sexta-feira, 24 de novembro de 2017

O INQUILINO

The tenant, 1976
Paramount Pictures, 126min) Direção: Roman Polanski. Roteiro: Roman Polanski, Gérard Brach, romance de Roland Topor. Fotografia: Sven Kykvist. Montagem: Françoise Bonnot. Música: Philippe Sarde. Figurino: Jacques Schmidt. Direção de arte/cenários: Pierre Guffroy. Produção executiva: Hercules Bellville. Produção: Andrew Braunsberg. Elenco: Roman Polanski, Isabelle AdjanShelley Winters, Melvyn Douglas, Jo Van Fleet, Bernard Fresson, Lila Kedrova. Estreia: 24/5/76 (Festival de Cannes)
Último capítulo da famosa "trilogia do apartamento" de Roman Polanski, "O inquilino" antecede, em pelo menos uma década, o tom onírico e delirante das obras de David Lynch. Inspirado em um romance de Roland Topor que estava em vias de ser filmado por Jack Clayton ("Os inocentes" e "Todas as noites às nove") e lançado dois anos após a consagração do cineasta polonês com "Chinatown", que havia lhe dado uma indicação ao Oscar de melhor diretor, o suspense estrelado pelo próprio Polanski e pela musa francesa Isabelle Adjani na flor de seus 20 anos de idade, "O inquilino" é, ainda hoje, perturbador a ponto de dar um nó na cabeça do espectador, acostumado com as tramas mastigadinhas proporcionadas por Hollywood - é uma surpresa, aliás, saber que foi produzido por um estúdio americano e que tenha chegado às telas sem sua interferência. Sinal de que o prestígio do diretor por seu noir estrelado por Jack Nicholson e Faye Dunaway ainda estava em alta - o que só seria abalado por sua acusação de estupro de uma menor de idade e sua proibição de voltar a trabalhar nos EUA, o que lhe obrigou a manter uma carreira internacional, ainda que premiada e quase sempre louvada pela crítica.

Tema constante na filmografia de Polanski, a perda da sanidade mental é o mote central de "O inquilino", em que o diretor volta a trabalhar como ator. Ele é quem vive o protagonista, Trelkovski, um funcionário público simples e discreto que vê seu equilíbrio posto à prova depois de alugar o apartamento de uma jovem estudante que acaba de cometer suicídio. Constantemente assediado por seus estranhos vizinhos, que reclamam de barulhos que ele não faz e falam de outros moradores que ele sequer consegue ver, aos poucos o tímido burocrata passa também a ter visões estranhas e comportar-se de forma errática, como se assumisse a personalidade da antiga moradora do apartamento, uma egiptologista a quem visitou no hospital pouco antes de sua morte. Sem saber o que fazer para impedir que seu fim seja semelhante ao dela - cujos hábitos de consumo ele também começa a manter - Trelkovski pede ajuda a uma amiga da morta, Stella (Isabelle Adjani). Não demora muito, porém, para que ele veja nela uma outra ameaça à sua vida. Sem saber o que fazer, ele mergulha em uma espiral de loucura e obsessão.

O mais radical dos trabalhos de Roman Polanski - por sua profusão de simbolismos, seu tom delirante e por seu final em aberto que não explica nada e deixa tudo nas mãos da plateia - "O inquilino" estreou mundialmente no Festival de Cannes de 1976, de onde saiu sem nenhum prêmio mas com fartos elogios da crítica. Não é para menos: com um estilo econômico de narrativa, sem excessos ou artifícios que façam dele um suspense vulgar ou tipicamente comercial, seu filme é um soco no estômago de quem procura um thriller convencional. Não há sustos a cada dez minutos ou um desfecho trivial. O roteiro - co-escrito pelo diretor e seu colaborador habitual Gérard Brach - tem seu ritmo próprio, com uma pegada europeia que exige do espectador uma atenção que o gênero normalmente dispensa em seus exemplares mais banais. Até mesmo quando a trama ameaça escorregar com um grau bastante elevado de situações bizarras o controle de Polanski no comando da ação a impede de cair no ridículo. Poucas vezes investindo na carreira de ator, ele também consegue destacar-se com uma interpretação contida e adequada, trabalhando ao lado de vencedores do Oscar, como Melvyn Douglas, Shelley Winters, Lila Kedrova e Jo Van Fleet - todos perfeitamente inseridos na atmosfera de pesadelo criada por sua direção inspirada.

Que não se espere de "O inquilino" um suspense banal. Apostando fortemente no teor psicológico da trama e amparado em uma direção de arte que enfatiza cada ângulo distorcido e cada nota da bela trilha sonora de Philippe Sarde, o filme de Polanski conduz o espectador por um labirinto de emoções perversas e tensão, com um sentimento de incômodo de que somente os grandes cineastas conseguem imprimir em seus trabalhos. O final pode não agradar a todos, mas é inegável que poucos filmes são capazes de despertar tanto desconforto sem apelar para a sanguinolência explícita ou efeitos visuais de última geração. Polanski é sempre Polanski, para o bem e para o mal. Vale experimentar!





segunda-feira, 20 de novembro de 2017

FOTOGRAFANDO

NO QUINTAL DE DONA ZEFA

Fotografias de Ricardo Silva












sexta-feira, 17 de novembro de 2017

SOLDA


MEDO


tenho medo
da guerra atômica iminente
(e de pastel de camarão)
do bandido da luz vermelha
(e de febre amarela)
de câncer e unha encravada
(e do serviço de proteção ao crédito)
de ser surpreendido pela morte
(e das almas do outro mundo)
de ser treinador da seleção
(e de acordar transformado em barata)
do imposto predial e territorial
(e dos políticos corruptos)
das virgens que nos seduzem
(e de todos os males do coração)
de ser atacado pelas costas
(e de enfrentar a vida cara-a-cara)
das medidas de emergência
(e de contatos imediatos)
das vírgulas e reticências
(e do verso de pé-quebrado)
dos filmes de terror
(e de transfusão de sangue)
das mulheres que abandonam seus maridos
(e dos maridos abandonados)
da fúria dos oposicionistas
(e dos motoristas que dirigem na contramão)
dos desmentidos do porta-voz
(e de anestesia geral)
de ser aniquilado por um mal súbito
(e de ser assaltado por uma dúvida)
das prestações da casa própria
(e da fúria da torcida organizada)
do controle de natalidade
(e da explosão demográfica)
de me perder na multidão
(e de ser confundido com o ladrão)
de ficar sozinho com o defunto
(e de fazer o papel de vilão)
de José Dirceu
(e de Genoíno, Jefferson e Delúbio)
medo do medo da Regina Duarte
(e de Luiz Inácio Lula da Silva)
de todos os ministros
(e de duplicata vencida)
de uísque falsificado
(e dos falsos profetas)
de bandido que defende bandido
(e dos bandidos inofensivos)
de revólver engatilhado
(e das negociações para o cessar-fogo)
do silêncio no grande canyon
(e do barulho no andar de cima)
de dormir com o cigarro aceso
(e do turco que tentou matar o papa)
de Osama Bin Laden
(e de George W. Bush)
de quarta-feira de cinzas
(e de bife mal-passado)
do castigo que vem a cavalo
(e da sorte que está lançada)
das vítimas das enchentes
(e da solidariedade da população)


Solda Cáusticohttp://cartunistasolda.com.br/ 


quarta-feira, 15 de novembro de 2017

DISCOTECA BÁSICA



FRANK ZAPPA

ZOOT ALLURES / 1976


“Zoot Allures”, último álbum a ser creditado ao Mothers, foi lançado pela Warner Bros, em out/76. Praticamente um disco de estúdio (há apenas a faixa-título e “Black Napkins” ao vivo), com um elenco rotativo de músicos (que, curiosamente, não corresponde à foto da capa – por exemplo, Patrick O’Hearn e Eddie Jobson não tocam no disco!), “Zoot Allures” trouxe um som despojado (comparado aos álbuns anteriores), com instrumentação básica e essencial, cheio de graves e vocais sussurrados criando uma obra-prima do Rock lento e cavernoso. Quase todo seu repertório é de faixas em tempos médios e baixos, com Zappa soando quase como um crooner. “The Torture Never Stops” é um claro destaque: 10 minutos de letras sugestivas, riffs rastejantes, solos fumegantes e... gritos femininos! Ela e “Disco Boy” tornaram-se clássicos zappeanos. “Black Napkins” e “Zoot Allures” têm aqueles que estão entre seus melhores solos de guitarra, em toda sua discografia. Embora não seja um disco sem o típico humor de Zappa, trata-se de um álbum de Rock, digamos, “sério”, um trabalho de transição que representa uma das maiores realizações desse gênio.


ZÉ DA SILVA


Amassei barro e ajudei a tapar a estrutura de taipa lá naqueles confins – sob um sol de rachar. Cabecinha pequena, pra não dizer o contrário, alguém com cigarro de paia, fumo de corda fedido, disse que eu levava jeito, apesar de ter nascido na cidade grande. Fiquei com aquilo, ou seja, aquele barro que levava em porções que cabiam nas duas mãos juntas. Voltei para o casebre na periferia, bucho estufado, umbigo estourando. Mãe deu remédio para as bichas e as lombrigas saíram como num filme que depois veria na tela grande. Também ouvia no rádio os programas onde, além do trio com zabumba, triângulo e sanfona, apareciam os cantadores com seus improvisos de martelo agalopado, que era o tipo que eu gostava por causa do nome e do ritmo. Um dia me flagraram comendo barro. Não levei cascudo porque pai e mãe nunca relaram a mão em mim. Nunca esqueci aquilo. Aí, depois dos estudos, lembrei de tudo, juntei uma coisa com outra e veio a frase, como cartão de visita a quem interessar: “Como barro e cago tijolo, sou pobre, mas não tolo”.


BLOG DO ZÉ BETO: http://www.zebeto.com.br/

JOE MACGOWN









terça-feira, 14 de novembro de 2017

ARNALDO ANTUNES


Iluminuras


Pensamento vem de fora
e pensa que vem de dentro,
pensamento que expectora
o que no meu peito penso.
Pensamento a mil por hora,
tormento a todo momento.
Por que é que eu penso agora
sem o meu consentimento?
Se tudo que comemora
tem o seu impedimento,
se tudo aquilo que chora
cresce com o seu fermento;
pensamento dê o fora,
saia do meu pensamento.
Pensamento, vá embora,
desapareça no vento.
E não jogarei sementes
em cima do seu cimento.


SOLDA

CÁUSTICO


SOLDA CÁUSTICOhttp://cartunistasolda.com.br/

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

CLARICE LISPECTOR

PANORAMA





O CENTENÁRIO DE UM GÊNIO






por
Célio Heitor Guimarães


Não tivesse falecido em 2005, o grande mestre Will Eisner estaria festejando cem anos neste 2017. Ele foi um dos maiores nomes do mundo dos quadrinhos, genial, extraordinário na criatividade dos argumentos e no manuseio da pena e do pincel. Na verdade, Will enriqueceu a trama narrativa e trouxe para os gibis inovações gráficas. Mais do que isso: tirou as historietas daquele marasmo “pictórico” inicial e deu vida real aos heróis de papel. Mais ainda: introduziu nos comics o humor, a ironia, a linguagem cinematográfica e os diversos planos, incluindo o close e o super-close up – como assinalou Jô Soares, admirador de carteirinha de Will Eisner.

Seu grande personagem – The Spirit – nasceu em 1940, deixou de ser produzido em 1952, mas tornou-se eterno, conquistando gerações de admiradores no mundo todo. Tido como morto, o detetive Denny Colt, vestia um terno azul, usava chapéu e luvas, tinha uma bela gravata vermelha, ocultava-se por trás de uma máscara em torno dos olhos e morava em um cemitério. Sim, no Cemitério Wildwood, de onde partia para combater secretamente o crime em Central City. Era solteiro, mas estava sempre cercado de belas mulheres fatais. A sua verdadeira identidade jamais foi revelada, a não ser para uma reduzida corte integrada pelo inseparável amigo Ébano, pelo comissário-de-polícia Dolan e pela filha deste, a louríssima Ellen, que Denny namorava à moda antiga.

– Como todas as boas ideias já tinham sido usadas – relatou Eisner -, Colt teve que se virar como pôde. Sem superpoderes e sem superuniforme capaz de lhe dar vantagem sobre as forças do mal, ele tinha que combater o crime correndo o risco de se arrebentar. Afinal, era de carne e osso como qualquer humano.

As histórias de Spirit eram a prova da genialidade de seu criador. Curtas, bem estruturadas e com uma pitada de bom humor, destacavam, como expressou Waldomiro Vergueiro, no blog Omelete,“a fragilidade do ser humano na luta pela sobrevivência frente a situações adversas e enfatizavam, muitas vezes, a ironia da própria existência”. Aliás, as historietas traziam outra novidade inventada pelo autor: o logotipo do personagem nunca foi repetido. A cada aventura ganhava de Will nova forma gráfica.

E assim, por doze anos, o misterioso justiceiro esteve presente nas tiras dos jornais e em revistas do mercado norte-americano – foram mais de 600 aventuras, interrompidas, ao que consta, porque Eisner se sentiu cansado das exigências que o quadrinho comercial lhe colocavam.

Em seguida, as histórias de Spirit foram reeditadas em várias séries de quadrinhos por diversas editoras. A principal das quais, a Kitchien Sink Press, que republicou toda a série, pré e pós-guerra, sob o título de “The Spirit: The Origin Years”. Posteriormente, a Kitchen lançou “The Spirit: The New Adventures”, com histórias escritas e ilustradas por uma variedade de criadores, entre os quais Alan Moore, Eddie Campbell e Dave Gibbons.

O Brasil – pelo qual Will Eisner tinha especial carinho – foi o primeiro país, fora os EUA, a publicar The Spirit, a partir de 1941, um ano após a sua estreia. A informação foi dada ao jornal Folha de S.Paulo pelo britânico Paul Gravett. O lançamento ocorreu na revista O Gibi, de Roberto Marinho. Era, então, O Espírito. Ao mercado europeu o personagem só chegou em 1967.

Depois de Spirit, Will Eisner dedicou-se por inteiro às “novelas gráficas”, termo por ele cunhado para indicar a nova linguagem gráfica sequencial. E aí seguiu-se uma série de obras-primas, como “Um Contrato com Deus”, “O Edifício”, “A Força da Vida”, “No Coração da Tempestade”, “Avenida Dropsie”, “Narrativas Gráficas”, “New York – A Grande Cidade”, “Assunto de Família”, “Fagin, o Judeu” e “O Nome do Jogo”.

A explicação foi oferecida por ele próprio: “Eu estava conversando ao telefone com um editor, e disse a ele: ‘Eu tenho uma coisa nova para você, uma coisa muito nova’. Ele indagou: ‘O que é?’ E eu olhei para ela e me dei conta de que, se eu falasse uma história em quadrinhos, ele desligaria. Era um sujeito muito ocupado, e aquela era uma editora de alto nível. Por isso, eu a chamei de romance gráfico (graphic novel), e ele disse: ‘Oh, isto é interessante. Traga aqui!’ Eu levei. Ele olhou para ela, olhou para mim por cima de seus óculos de leitura, e disse: ‘Você sabe, ainda é uma história em quadrinhos’ ”.

Aquele editor não a quis, mas outros quiseram. E o mundo dos quadrinhos e da arte gráfica agradecem penhoradamente.

O quadrinhólogo brasileiro Álvaro de Moya, recentemente falecido, foi amigo pessoal de Will Eisner. Quando enviou-lhe uma edição de “Anos 50/50 Anos”, recebeu o agradecimento do grande mestre: “Os quadrinhos, a narrativa visual, com o emprego da arte sequencial e texto, estão afinal no limiar de chegarem ao lugar merecido na cultura ocidental. Este livro de sua autoria, que é um reconhecido historiador, muito fará para acelerar esse processo”.

As lembranças dessa amizade, que também durou quase 50 anos, estão em “Eisner / Moya – Memórias de Dois Grandes Nomes da Arte Sequencial”, livro organizado pelo jornalista Dario Chaves e lançado este ano pela Editora Criativo. O volume traz histórias narradas por Moya, em primeira pessoa, que remontam a 1951, quando ele fez o primeiro contato com Eisner, pedindo originais do artista para a Primeira Exposição Internacional de Quadrinhos, que foi realizada em São Paulo, naquele ano.

William Erwin Eisner nasceu no Brooklyn, Nova York, em 6 de março de 1917 e faleceu em 3 de janeiro de 2005, em Lauderdale Lakes, Flórida.



domingo, 5 de novembro de 2017

TICIANA VASCONCELOS SILVA



No peito arde a mais inglória dor
Sangrando palavras mórbidas
Corroendo os dentes imóveis
Sussurrando sombras e mistérios

No peito vive a mais espantosa flor
Como se de mantos velhos se cobrisse
Como se abrisse e sumisse
Como se na primavera se abrumasse

Espantos do dia, luzes da noite
Solenes curvas que sobrecarregam o que ainda está por vir
Porvir sem constatações
Cantos sem objeções

No sangue a matéria inconstante
Permanecendo vítima do ritmo moribundo do mundo
Sonhos estranhos
Tamanho o desassossego
Desenho raso de um mar sem cor

O verbo rasgado e usado
Sem dar movimento, estagnado
Urso hibernando
Poema sem vigor

E na pele amaldiçoada
A cinza esparramada
Os olhos trêmulos
O gesto do desamor


sábado, 4 de novembro de 2017

INTERESTELAR


INTERESTELAR (Interstellar, 2014, Paramount Pictures/Warner Bros/Legendary Entertainment, 169min) Direção: Christopher Nolan. Roteiro: Christopher Nolan, Jontahan Nolan. Fotografia: Hoyte Van Hoytema. Montagem: Lee Smith. Música: Hans Zimmer. Figurino: Mary Zophres. Direção de arte/cenários: Nathan Crowley/Gary Fettis, Helen Kozora-Tell. Produção executiva: Jordan Goldberg, Jake Myers, Kip Thorne, Thomas Tull. Produção: Christopher Nolan, Lynda Obst, Emma Thomas. Elenco: Matthew McConaughey, Anne Hathaway, Jessica Chastain, Matt Damon, Michael Caine, Ellen Burstyn, David Oyelowo, Wes Bentley, William Devane, Casey Affleck, Topher Grace. Estreia: 26/10/14

5 indicações ao Oscar: Trilha Sonora Original, Direção de Arte/Cenários, Edição de Som, Mixagem de Som, Efeitos Visuais
Vencedor do Oscar de Efeitos Visuais


Em 2006, quando ainda era um projeto da Paramount Pictures, "Interestelar" seria dirigido por um tal de Steven Spielberg, que contratou Jonathan Nolan para escrever o roteiro, inspirado em teorias científicas do físico Kip Thorne. A história original, que envolvia um conceito chamado de "caminho de minhoca" e várias outras situações que também inspiraram Carl Sagan a escrever seu clássico "Contato", acabou sendo deixada de lado pelo oscarizado cineasta em 2012, quando foi parar, então, nas mãos do irmão do roteirista, um homem que, em poucos anos de carreira, já havia redefinido os filmes de super-heróis com uma sombria trilogia protagonizada por Batman e criado um dos mais fascinantes e inteligentes filmes de ação da história ("A origem"): assumindo um projeto arriscado, caro (165 milhões de dólares) e sujeito à boa vontade de uma plateia mal-acostumada com blockbusters que não exigem muito do cérebro, Christopher Nolan transferiu a produção para sua casa (Warner Bros) e, com uma equipe de confiança a seu lado, realizou mais uma obra-prima que conquistou o público. Com mais de 600 milhões de dólares arrecadados ao redor do mundo, "Interestelar" - uma ficção científica empolgante, inteligente e emocionante - também colocou seu diretor em uma posição bastante privilegiada na indústria, ao ser o quarto filme seguido do diretor eleito como um dos dez melhores do ano pelo American Film Institute.

Como é comum na filmografia de Nolan, "Interestelar" se utiliza de uma técnica impecável para contar uma história que, no fundo, tem ressonâncias emocionais da mais alta profundidade. Sua receita de sucesso - contar com personagens fortes e ligações interpessoais que conectem a plateia com a trama, por mais complexa que ela possa parecer a princípio - mostrou-se vitoriosa principalmente em "A origem" (2010), e volta a funcionar à perfeição neste que talvez seja seu filme mais difícil até o momento. Longo (quase três horas de duração), dotado de um ritmo próprio que evita os clichês de filmes de ação e repleto de explicações científicas que poderiam assustar qualquer espectador acostumado às explosões sem sentido de Michael Bay, "Interestelar" é a prova cabal de que inteligência e diversão podem tranquilamente caminhar lado a lado - e que o público não é tão avesso quanto se pensa ao ato de por o cérebro para funcionar de vez em quando. Vencedor do Oscar de efeitos visuais - concorreu também às estatuetas de edição de som, mixagem de som, trilha sonora e direção de arte - o filme seduz pelo visual estonteante, mas se torna uma experiência única quando deixa a sensibilidade falar mais alto que a tecnologia.

A história imaginada por Nolan começa como mais uma produção sobre futuros distópicos, onde a humanidade está ameaçada de desaparecer diante de uma série de catástrofes que foram minando, pouco a pouco, todos os recursos naturais da Terra. É nesse ambiente desolador que o público é apresentado ao protagonista, Cooper (Matthew McConaughey), um engenheiro e piloto de testes da NASA tornado fazendeiro no Texas após a morte da esposa, e que tenta, a muito custo, manter a propriedade da família e cuidar dos dois filhos e do sogro. Seu destino, porém, logo lhe será revelado: após investigar o aparecimento de misteriosos sinais em sua fazenda, Cooper resolve seguir suas coordenadas e acaba parando em um bunker secreto, comandado pelo veterano John Brand (Michael Caine), um cientista com quem já havia trabalhado no passado. É Brand quem convence Cooper a entrar na mais perigosa aventura de sua vida: juntar-se a um pequeno grupo de exploradores - que inclui a filha de seu ex-chefe, Amelia (Anne Hathaway) - e viajar no espaço à procura de planetas que possam servir de salvação para o aparentemente inevitável extermínio da Terra e seus habitantes. Pensando nos filhos e na possibilidade de salvar a humanidade - um plano B seria o de colonização de outro ambiente propício à sobrevivência humana - Cooper aceita a missão, para desespero de sua filha, Murphy (Mackenzie Foy), uma menina de inteligência acima da média que se recusa a aceitar a partida do pai. A viagem exploratória começa, e é a partir daí que "Interestelar" pega todo mundo de surpresa.

Durante mais de duas horas, o roteiro dos irmãos Nolan segue o padrão dos filmes de ficção científica a que o público está habituado: efeitos visuais de primeira, alguns diálogos recheados de termos complexos, sequências de ação deslumbrantes e com altas doses de suspense, personagens que não são exatamente o que parecem. São seus trinta minutos finais, porém, que o tornam especial. Com uma reviravolta que põe em perspectiva tudo que foi mostrado até então e torna essenciais cada linha de diálogo e cada detalhe mostrados anteriores, a trama fecha um ciclo que, mais do que científico e metafísico, é essencialmente familiar e emotivo, oferecendo à uma Murphy adulta (e vivida com a competência de sempre por Jessica Chastain) uma importância crucial para um desfecho de arrepiar até ao mais cínico dos espectadores. Não importa se a plateia entende os conceitos de "buraco de minhoca" ou tem domínio da maior parte das explanações científicas da trama: é a humanidade que vem dos personagens que faz do filme universal e atemporal. Mais uma obra-prima de Christopher Nolan.


FONTE :
UM FILME POR DIAhttp://clenio-umfilmepordia.blogspot.com.br/2017/01/interestelar.html

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

SOLDA

CÁUSTICO



FERNANDO PESSOA


Tenho Tanto Sentimento


Tenho tanto sentimento 
Que é frequente persuadir-me 
De que sou sentimental, 
Mas reconheço, ao medir-me, 
Que tudo isso é pensamento, 
Que não senti afinal. 

Temos, todos que vivemos, 
Uma vida que é vivida 
E outra vida que é pensada, 
E a única vida que temos 
É essa que é dividida 
Entre a verdadeira e a errada. 

Qual porém é a verdadeira 
E qual errada, ninguém 
Nos saberá explicar; 
E vivemos de maneira 
Que a vida que a gente tem 
É a que tem que pensar.






quarta-feira, 1 de novembro de 2017

PRAIA DE TABUBA

BARRA DE SANTO ANTONIO, ALAGOAS

Fotografias de Ricardo Silva






Carlos Drummond de Andrade


Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.