sexta-feira, 10 de março de 2017

VAMPIROS DE ALMAS

Invasion of the Body Snatchers, 1956

por  Ronald Perrone




Por mais que coloquem o diretor Don Siegel como um dos grandes mestres do cinema policial, western e de ação norte-americano, o que de fato não deixa de ser, frequentemente é VAMPIROS DE ALMAS, um sci-fi aterrorizante de relativo baixo orçamento, o trabalho mais lembrado e celebrado de sua carreira e que o próprio diretor considerava um de seus prediletos. Mas realmente é uma obra bastante curiosa em diversos aspectos e acabou se tornando um dos filmes mais importantes e definitivos sobre invasão alienígena em pleno auge da ficção científica nos anos 50.

O fato de VAMPIROS DE ALMAS possuir um estilo de direção minimalista, realista, num gênero fantasioso combinado a uma alegoria sobre o fator dominante crescente da desumanização, da falta de sentimento, do conformismo e da uniformidade de pensamento das sociedades, seria suficiente para justificar sua reputação. Só que o filme ganhou uma proporção ainda mais relevante ao trabalhar o tema de invasores do espaço de uma maneira que dialogaria fortemente com o contexto político do momento, a paranoia da Guerra Fria e do temor da ideologia comunista invadindo o “perfeito” modo de vida americano, a “caça às bruxas” promovida pelo então senador Joseph McCarthy, que realizava uma intensa patrulha anticomunista, período que ficou conhecido como Macartismo (ou, no original McCarthyism).

Na trama de VAMPIROS DE ALMAS, temos o protagonista, Dr. Miles (Kevin McCarthy, que havia trabalhado com Siegel em seu filme anterior, AN ANNAPOLYS STORY), que é um dos primeiros a perceber que uma aparente neurose coletiva era, na verdade, uma invasão alienígena de proporções impensáveis. Aos poucos, de forma cadenciada, o filme vai trabalhando essa invasão, representada por enormes vagens leguminosas que se alojam próximo a seres humanos adormecidos e lhes duplicam o físico e a mente, mantendo as mais íntimas características e sua essência, mas não as emoções.



Concluído o processo de duplicação, o humano matriz é destruído de alguma forma, restando só a cópia. Mesmo aqueles que passam a desconfiar do seu vizinho, ou amigo ou até mesmo um parente, acaba não tendo muito o que fazer, porque uma hora ou outra terão de dormir e serão duplicados. Uma situação simples, mas aterradora. Se esses invasores são seres desprovidos de emoção, não possuem individualidade, acabam refletindo, portanto, exatamente o que era o estereótipo do comunista (comedores de criancinhas, como berram alguns). Assim como as garantias que esses seres dão de que a vida será mais agradável ao aceitar esse estado mental coletivo, pode também ter ecos no que se pensava sobre a ideologia do comunismo.

Por outro lado, alguns responsáveis pela existência do filme afirmam que nunca tiveram a intenção de criar esse comentário sobre a “ameaça comunista”. Jack Finney, autor do livro que inspirou VAMPIROS DE ALMAS, disse que a sua intenção foi escrever uma história pura de terror e ficção científica sem outra pretensão que não o divertimento. No livro Dança Macabra, de Stephen King, Finney comenta: “Tenho lido explicações do ‘significado’ dessa história que me divertem pelo fato de que não há significados; foi simplesmente uma história feita para entreter, e com nenhum significado além desse. A primeira versão em filme do livro foi feita com grande fidelidade, exceto pelo final medíocre; e sempre me divertia com as argumentações das pessoas envolvidas com o filme de que eles tinham alguma espécie de mensagem em mente. Se era assim é muito mais do que eu jamais fiz, e, dada a proximidade com que eles seguiram minha historia, é difícil ver como essa mensagem surgiu. E quando a mensagem foi definida, sempre me pareceu um pouco pobre de espírito“.



Siegel, quando perguntado sobre a referência política específica ao Macartismo, disse, na sua entrevista com Peter Bogdanovich, que acreditava que o cinema servia principalmente ao propósito de entreter (e é curioso ele dizer isso, porque seu cinema sempre foi bastante reflexivo), mas que era inevitável naquele momento que tal assunto não viesse à tona, por mais que não tentasse enfatizá-lo.

De fato, assistir a VAMPIROS DE ALMAS com a simples intenção de entreter-se durante pouco menos de 90 minutos também não deixa de ser um bom negócio. É eficiente como suspense e algumas sequências são realmente tensas e memoráveis. Mas quanto mais se pensa o filme e aprofunda-se em algumas questões é que a coisa fica ainda mais interessante. É possível até notar um tom totalmente contrário em relação a alegoria anti-comunista.

É possível fazer uma leitura do filme como uma crítica à histeria anti-comunista, o que sugere que a ideia de que comunistas estão secretamente tentando se infiltrar e influenciar nos vários aspectos do cotidiano americano (como era imaginado pelos impertinentes anti-comunistas, como o senador McCarthy) é tão ridícula quanto é provável que seres alienígenas venham do espaço plantar vagens que crescem réplicas perfeitas de seres humanos específicos a quem vão substituir. É como acontece hoje no Brasil, onde há gente esperando acontecer o grande golpe comunista do PT. Vão esperar sentados (detalhe, não sou petista, nem defendo partido algum, mas dizer que o Brasil corre o risco de sofrer um golpe comunista é algo tão fantasioso quanto o roteiro de ficção científica dos ano 50).



Já o astro do filme, o ator Kevin McCarthy (cujo sobrenome compartilhado com o tal senador confere uma ironia adicional) chegou a declarar em entrevista que sentia que os seres invasores surgidos das vagens refletiam os capitalistas sem coração que trabalham na Madison Avenue, publicitários que fazem de tudo para vender qualquer coisa. Na verdade, se o comunismo era percebido pelos norte-americanos da década de 50 como uma ameaça à sua individualidade, o próprio capitalismo também era frequentemente visto da mesma maneira.

Um sistema capitalista altamente complexo necessita, para o seu funcionamento, um nível de padronização, especialmente de mão de obra. Chaplin já havia abordado o assunto na década de 30, em TEMPOS MODERNOS. Nos anos 50, no crescimento pós-Segunda Guerra, a coisa já tinha tomado uma proporção gigantesca, é a era de ouro da homogeneização das técnicas de produção de massa orientada para a máxima eficiência nos mais variados setores comerciais. Ou alguém vai me dizer que um funcionário do McDonald’s não passava por uma autêntica lavagem cerebral?

Essa dialética anti-capitalismo x anti-comunismo dá margem para muita discussão que ultrapassa os limites do filme. De todo modo, há uma questão que converge em ambos pontos de vista, que é a alienação coletiva, a desumanização e o conformismo, independente de que lado você esteja. É o grande medo do Dr. Miles, um sujeito individualista auto-suficiente que vê o mundo pelos seus próprios padrões e não pretende aceitar um pensamento imposto, um modo de vida onde todos são iguais e não possuem sentimentos. Há um certo diálogo em que um dos personagens desabafa que prefere sentir dor e tristeza do que não sentir absolutamente nada. O que acaba sendo bem mais relevante como reflexão humana do que acusar um lado em posicionamentos políticos.



VAMPIROS DE ALMAS é relativamente fiel a adaptação de um romance de Jack Finney, publicado pela primeira vez como um conto na revista Collier, em 1954, com o título Sleep No More, que aliás, é muito melhor que o título dado na versão expandida posteriormente sob a forma de romance, na qual é mais conhecida: The Body Snatchers. Grande parte do enredo e personagens criados por Finney estão intactos na adaptação, assim como o local onde a história transcorre, a pequena cidade do interior, Santa Mira.

A principal alteração é o final. Se os realizadores usassem os escritos de Finney, mostrariam um Dr. Miles numa batalha heroica contra os invasores fazendo com que os alienígenas desistissem de colonizar a terra, o que seria complicado de filmar por causa do orçamento. O que temos, no entanto, mantém um bocado o tom otimista original, com o protagonista conseguindo avisar as autoridades da ameaça. Mas não deixa de ser ambíguo, já que o filme nunca mostra se a mobilização contra a invasão teve sucesso ou não. Essa versão não me incomoda em nada, apesar de muita gente reclamar. A verdade é que ela foi imposta pelo estúdio como resposta ao final imaginado por Siegel, um desfecho pessimista em que um histérico Dr. Miles no meio do trânsito grita aos motoristas: “você será o próximo!” e terminava o filme apontando o dedo para a câmera, para o próprio público, “você será o próximo!“, o que seria simplesmente genial.



As filmagens de VAMPIROS DE ALMAS duraram algo em torno de três a quatro semanas, com um orçamento de US$ 400 mil dólares, o que já não era muito em comparação ao que estava sendo feito no gênero no período, como um FORBIDDEN PLANET, por exemplo. Mas o filme gasta muito pouco com cenário elaborados, efeitos especiais e outras técnicas visuais extravagantes. Siegel nunca deixa o tom do filme subir a um nível de espetáculo épico. Ao contrário, prefere trabalhar com um suspense intimista e atmosférico, com situações que beiram o palpável, o que a maioria dos exemplares sci-fis do período nem sonhavam em ter. O fato é que com esse tipo de suspense, Siegel consegue ser bastante preciso ao tocar nos receios básicos que a sociedade americana possuía na década de 50.

É uma pena que Siegel não tenha retornado à ficção científica. Grande parte da sua habilidade única em trabalhar a ação e o suspense que poderão ser notadas posteriormente em filmes como THE KILLERS, MADIGAN e CHARLEY VARRICK começam a dar sinais em VAMPIROS DE ALMAS. Embora seja o seu décimo primeiro longa, soa mais como um trabalho seminal que estabelecia um estilo próprio que o diretor vinha construindo ao longo da carreira. Aqui chegaria no seu ápice. A sequência que se passa na caverna, no clímax do filme, é a prova disso. De uma sensibilidade absurda, uma bela noção de como criar um clima de horror e tensão e que culmina na famosa sequência de McCarthy na rodovia no meio dos carros (não para o grande desfecho que Siegel queria, mas não deixa de ser espetacular).



De tão eficiente, universal e atemporal, a clássica história de VAMPIROS DE ALMAS ganhou mais três versões cinematográficas ao longo das décadas. Podem não acreditar, mas até hoje não vi a de 1978, OS INVASORES DE CORPOS, dirigido por Philip Kaufman e estrelado por Donald Sutherland, Leonard Nimoy e Jeff Goldblum; A versão de 1993, que por algum motivo se chama OS INVASORES DE CORPOS – A INVASÃO CONTINUA, de Abel Ferrara, não chega a ser melhor que a do Siegel, mas é um interessante exercício de horror deste grande diretor. Em 2007 tivemos INVASORES, a última versão até o momento e que nunca me despertou interesse algum.

Imagem bônus:
Participação de um jovem Sam Peckinpah, que também trabalhou como diretor de diálogos.


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