domingo, 3 de setembro de 2017

DISCOTECA BÁSICA

Cartola
Cartola (1976)

(Edição 215,Julho de 2007) 


por  Pedro Alexandre Sanches

A capa do disco era uma janela.Cartola assinava o trabalho em letras garrafais, mas a capa era dividida entre o sambista e sua esposa, Dona Zica. Na cabeça dela, um lenço de motivos com verde e rosa, as cores da Mangueira, a escola de samba que era janela de ambos para o mundo. Na cabeça dele, os cabelos já embranquecidos encimavam os indefectíveis óculos escuros, o bigode ralo e a peculiar coloração do nariz. Entre Zica e Cartola, Zicartola, um vasinho, um cacto, uma planta que armazena água para melhor aturar o deserto lá fora. 

A janela durava já uma vida inteira, mas era, ao mesmo tempo, recém-inaugurada: fazia apenas dois anos que Cartola conseguira, aos 65 anos, gravar o primeiro LP, amontoando sambas doídos de uma vida inteira. Como o outro, este segundo se chamava Cartola e fora lançado de modo independente. Consolidava¬se a última fase da presença de Cartola na MPB. Pobre, negro e morador do morro, ele fora ao longo dos anos pedreiro, tipógrafo, boêmio, vigia, lavador de carros, contínuo de ministério. Aos soluços nos intervalos da lida anônima, saíra à janela da popularidade e abastecera o samba com algumas das mais belas canções de que o Brasil teve notícia. Nos anos 30, fora gravado por Francisco Alves e Carmen Miranda. Nos 60, impulsionado pela inquietude de Nara Leão, virara jóia da coroa da juventude politizada do pós-bossa nova, da canção de protesto, da pré-tropicália. A janela então se abriu na figura de um restaurante musical. o Zicartola. Iniciava-se a última e mais vigorosa de suas safras criativas. Assim se faria o LP de 1976, com antigos ("Sala de Recepção", de 1941, "Não Posso Viver sem Ela", de 1942, a oprimida "Peito Vazio", de 1961, "Senhora Tentação", de Silas de Oliveira) e uns muito e acachapantes sambas inéditos. Se uma síntese precisasse ser feita, seria fácil: "As Rosas Não Falam", nada mais, nada menos. Ou melhor, havia mais: ali estavam "Cordas de Aço", "Preciso Me Encontrar" (de Candeia), o lundu de lamento à semi-escravidão "Ensaboa" (cantada com a filha adotiva Cleusa). 



Mais dois LPs seriam lançados antes que o co-fundador da Mangueira e do samba triste morresse, em 1980, aos 72 anos. Mas o de 1976 talvez fosse o que melhor condensava as delícias e os dissabores do imaginário do poeta. Ali ficava nítida a cisão de Cartola entre dois pólos, o do idílio e o da dor. No primeiro, tudo era ode: ao violão ("Cordas de Aço"), às escolas de samba ("Sala de Recepção"), à vida dura no morro ("Ensaboa"), às flores ("As Rosas Não Falam"). No campo da dor, jazia soberana a consciência do abandono, "As Rosas Não Falam" fazendo o elo de ligação entre um pólo e outro: "Volto ao jardim/com a certeza que devo chorar/pois bem sei que não queres voltar/para mim". Embora elegante e delicado como ninguém, Cartola seguia o rio vicioso da música popular e projetava na figura feminina os males de dentro do peito. Temas de rejeição transbordam em "Minha" (nas ciganas "falsas" e cartomantes "mentirosas"), "Não Posso Viver sem Ela" e "Sei Chorar". Era o cacto, flor espinhosa plantada na janela-fronteira-abismo entre os homens & as mulheres. 



A mesma matéria moldava o testamento precoce "O Mundo É um Moinho": "Preste atenção, querida/de cada amor tu herdarás só o cinismo/quando notares estás à beira do abismo/abismo que cavaste com teus pés". Mesmo reconhecido como o artista genial que era, o poeta se entregava ao culto à derrota, ao ceticismo quase exultante, a uma aridez de cacto. Por dentro, no parapeito da janela, a água jorraria suculenta à primeira dentada, e talvez significasse isso mesmo a música tão amorosa que Cartola produziu, sedento, até morrer: casca de cacto por fora, água potável na seiva. Imortal. Cartola é, ao mesmo tempo, a miragem e o oásis, para quem gosta de casca espinhosa e para quem gosta de água fresca. 

  


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