sexta-feira, 29 de março de 2013

SEMANA SANTA

Tempo de vestidos escuros, de escapulários vermelhos, de cataduras sombrias. Enchem-se as ruas de vultos negros macambúzios solitários, aos grupos, que lá vão chorar algumas horas o drama da Paixão. Há em tudo uma expressão de tristeza muito característica. Sente-se um cheiro esquisito, que vem das roupas desenterradas do fundo de arcas antigas, odor indeterminado, complicada combinação de môfo, cânfora, naftalina e rapé. Macróbios soturnos passam, trôpegos, trêmulos, na morna calma das tardes abrasadoras. A voz dos sinos emudeceu. Ao grito áspero e irritante da matraca, sombras acorrem, pesarosas, compungidas, a vista baixa, o rosário entre os dedos, como convêm a criaturas que sabem sofrer quando o tempo é de pranto. Procissões vagarosas desfilam, lúgubres, envôltas na poeira tênue que o sol doira. Dentre o negror pesado dos trajes avultam as manchas rubras das opas. As imagens, no altar, cobriram-se de crepe. As naves dos templos enchem-se, esvaziam-se, num vaivém contínuo. À luz oscilante dos círios, surgem rostos bisonhos, meio velados, em que se estampa não sei que de funesto. Num doce rumor, ouve-se o ciciar de preces apressadas. Por vezes as ruas estão êrmas, lôbregas, num silêncio que aflige. Cerraram-se as portas. Dir-se-ia que a vida desertara a cidade. 

Aí está a semana santa externa.

Olhemo-la internamente.

É a época das indigestões. Não se espantem. É durante a quaresma que mais se come. E com razão – a quaresma é tempo de jejum.

Sabem os senhores hereges, que nunca fizeram penitência, a terrível coisa que é o jejum?

Não sabem.

Pois eu digo. Levanta-se uma alma piedosa pela manhã, executa uma razoável quantidade de rezas, limpa os dentes, se tem este costume, lava os olhos, senta-se à mesa e ingere uma certa porção de café, uma porção regular, pois isto de jejuar sem café está banido, que ninguém é de ferro. Às onze horas o penitente almoça um quilo de bacalhau, três pratos de arroz com feijão, uma travessa de fôlhas de bredo, algumas dezenas de banana, mangas e outras frutas, café e... só.

Alguns engolem também uma traíra do açude, mas isto não é obrigatório. Mesmo sem ela, fica-se bem jejuado. Devora-se tudo com fé. Para que a cerimônia tenha valor é preciso haver uma firme intenção no ânimo de quem a pratica.

Depois do almoço, que finda as duas horas da tarde, dorme-se. Enquanto se ronca, proibição completa de mastigar qualquer coisa.

Às sete da noite acorda-se e ceia-se. A ceia, em qualidade e quantidade, é igual ao almôço.

Come-se tudo, menos os pratos, que são de louça e necessário se tornam para o serviço do dia seguinte. Faz-se o sacrifício de não jantar, por dois motivos: primeiro porque o jantar quebra o jejum; segundo porque seria difícil encontrar onde colocá-lo.
Dura coisa é o jejum. Quem nunca o experimentou pensa, talvez, que êle seja fácil.
Engano. Não é todo estômago devoto que resiste impunemente a quatro pratadas de feijão com coco e uma banda de curimão assada. Nem tôda alma carente tem capacidade para ingerir uma ingente bacalhauzada gordurosa, com meio quilograma de cebolas e profusas rodelas de batatas.

Antigamente, nos bons tempos de ascetismo, era possível a um cidadão dispéptico penitenciar-se moderadamente, sem esfôrço apreciável, com um copo d’água e um pão. Vão obrigar uma criatura assim a deglutir uma peixada de escabeche e meio cento de laranjas! é morte certa ou, pelo menos, um estrago geral nos intestinos.

“A carne é fraca”. É dos evangelhos. Pelo menos foi o que me disseram, e eu não tenho motivo para duvidar. Ora, é inegável que o estômago seja feito de carne. Como exigir, pois, da fraqueza deste pobre órgão, elasticidade bastante para transformar numa jibóia o mísero bípede religioso que nós somos?

É muito! Não se morre por passar um dia sem comer. Pode-se muito bem rebentar comendo, rezando e dormindo doze horas consecutivas.

O prefeito de Cork esteve quase três meses sem alimentar-se, e esticou a canela no dia em que o obrigaram a tomar uma colher de extrato de carne. Donde eu concluo que foi o alimento que o matou e não a abstinência absoluta de comidas em que viveu durante quase um trimestre.

Ora, se uma simples colherada de inofensivo líquido que se enseja no bôjo exíguo de um frasco pode matar um homem, conforme o grau de enfraquecimento em que ele tenha o organismo, que pensar de feijoada titânica, da vasta macarronada oleosa, dos monumentos de verdura, das tentadoras pirâmides de frutos que se oferecem à gula quaresmal dos fiéis!

Comparem um devoto de hoje, repleto, empanzinado, a arfar, a arrotar, ao crente antigo, que fugindo às vaidades do mundo, às tentações femíneas, à maldade dos homens, penetrava os desertos asiáticos e lá se deixava ficar anos e anos, bebendo a água dos regatos e roendo raízes.

Qual dos dois se sacrifica mais?

Evidentemente, o primeiro. O eremita, todo espírito, entregue aos arroubos místicos, esquecia por completo os acepipes com que se delicia o cristão atual, guloso, com os olhos no altar e as mãos na caçarola.

O primeiro tinha necessidades muito reduzidas e limitava-se a satisfazê-las. O segundo não tem precisão de empanturrar-se e empanturrar-se.

O primeiro vivia um século. O segundo arrisca-se a apanhar um estupor e rebentar antes do tempo.

Demais o anacoreta, dado a vida contemplativa, pouco ou nada trabalhava. Quando chegava a um grau de perfeição que nós, leitor, provàvelmente não atingiremos nunca a escassa alimentação que tomava vinha-lhe do céu, por intermédio de um mensageiro em forma de pássaro, que a trazia no bico. Ao crente moderno não sucede o mesmo. Milagres assim já não se fazem. Tem ele que recorrer ao vendeiro, ao padeiro, ao hortelão e, depois de uma penitência de substância, ao farmacêutico.

O místico aperfeiçoava o espírito na solidão e ainda em vida participava da graça celeste. O beato contemporâneo faz despesas, estraga a saúde e não aperfeiçoa coisa nenhuma.

Pelo que aqui fica, creio haver demonstrado que o jejum em que nada se come é mais fácil de executar que o jejum em que se come de tudo. Pode ser que eu esteja em êrro. Minha opinião, no assunto, tem um valor muito relativo. Penso, entretanto, haver dito muitas verdades.

E se o leitor duvida, faça como o patriota irlandês – fique dois meses e meio sem comer.

Depois, se não tiver morrido, veja se lhe é possível passar igual tempo a comer sem parar.

GRACILIANO RAMOS, Palmeira dos Índios, 1921 

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