Hedwig and the Angry Inch / 2001, New Line Cinema, 95min.
Direção: John Cameron Mitchell. Roteiro: John Cameron Mitchell, romance de John Cameron Mitchell, Stephen Trask. Fotografia: Frank G. DeMarco. Montagem: Andrew Marcus. Música: Stephen Trask. Figurino: Arianne Phillips. Direção de arte/cenários: Therese DePrez/Liesl Deslauriers. Produção executiva: Michael De Luca, Amy Henkels, Mark Tusk. Produção: Pamela Koffler, Katie Roumel, Christine Vachon. Elenco: John Cameron Mitchell, Michael Pitt, Miriam Shor, Stephen Trask, Theodore Liscinski, Alberta Watson, Maurice Dean Wint. Estreia: 19/01/01 (Festival de Sundance)
Energético, criativo, ousado. É difícil não chegar ao final de uma sessão de "Hedwig: rock, amor e confusão" - um subtítulo desnecessário e bobo, diga-se de passagem - sem que esses três adjetivos não estejam saltitando na mente do espectador. Uma mistura anárquica e debochada de comédia, drama e musical com fortes cores homossexuais, o filme de estreia de John Cameron Mitchell é também uma tour de force que revelou no diretor então iniciante uma capacidade ímpar de surpreender em vários campos de seu ofício: além de comandar o espetáculo e ter escrito o roteiro (adaptado de uma peça teatral de sua autoria), Mitchell também reservou para si o papel principal da produção, em uma decisão ao mesmo tempo corajosa (o mercado para filmes de temática gay nunca foi exatamente grande em Hollywood ou no mundo, especialmente quando eles não tem um grande astro como chamariz) e acertada (sem um grande nome na liderança do elenco, a liberdade criativa estava assegurada). O resultado veio na aclamação da crítica, na profusão de prêmios e homenagens de diversos festivais internacionais e em uma merecida indicação ao Golden Globe de melhor ator em comédia/musical. Melhor que tudo isso, porém, foi a aceitação popular: em pouco tempo, "Hedwig" tornou-se cult por excelência e credenciou seu criador a partir para experiências ainda mais radicais ("Shortbus", de 2006) ou comportadas ("Reencontrando a felicidade", de 2010, que deu à Nicole Kidman uma indicação ao Oscar de melhor atriz).
Nascido no palcos - onde marcou presença desde 1998, quando mesmo sendo uma produção off-Broadway saiu da temporada com prêmios bastante importantes do teatro norte-americano - e muito bem-recebido no cinema, Hedwig é um personagem dos mais exóticos e encontrou em seu criador o intérprete perfeito. Sem medo do ridículo ou do exagero de determinadas situações, Mitchell encarna com segurança e determinação tanto o drama quanto a comédia que existem na trajetória do protagonista, conduzindo a narrativa com um misto de gêneros que, em mãos menos capazes, poderia facilmente tornar-se dispersivo. Inserindo números musicais na narração da trajetória de Hedwig desde sua infância até a vida adulta e ilustrando-os com animações criativas e irreverentes, o cineasta/roteirista convida a plateia a mergulhar em um universo à parte, recheado de personagens excêntricos e/ou idiossincráticos e sequências que, a despeito da seriedade de seu conteúdo, nunca ultrapassam o tom de sarcasmo e ironia. No final das contas, a leveza de "Hedwig" acaba por ser seu maior trunfo.
Logo na primeira cena a plateia já é apresentada a tudo que virá pela frente: com um figurino inspirado no glam rock dos anos 70, Hedwig é a vocalista de uma banda que tenta lutar contra a indiferença de uma audiência formada pelos frequentadores ocasionais de um restaurante. É pouco para seu talento, principalmente quando ela começa a contar sua trajetória até ali e se descobre que ela é a responsável pelo sucesso de Tommy Gnosis (Michael Pitt), um ídolo pop de fama internacional que só está no topo do sucesso graças às músicas que ela compôs quando ambos estavam juntos. Recheando sua narrativa com sarcasmo e deboche, Hedwig viaja à Alemanha de infância um tanto traumática, à juventude de descobertas sexuais (e um bizarro casamento com um militar, que resultou em uma cirurgia de sexo incompleta que lhe inspirou a batizar seu grupo musical de "Angry Inch" - a polegada irada) e suas desventuras amorosas e artísticas. Recusando-se terminantemente a apelar para qualquer espécie de sentimentalismo ou autopiedade, Hedwig frequentemente ri da própria desgraça e disfarça sua dor com canções que vão da melancolia à mais pura gozação. Com uma performance vocal arrebatadora somada a seus méritos como ator, Mitchell constrói um personagem-título inspiradíssimo, que desperta no público um misto de compaixão e admiração, mesmo que em determinados momentos sua garra em mostrar-se forte e resiliente impeça o espectador de conectar-se emocionalmente a ele. É somente quando sua máscara de altivez desaparece e um ser humano surge sob ela que o filme se torna mais fascinante e palpável. Uma pena que isso ocorra tão raramente.
"Hedwig: rock, amor e traição" é um filme de concepção anárquica e sagaz, quase uma desconstrução dos musicais típicos de Hollywood. É muito mais "Velvet goldmine" (98), de Todd Haynes, do que qualquer produção com Fred Astaire ou Judy Garland. É devasso, ousado, quase ultrajante em seu modo de ver e transmitir temas delicados, mas paradoxalmente é dono de uma pureza quase comovente. É como se John Cameron Mitchell fizesse de seu protagonista um anti-herói dotado de uma ingenuidade maleável, que se adequa através da ironia a um mundo de decepções e libertinagem. Não tenta arrancar compaixão do público, quer apenas fazê-lo rir e divertir-se por uma hora e meia de boa música e transgressão. É bem-sucedido em boa parte do tempo - é impossível não admirar-se com a variedade de talentos de seu criador - mas corre o risco de aborrecer àqueles que, de certa forma, não pertencem a seu público-alvo. Os mais conservadores devem ficar à distância do filme de Mitchell na mesma medida em que todos aqueles que procuram o cinema para romper com os padrões estéticos e/ou sociais devem fazer dele um programa obrigatório. Basta decidir em qual time se encaixar e esperar por 95 minutos de diversão - ou procurar um entretenimento mais careta.
TRAILLER
Energético, criativo, ousado. É difícil não chegar ao final de uma sessão de "Hedwig: rock, amor e confusão" - um subtítulo desnecessário e bobo, diga-se de passagem - sem que esses três adjetivos não estejam saltitando na mente do espectador. Uma mistura anárquica e debochada de comédia, drama e musical com fortes cores homossexuais, o filme de estreia de John Cameron Mitchell é também uma tour de force que revelou no diretor então iniciante uma capacidade ímpar de surpreender em vários campos de seu ofício: além de comandar o espetáculo e ter escrito o roteiro (adaptado de uma peça teatral de sua autoria), Mitchell também reservou para si o papel principal da produção, em uma decisão ao mesmo tempo corajosa (o mercado para filmes de temática gay nunca foi exatamente grande em Hollywood ou no mundo, especialmente quando eles não tem um grande astro como chamariz) e acertada (sem um grande nome na liderança do elenco, a liberdade criativa estava assegurada). O resultado veio na aclamação da crítica, na profusão de prêmios e homenagens de diversos festivais internacionais e em uma merecida indicação ao Golden Globe de melhor ator em comédia/musical. Melhor que tudo isso, porém, foi a aceitação popular: em pouco tempo, "Hedwig" tornou-se cult por excelência e credenciou seu criador a partir para experiências ainda mais radicais ("Shortbus", de 2006) ou comportadas ("Reencontrando a felicidade", de 2010, que deu à Nicole Kidman uma indicação ao Oscar de melhor atriz).
Nascido no palcos - onde marcou presença desde 1998, quando mesmo sendo uma produção off-Broadway saiu da temporada com prêmios bastante importantes do teatro norte-americano - e muito bem-recebido no cinema, Hedwig é um personagem dos mais exóticos e encontrou em seu criador o intérprete perfeito. Sem medo do ridículo ou do exagero de determinadas situações, Mitchell encarna com segurança e determinação tanto o drama quanto a comédia que existem na trajetória do protagonista, conduzindo a narrativa com um misto de gêneros que, em mãos menos capazes, poderia facilmente tornar-se dispersivo. Inserindo números musicais na narração da trajetória de Hedwig desde sua infância até a vida adulta e ilustrando-os com animações criativas e irreverentes, o cineasta/roteirista convida a plateia a mergulhar em um universo à parte, recheado de personagens excêntricos e/ou idiossincráticos e sequências que, a despeito da seriedade de seu conteúdo, nunca ultrapassam o tom de sarcasmo e ironia. No final das contas, a leveza de "Hedwig" acaba por ser seu maior trunfo.
Logo na primeira cena a plateia já é apresentada a tudo que virá pela frente: com um figurino inspirado no glam rock dos anos 70, Hedwig é a vocalista de uma banda que tenta lutar contra a indiferença de uma audiência formada pelos frequentadores ocasionais de um restaurante. É pouco para seu talento, principalmente quando ela começa a contar sua trajetória até ali e se descobre que ela é a responsável pelo sucesso de Tommy Gnosis (Michael Pitt), um ídolo pop de fama internacional que só está no topo do sucesso graças às músicas que ela compôs quando ambos estavam juntos. Recheando sua narrativa com sarcasmo e deboche, Hedwig viaja à Alemanha de infância um tanto traumática, à juventude de descobertas sexuais (e um bizarro casamento com um militar, que resultou em uma cirurgia de sexo incompleta que lhe inspirou a batizar seu grupo musical de "Angry Inch" - a polegada irada) e suas desventuras amorosas e artísticas. Recusando-se terminantemente a apelar para qualquer espécie de sentimentalismo ou autopiedade, Hedwig frequentemente ri da própria desgraça e disfarça sua dor com canções que vão da melancolia à mais pura gozação. Com uma performance vocal arrebatadora somada a seus méritos como ator, Mitchell constrói um personagem-título inspiradíssimo, que desperta no público um misto de compaixão e admiração, mesmo que em determinados momentos sua garra em mostrar-se forte e resiliente impeça o espectador de conectar-se emocionalmente a ele. É somente quando sua máscara de altivez desaparece e um ser humano surge sob ela que o filme se torna mais fascinante e palpável. Uma pena que isso ocorra tão raramente.
"Hedwig: rock, amor e traição" é um filme de concepção anárquica e sagaz, quase uma desconstrução dos musicais típicos de Hollywood. É muito mais "Velvet goldmine" (98), de Todd Haynes, do que qualquer produção com Fred Astaire ou Judy Garland. É devasso, ousado, quase ultrajante em seu modo de ver e transmitir temas delicados, mas paradoxalmente é dono de uma pureza quase comovente. É como se John Cameron Mitchell fizesse de seu protagonista um anti-herói dotado de uma ingenuidade maleável, que se adequa através da ironia a um mundo de decepções e libertinagem. Não tenta arrancar compaixão do público, quer apenas fazê-lo rir e divertir-se por uma hora e meia de boa música e transgressão. É bem-sucedido em boa parte do tempo - é impossível não admirar-se com a variedade de talentos de seu criador - mas corre o risco de aborrecer àqueles que, de certa forma, não pertencem a seu público-alvo. Os mais conservadores devem ficar à distância do filme de Mitchell na mesma medida em que todos aqueles que procuram o cinema para romper com os padrões estéticos e/ou sociais devem fazer dele um programa obrigatório. Basta decidir em qual time se encaixar e esperar por 95 minutos de diversão - ou procurar um entretenimento mais careta.
TRAILLER
FONTE:
UM FILME POR DIA / http://clenio-umfilmepordia.blogspot.com.br/
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