quarta-feira, 10 de agosto de 2016

DISCOTECA BÁSICA

Aretha Franklin
I Never Loved a Man the Way I Love You (1967)

(Edição 83,Junho de 1992)


por  José Augusto Lemos

O grande Otis Redding balança os braços e reclama com o vice-presidente da Atlantic Records, Jerry Wexler: "Acabo de perder a minha música. Essa garota a roubou de mim."
Essa "garota" de 24 anos chamava-se Aretha Franklin, e Otis tinha razão de se sentir mordido. Dois anos antes, "Respect", de sua autoria, chegara ao 35° posto do Hot 100 da Billboard. Agora, abril de 67, na voz de Aretha, a canção ocupava pela segunda semana o primeiro lugar. Mas não era a isso que ele se referia.
O original esparso e seco de Redding havia sido virado do avesso, como se não passasse de um simples rascunho. Uma levada venenosa de guitarra e metais atravessava toda a música, puxada por um delirante transe gospel de chamada-e-resposta. A letra - Otis reclamando de sua vida conjugal - ganhava uma nova ênfase com as vozes de Aretha e sua irmã Carolyn acrescentando todo tipo de imprecação furiosa, metralhando em staccato: "Re-re-re-respect! (just a little bit, just a little bit)", antes de explodir, soletrando no refrão: "R-E-S-P-E-C-T!... find out what it means to me!... R-E-S-P-E-C-T!... sock it to me, sock it to me, sock it to me!"
A garota que seria batizada de Lady Soul vinha mesmo da igreja e contava com mais de dez anos de estrada. Nascida em Memphis, mas criada em Detroit, tinha seis anos quando a mãe abandonou seu pai, o reverendo C.L. Franklin, pregador superstar no circuito gospel.
A garotinha cresceu no colo dos maiores cantores do gênero: Mahalia Jackson, James Cleveland, as Ward Singers e os Soul Stirrers - comandados por R.H. Harris e seu discípulo Sam Cooke. Foi Sam, ídolo e amigo, quem a encorajou a segui-lo na travessia do gospel para a música secular (ou "pop").
Aos 14 anos, Aretha já chamava a atenção no coral da New Bethel Baptist Church, a igreja de seu pai, com o qual chegou a gravar para o selo JVB. Aos 18 era levada para a Columbia, pelas mãos do produtor John Hammond, que tentou transformá-la numa espécie de diva-jazz com só uma pitada de R&B. Foram cinco anos gravando standards da Broadway e outras "pérolas do cancioneiro". Não podia mesmo dar certo.
"Eu queria devolvê-la à igreja", foi a explicação de Jerry Wexler, vice-presidente da Atlantic Records. O selo de Nova York comandava o mercado de R&B desde que lançara Ray Charles, e sua grande fonte de renda no momento era a distribuição dos selos independentes do Sul, como a Stax/Volt de Memphis e Fame de Muscle Shoals, Alabama.
Foi para este peculiar celeiro de hits que Wexler levou Aretha em janeiro de 67. Obtivera grandes resultados com Wilson Pickett e agora repetia a dose.
O chamado hard soul de Muscle Shoals - R&B cru e áspero, meio country - merece um capítulo à parte na história do pop. Um bando de brancos de alma preta, "soul cowboys", num estúdio montado dentro de um barraco, criando/arranjando/produzindo clássicos em série, comandados pela dupla de compositores Dan Penn e Chips Moman e apoiados pelos monstruosos Spooner Oldham, nos teclados, e Roger Hawkins, na bateria.
Como produtor, Wexler optou por deixar Aretha gravar primeiro, sozinha ao piano, para só depois o staff da Fame trabalhar em cima. A gravação, tumultuada, só durou uma tarde. Aretha voltou para Nova York e Wexler a seguiu depois, levando a fita com apenas duas canções finalizadas.
Pode ser que você nunca tenha ouvido falar nesse disco (fora de catálogo no Brasil desde que se esgotou sua primeira edição). Mas se tiver em casa o incendiário Volume 6 da série Atlantic Rhythm&Blues, conhece estas duas obras-primas: lados A e B do primeiro compacto de Aretha pelo seu novo selo.
Mesmo antes de ela abrir a boca, "I Never Loved A Man (The Way I Love You)" já arrepia a espinha com o piano elétrico de Oldham e a guitarra de Moman. Depois, então... a América e o mundo caíram diante da verdadeira Aretha Franklin.
Já a balada "Do Right Woman - Do Right Man" (de Dan Penn e Chips Moman) é uma espécie de resposta a "ItÕs A ManÕs World" de James Brown.
Quem assistiu a O Cabo do Medo, de Scorsese, lembra como esta música - junto com o livro Sexus, de Henry Miller, e a planta conhecida em português oficial como cânhamo - é utilizada pelo psicopata vingativo para seduzir, com extrema maestria, a mocinha indecisa entre puberdade e adolescência. Não seria exagero dizer que o disco inteiro, e esta música em particular, está para o pop negro como O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, está para o mundo das letras.
Em um dia de trabalho, dois clássicos e um single entre os Dez Mais. Wexler não perdeu tempo: mandou o pessoal vir até Nova York para mais duas sessões. Resultado: o estouro de "Respect".
Mais cinco dias e o álbum estava pronto, mantendo a carga desenfreada de gospel e R&B de seus primeiros hits.
"Dr. Feelgood" explora o mesmo tema de "I Never Loved...": turbulenta dependência sexual, discutida com as cartas abertas em cima da mesa, refletindo a relação de Aretha com o co-autor da música, seu então marido e empresário, Ted White.
A outra co-composição de White, "DonÕt Let Me Lose This Dream", é uma balada soul com glacê meio bossa nova, meio baião à moda de Burt Bacharach.
Outras faixas, como "Save Me" e "Soul Serenade", escancaram a importância da irmã Carolyn e do saxofonista King Curtis, diretor musical das bandas que acompanharam Aretha até morrer esfaqueado numa briga de bar em 71. Pois é na tapeçaria dos metais com os backings vocals que Aretha rasga garganta e coração.
I Never Loved A Man... inclui ainda um tributo ao mestre Sam Cooke - as covers para "Good Times" e "A Change Is Gonna Come" - e foi apenas o primeiro de uma série de quatro LPs seguindo fielmente esta receita de "hard soul sulista", todos absolutamente "básicos".


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