos sem enferrujar.
Celso Pucci
FONTE:http://rateyourmusic.com/lists/list_view?list_id=133037&show=50&start=50