sexta-feira, 24 de outubro de 2014
O apanhador de desperdícios
de Manoel de Barros
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
Só por hoje, vinte anos
por Roberto José da Silva
Só por hoje são 20 anos. Neles, apenas por motivos profissionais deixei de ir à clínica para nunca esquecer minha doença e também para dizer, aos que estão internados pelo mesmo motivo, que, sim, podemos controlá-la – e que retomar o controle da própria vida é uma das experiências mais fantásticas que se pode ter. Daí a certeza de que somos privilegiados – pois podemos comparar. Mas os que chegam a um internamento são privilegiados, por assim dizer. Uma quantidade ínfima na multidão dos que não têm essa chance, por motivos que vão desde a quase inexistente política pública para o problema, traduzida em vagas limitadas aos que não podem pagar pelo internamento, ao preconceito contra a doença, que é alimentada pela falta de informação absurda, que é a chave para o melhor combate à praga, ou seja, a prevenção. Nunca escondi meu problema – e essa talvez seja uma das armas que escolhi para deixar o tubarão quietinho dentro do meu peito (essa imagem me foi passada pelo jornalista Marcio Varela, a quem pedi ajuda no dia 24 de outubro de 1994, depois de passar quatro dias me drogando com cocaína na forma injetável). As outras são o voluntariado na clínica onde me internei (Quinta do Sol), os remédios estabilizadores de humor, que aprendi a tomar sagradamente, e minha terapia com o psiquiatra, onde vou uma vez por mês, numa sequência que tem bem mais de duas décadas e que começou com uma psicóloga na época em que minha droga era o álcool (o dependente é dependente de qualquer droga, principalmente as que ele não experimentou, costumo dizer nas palestras que dou). Comecei meu tratamento, de fato, no dia em que, internado, fui a uma sala de Alcoólicos Anônimos em, naquele dia, consegui ouvir com a alma o “só por hoje”, pronunciado por uma voluntária da Quinta que era portadora do vírus HIV e hoje mora nos Estados Unidos. Pelas chances que tive (foram três internamentos), me agarro na vida e priorizo o tratamento, que é para o resto da vida, porque saber que pode-se escorregar é outro fator para nos deixar atento ( e isso pode acontecer, mas não penso, apenas vou atrás de mim mesmo para definir onde o calo aperta e pode deflagrar a recaída). Mas, e a multidão que está por aí, agora mesmo, no labirinto das trevas sem saber que está nele e sem a mínima chance de tentar voltar à vida? Uma vez entrevistei um grande terapeuta e ele disse que a maior dificuldade do ser humano, seja ele dependente ou não, é aceitar a normalidade. Sempre se quer mais, se fantasia com algo meio indefinido, fora do real – e esquece-se de viver a vida normal, que é a grande aventura. Dependentes, em sua grande maioria, são inteligentes e sensíveis – daí porque sofrem demais com as próprias dores e as do mundo. Buscam a saída – e entram no pântano. São abandonados pelas famílias, são taxados como escória e morrem, ou matam, por causa do vício. Há uma incompreensão generalizada com o problema, mas é preciso não desistir dessas pessoas, principalmente elas próprias. Por que há saída. Sempre digo que precisamos dar uma chance para nós mesmos. É o que tento fazer – só por hoje.
terça-feira, 21 de outubro de 2014
O ANDAR
por Antônio Maria
Aconteceu na Avenida Copacabana, esquina de Santa Clara. Uma jovem senhora chamou o guarda e apontou o homem, encostado a um poste:
— Prenda este homem, que ele está se portando inconvenientemente.
Era um homem magro, pálido, vestido em casimira velhinha. Não tinha cara de gente má. Ao contrário, seus olhos eram doces e mendigos.
O policial segurou o homem pela lapela. O homem não se mexeu. Apenas levantou os olhos e perguntou:
- Por quê?
A senhora estava uma fúria e dizia num fôlego só:
— Há uma hora este cidadão me segue. Começou no lotação. Desceu quando eu desci. Entrei numa loja e ele entrou também. Andei um quarteirão e ele andou também. Entrei no mercadinho e ele entrou também...
— E lhe disse alguma coisa?
— Não. Só olhava.
O guarda soltou a lapela do homem. O homem agradeceu. O guarda dirigiu-se ainda à mulher:
— Mas ele só olhava?
— Sim. Mas olhava de maneira obscena.
O guarda perguntou, então, ao homem:
— Você olhava de maneira obscena?
— Sim. Não sei mentir. Mas qualquer um no meu lugar faria o mesmo. 0 senhor já viu ela andar?
0 guarda viu depois, quando a mulher desistiu da prisão do seu espectador e foi andando. Não se deve explicar muito, mas é preciso que se diga: era uma moça brasileira. Uma moça de formato brasileiro, com movimentos brasileiríssimos. Dessas que deviam ter, como certos automóveis, uma tabuleta às costas, onde se lesse: "Amaciando".
08/01/1960
Texto extraído do livro "Benditas sejam as moças: as crônicas de Antônio Maria", Editora Civilização Brasileira - Rio de Janeiro, 2002, pág. 79, organização de Joaquim Ferreira dos Santos.
domingo, 19 de outubro de 2014
sexta-feira, 17 de outubro de 2014
A MENTIRA COMO ARTE POLÍTICA
por Ivan Schmidt
Com todo o rigor de sua desenvoltura intelectual a filósofa judia Hannah Arendt escreveu no primeiro parágrafo do ensaio “Verdade e Política”, inserido no livro Entre o passado e o futuro (Editora Perspectiva, SP, 1972), que “jamais alguém pôs em dúvida que verdade e política não se dão bem uma com a outra, e até hoje ninguém que eu saiba, incluiu entre as virtudes políticas a sinceridade. Sempre se consideraram as mentiras como ferramentas necessárias e justificáveis ao ofício não só do político ou do demagogo, como também do estadista”.
Mesmo estimulado por uma realidade diversa do atual contexto vivido no Brasil (a polêmica suscitada pela publicação de Eichmann em Jerusalém), a escorreita elaboração do pensamento político da autora parece se encaixar com perfeição à campanha presidencial nesse segundo turno.
Ao introduzir a discussão dos porquês da situação Hannah levanta questões pertinentes: “E o que isso significa, por um lado, para a natureza e dignidade do âmbito político e, por outro, para a natureza e dignidade da verdade e veracidade? É da essência mesma da verdade o ser impotente e da essência mesma do poder ser embusteiro?”.
Os ataques gratuitos e vizinhos do desespero que as equipes de marketing dos candidatos à presidência da República colocam diariamente nas emissões de rádio e televisão no horário eleitoral, e eles os recitam como papagaios, quase sempre desvinculados da verdade factual, passam ainda a presunção boçal de que ouvintes e telespectadores são vítimas da mais crassa idiotia.
A verdade é que as provocações começaram nos programas da candidata à reeleição, ocasionando nos últimos dias a reação tucana. O mesmo tom passou a se manifestar nos debates entre os candidatos, conforme se observou nos programas já realizados pelas redes Bandeirantes e SBT. Haverá, ainda, dois enfrentamentos televisivos dos candidatos (Record e Globo) antes da eleição e, a julgar pelo ânimo crescente da apontar o dedo na direção do oponente, a cara feia e a aura messiânica cuidadosamente calculada, sejam utilizados em grau máximo como últimos cartuchos dos marqueteiros que, afinal, precisam justificar as fortunas que estão levando.
No primeiro debate Dilma acusou Aécio de ter construído um aeroporto na fazenda de seu tio-avô, no município mineiro de Cláudio, assim como se referiu a parentes do então governador com empregos na administração estadual. No segundo debate (SBT), a presidente lembrou o caso da recusa de Aécio em submeter-se ao teste do bafômetro, no Rio de Janeiro, argumentando que alguém que age dessa forma não pode ser presidente da República.
Na resposta Aécio poderia ter dito, mas não o fez, que se é o caso de generalizar, Luiz Inácio também deveria ser dispensado do exercício da presidência, sobretudo depois que o correspondente do New York Times no Brasil escreveu uma reportagem dizendo claramente que o então presidente era “um pau d’água”. O rumor foi tão grande que o próprio Lula chegou a sugerir a expulsão do repórter do território brasileiro, embora convencido por assessores próximos a fazer de conta que não era com ele. Sobre nepotismo, Aécio respondeu que o irmão da presidente, Igor Rousseff, foi funcionário fantasma da prefeitura de Belo Horizonte na gestão de Fernando Pimentel, governador eleito de Minas Gerais.
Hannah Arendt escreveu, ainda, e suas palavras são estritamente adequadas ao episódio eleitoral brasileiro, arrazoando que “as mentiras, visto serem amiúde utilizadas como substitutos de meios mais violentos, podem ser consideradas como instrumento relativamente inofensivo no arsenal da ação política”.
A filósofa revela sua inquietação pessoal e a busca por “descobrir que dano é o poder político capaz de infligir à verdade”, revelando investigar a matéria mais por razões políticas que filosóficas: “Por isso permitimo-nos desconsiderar a questão do que é a verdade, contentando-nos com tomar a palavra no sentido em que os homens comumente a entendem”.
E, com o objetivo de botar de vez a questão em pratos limpos, Hannah acrescentou o seguinte: “E se agora pensamos nas verdades modestas tais como o papel, durante a Revolução Russa, de um homem cujo nome era Leon Trotski, que não aparece em nenhum dos livros de história soviéticos – imediatamente tomamos consciência do quanto são mais vulneráveis do que todas as espécies de verdade racional juntas”.
O que, na verdade, queria dizer com isso? A resposta está nas linhas que seguem, nas quais constata (usando a linguagem de Hobbes) que “a dominação, quando ataca a verdade racional, como que exorbita seu domínio, ao passo que combate em seu próprio terreno ao falsificar ou negar fatos mentirosamente”.
O contrário da verdade, escreveu Hannah, “era a mera opinião equacionada com a ilusão; e foi esse degradamento da opinião o que conferiu ao conflito sua pungência política; pois é a opinião, e não a verdade, que pertence à classe dos pré-requisitos indispensáveis a todo poder”. O ex-presidente norte-americano Madison dizia que “todo governo assenta-se sobre a opinião”, fato ampliado dessa forma pela consagrada intelectual: “E nem mesmo o mais autocrático tirano ou governante pode alçar-se algum dia ao poder, e muito menos conservá-lo, sem o apoio daqueles que têm modo de pensar análogo”.
Assim, toda pretensão a uma verdade absoluta cuja validade “não requeira apoio do lado da opinião, atinge na raiz mesma toda a política e todos os governos”, considerou Hannah, lembrando que o antagonismo entre verdade e opinião “foi elaborado por Platão (especialmente no Górgias) como o antagonismo entre a comunicação em forma de ‘diálogo’, que é o discurso adequado à verdade filosófica, e em forma de ‘retórica’, através da qual o demagogo, como hoje diríamos, persuade a multidão”.
Outra preciosidade do pensamento filosófico de Hannah Arendt, enunciada nos idos de 1954, quando escreveu o ensaio em foco, que 60 anos depois ainda assombra pelo sentido original, serve como uma luva confeccionada sob medida para um dos candidatos à presidência: “A razão humana, por ser falível, só pode funcionar se o homem pode fazer ‘uso público’ dela, e isso é verdadeiro, outrossim, para aqueles que, ainda em estado de ‘tutela’, sejam incapazes de usar suas mentes ‘sem a orientação de alguém’”.
Sem muito esforço percebe-se hoje na disputa eleitoral uma cópia quase idêntica da lúcida opinião da filósofa judia, ao apontar com toda a propriedade a infausta existência de personagens dos negócios humanos incapazes de raciocinar ou falar por si próprios.
Para não seguir castigando o leitor com a multiplicidade dos conceitos irrepreensíveis de uma pensadora altamente admirada nos meios cultos do Ocidente, seria bastante a transcrição de mais uma de suas iluminações: “Como o mentiroso é livre para moldar os seus ‘fatos’ adequando-os ao proveito e ao prazer, ou mesmo às melhores expectativas de sua audiência, o mais provável é que ele seja mais convincente do que o que diz a verdade”.
Estivesse o leitor num teatro ao final da peça, decerto perceberia o pano descendo lentamente.
terça-feira, 14 de outubro de 2014
CABEÇA DE PEDRA
Nonsense. Ele não sabia direito que diabo era aquilo, mas gostou do som. De súbito, lhe veio o complemento que poderia ser... Ah, dane-se. Tascou no caderno espiral onde anotava essas coisas vindas não se sabe de onde: Nonsense. Não Pense. Faça. Virou a página, deixou ali em cima da cama, olhou um poster de Hendrix, colocou Alberta Hunter em vinil na vitrola, saiu para tomar um gole de água do filtro de barro na caneca de alumínio, abriu a porta de trás, viu o quintal com o mato tomando conta de tudo, sorriu por dentro, de felicidade, voltou, olhou o caderno de novo. Nonsense. Foi a um dicionário: Expressão, linguagem ou situação ilógica, absurda, desprovida de sentido ou de coerência. Riu de novo. Agora sabia. Então, fez: apagou tudo.
GRANDES ÁLBUNS
STEVIE WONDER – INNERVISIONS
por Tiago Ferreira
Stevie Wonder pode não enxergar, mas suas visões interiores são mais interessantes e complexas do que podemos imaginar. Ao contrário de grandes artistas que se aprofundaram nas drogas e expeliram seus demônios em canções clássicas, Stevie preferiu seguir o caminho de encontrar a tão distante paz sem soar religioso ou dogmático demais.
Depois de uma bem-sucedida carreira bancada pela Motown, Stevie estava inspirado no começo da década de 70, quando entregou alguns de seus melhores trabalhos. E Innervisions, se não for o melhor deles, não poderia ficar de fora do panteão.
O groove dos pianos de Stevie já aparecem logo na primeira faixa, “Too High”, que critica uma garota que pretende ‘chegar aos céus’ por vias alucinógenas. Uma das melhores do álbum, “Living For The City” conta a crônica de uma cidade com base em uma família que vive mal “pela cidade”.
Naquele momento a canção refletia a conturbada vida dos negros norte-americanos, mas tem um paralelo interessante com nossa realidade: lembra aquelas pessoas que tentam uma vida melhor nas grandes cidades, mas se deparam com a injustiça social. Essa destreza acaba influenciando negativamente sua prole, que sofre na pele os preconceitos de forma direta e têm que encarar esse choque cultural de alguma forma, seja pela violência ou pela aceitação. Stevie Wonder tenta dar positivismo a quem vive dessa maneira quando diz: “Se não mudarmos o mundo, ele vai acabar em breve”.
De fato, seria injusto apontar quais seriam as ‘melhores canções’ do álbum. Todas têm a sua importância e são belíssimas, tratadas como pérola por um dos maiores soulman já existentes.
“Golden Lady” é uma balada divina, “Visions” serve como o editorial de todo o disco: “Apenas sei o que digo (…) e todas as coisas têm um fim”. Mais profundo que as belas composições é o ritmo fluido da banda, que consegue encaixar perfeitamente cada nota de sax, cada slap de contrabaixo (vide “Higher Ground”), os solos de guitarra nos lugares perfeitos.
Obra de mestre, mas ainda há bastante controvérsia quando o assunto é nomear o melhor álbum de BIG Stevie: Talking Book (1972) e Songs In The Key Of Life (1976) entram na disputa, mas Innervisions, para mim, é o clássico dos clássicos.
sábado, 11 de outubro de 2014
sexta-feira, 10 de outubro de 2014
MONÓLOGO MUNDO MODERNO
de Chico Anysio
E vamos falar do mundo, mundo moderno
marco malévolo
mesclando mentiras
modificando maneiras
mascarando maracutaias
majestoso manicômio
meu monólogo mostra
mentiras, mazelas, misérias, massacres
miscigenação
morticínio, maior maldade mundial
madrugada, matuto magro, macrocéfalo
mastiga média morna
monta matumbo malhado
munindo machado, martelo
mochila murcha
margeia mata maior
manhazinha move moinho
moendo macaxeira
mandioca
meio-dia mata marreco
manjar melhorzinho
meia-noite mima mulherzinha mimosa
maria morena
momento maravilha
motivação mútua
mas monocórdia mesmice
muitos migram
mastilentos
maltrapilhos
morarão modestamente
malocas metropolitanas
mocambos miseráveis
menos moral
menos mantimentos
mais menosprezo
metade morre
mundo maligno
misturando mendigos maltratados
menores metralhados
militares mandões
meretrizes marafonas
mocinhas, meras meninas,
mariposas
mortificando-se moralmente
modestas moças maculadas
mercenárias mulheres marcadas
mundo medíocre
milionários montam mansões magníficas
melhor mármore
mobília mirabolante
máxima megalomania
mordomo, mercedes, motorista, mãos
magnatas manobrando milhões
mas maioria morre minguando!
moradia meiágua, menos, marquise
mundo maluco
máquina mortífera
mundo moderno melhore
melhore mais
melhore muito
melhore mesmo
merecemos
maldito mundo moderno
mundinho merda!
AS SEIS CORDAS
por Federico Garcia Lorca
A guitarra
faz soluçar os sonhos.
O soluço das almas
perdidas
foge por sua boca
redonda.
E, assim como a tarântula,
tece uma grande estrela
para caçar suspiros
que bóiam no seu negro
abismo de madeira.
*Federico Garcia Lorca nasceu na região de Granada, na Espanha, em 05 de junho de 1898, e faleceu nos arredores de Granada no dia 19 de agosto de 1936, assassinado pelos "Nacionalistas". Nessa ocasião o general Franco dava início à guerra civil espanhola. Apesar de nunca ter sido comunista - apenas um socialista convicto que havia tomado posição a favor da República - Lorca, então com 38 anos, foi preso por um deputado católico direitista que justificou sua prisão sob a alegação de que ele era "mais perigoso com a caneta do que outros com o revólver." Avesso à violência, o poeta, como homossexual que era, sabia muito bem o quanto era doloroso sentir-se ameaçado e perseguido. Nessa época, suas peças teatrais "A casa de Bernarda Alba", "Yerma", "Bodas de sangue", "Dona Rosita, a solteira" e outras, eram encenadas com sucesso. Sua execução, com um tiro na nuca, teve repercussão mundial.
A poesia acima foi extraída de sua "Antologia Poética", Editora Leitura S. A. - Rio de Janeiro, 1966, pág. 17, tradução e seleção de Afonso Felix de Sousa.
A poesia acima foi extraída de sua "Antologia Poética", Editora Leitura S. A. - Rio de Janeiro, 1966, pág. 17, tradução e seleção de Afonso Felix de Sousa.
quarta-feira, 8 de outubro de 2014
O PAVÃO
Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d'água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.
Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.
Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.
Rio, novembro, 1958
Texto extraído do livro "Ai de ti, Copacabana", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 149.
sexta-feira, 3 de outubro de 2014
quarta-feira, 1 de outubro de 2014
CABEÇA DE PEDRA
Vingança
Cansou! Cansou de ser preterido pela maquininha. Cansou de ver crianças, moços, velhos, todos enfim, com os olhos grudados na telinha e/ou digitando mensagens sem parar, ou falando sem parar, como se estivessem transmitindo o anúncio do fim do mundo. Em todos os lugares, públicos ou privados. Em todas as cidades que visitou além da sua. Cansou de ver lançamentos em cima de lançamentos com a última e mais aloprada geringonça tecnológica. Não havia mais as pessoas normais conversando pessoalmente, olho no olho, abraço no abraço. Era tudo na maquininha. Foi então que lembrou do Dr. Phibes e suas vinganças magistralmente perpetradas por Vincent Price. E inventou! A coisa mais moderna, que deixava todos os outros aparelhos no chinelo. E bastava apenas um toque para que o furador de gelo prateado surgisse para varar o crânio do curioso pela última novidade da era moderna.
CABEÇA DE PEDRA: http://cabecadepedra1.blogspot.com.br/2014/10/vinganca.html
FÁBULAS FABULOSAS
por Millôr Fernandes
O Leão e o Rato
Depois que o Leão desistiu de comer o rato porque o rato estava com espinho no pé (ou por desprezo, mas dá no mesmo), e, posteriormente, o rato, tendo encontrado o Leão envolvido numa rede de caça, roeu a rede e salvou o Leão (por gratidão ou mineirice, já que tinha que continuar a viver na mesma floresta), os dois, rato e Leão, passaram a andar sempre juntos, para estranheza dos outros habitantes da floresta (e das fábulas). E como os tempos são tão duros nas florestas quanto nas cidades, e como a poluição já devastou até mesmo as mais virgens das matas, eis que os dois se encontraram, em certo momento, sem ter comido durante vários dias. Disse o Leão:
- Nem um boi. Nem ao menos uma paca. Nem sequer uma lebre. Nem mesmo uma borboleta, como hors-d'oeuvres de uma futura refeição.
Caiu estatelado no chão, irado ao mais fundo de sua alma leonina. E, do chão onde estava, lançou um olhar ao rato que o fez estremecer até a medula. "A amizade resistiria à fome?" - pensou ele. E, sem ousar responder à própria pergunta, esgueirou-se pé ante pé e sumiu da frente do amigo(?) faminto. Sumiu durante muito tempo. Quando voltou, o Leão passeava em círculos, deitando fogo pelas narinas, com ódio da humanidade. Mas o rato vinha com algo capaz de aplacar a fome do ditador das selvas: um enorme pedaço de queijo Gorgonzola que ninguém jamais poderá explicar onde conseguiu (fábulas!). O Leão, ao ver o queijo, embora não fosse um animal queijífero, lambeu os beiços e exclamou:
- Maravilhoso, amigo, maravilhoso! Você é uma das sete maravilhas! Comamos, comamos! Mas, antes, vamos repartir o queijo com equanimidade. E como tenho receio de não resistir à minha natural prepotência, e sendo ao mesmo tempo um democrata nato e confirmado, deixo a você a tarefa ingrata de controlar o queijo com seus próprios e famélicos instintos. Vamos, divida você, meu irmão! A parte do rato para o rato; para o Leão, a parte do Leão.
A expressão ainda não existia naquela época, mas o rato percebeu que ela passaria a ter uma validade que os tempos não mais apagariam. E dividiu o queijo como o Leão queria: uma parte do rato, outra parte do Leão. Isto é: deu o queijo todo ao Leão e ficou apenas com os buracos. O Leão segurou com as patas o queijo todo e abocanhou um pedaço enorme, não sem antes elogiar o rato pelo seu alto critério:
- Muito bem, meu amigo. Isso é que se chama partilha, Isso é que se chama justiça. Quando eu voltar ao poder, entregarei sempre a você a partilha dos bens que me couberem no litígio com os súditos. Você é um verdadeiro e egrégio meritíssimo! Não vai se arrepender!
E o ratinho, morto de fome, riu o riso menos amarelo que podia, e ainda lambeu o ar para o Leão pensar que lambia os buracos de queijo. E enquanto lambia o ar, gritava, no mais forte que podiam seus fracos pulmões:
- Longa vida ao Rei Leão! Longa vida ao Rei Leão!
MORAL: Os ratos são iguaizinhos aos homens.