sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Só por hoje, vinte anos


por Roberto José da Silva


Só por hoje são 20 anos. Neles, apenas por motivos profissionais deixei de ir à clínica para nunca esquecer minha doença e também para dizer, aos que estão internados pelo mesmo motivo, que, sim, podemos controlá-la – e que retomar o controle da própria vida é uma das experiências mais fantásticas que se pode ter. Daí a certeza de que somos privilegiados – pois podemos comparar. Mas os que chegam a um internamento são privilegiados, por assim dizer. Uma quantidade ínfima na multidão dos que não têm essa chance, por motivos que vão desde a quase inexistente política pública para o problema, traduzida em vagas limitadas aos que não podem pagar pelo internamento, ao preconceito contra a doença, que é alimentada pela falta de informação absurda, que é a chave para o melhor combate à praga, ou seja, a prevenção. Nunca escondi meu problema – e essa talvez seja uma das armas que escolhi para deixar o tubarão quietinho dentro do meu peito (essa imagem me foi passada pelo jornalista Marcio Varela, a quem pedi ajuda no dia 24 de outubro de 1994, depois de passar quatro dias me drogando com cocaína na forma injetável). As outras são o voluntariado na clínica onde me internei (Quinta do Sol), os remédios estabilizadores de humor, que aprendi a tomar sagradamente, e minha terapia com o psiquiatra, onde vou uma vez por mês, numa sequência que tem bem mais de duas décadas e que começou com uma psicóloga na época em que minha droga era o álcool (o dependente é dependente de qualquer droga, principalmente as que ele não experimentou, costumo dizer nas palestras que dou). Comecei meu tratamento, de fato, no dia em que, internado, fui a uma sala de Alcoólicos Anônimos em, naquele dia, consegui ouvir com a alma o “só por hoje”, pronunciado por uma voluntária da Quinta que era portadora do vírus HIV e hoje mora nos Estados Unidos. Pelas chances que tive (foram três internamentos), me agarro na vida e priorizo o tratamento, que é para o resto da vida, porque saber que pode-se escorregar é outro fator para nos deixar atento ( e isso pode acontecer, mas não penso, apenas vou atrás de mim mesmo para definir onde o calo aperta e pode deflagrar a recaída). Mas, e a multidão que está por aí, agora mesmo, no labirinto das trevas sem saber que está nele e sem a mínima chance de tentar voltar à vida? Uma vez entrevistei um grande terapeuta e ele disse que a maior dificuldade do ser humano, seja ele dependente ou não, é aceitar a normalidade. Sempre se quer mais, se fantasia com algo meio indefinido, fora do real – e esquece-se de viver a vida normal, que é a grande aventura. Dependentes, em sua grande maioria, são inteligentes e sensíveis – daí porque sofrem demais com as próprias dores e as do mundo. Buscam a saída – e entram no pântano. São abandonados pelas famílias, são taxados como escória e morrem, ou matam, por causa do vício. Há uma incompreensão generalizada com o problema, mas é preciso não desistir dessas pessoas, principalmente elas próprias. Por que há saída. Sempre digo que precisamos dar uma chance para nós mesmos. É o que tento fazer – só por hoje.


Nenhum comentário :