sexta-feira, 10 de novembro de 2017

O CENTENÁRIO DE UM GÊNIO






por
Célio Heitor Guimarães


Não tivesse falecido em 2005, o grande mestre Will Eisner estaria festejando cem anos neste 2017. Ele foi um dos maiores nomes do mundo dos quadrinhos, genial, extraordinário na criatividade dos argumentos e no manuseio da pena e do pincel. Na verdade, Will enriqueceu a trama narrativa e trouxe para os gibis inovações gráficas. Mais do que isso: tirou as historietas daquele marasmo “pictórico” inicial e deu vida real aos heróis de papel. Mais ainda: introduziu nos comics o humor, a ironia, a linguagem cinematográfica e os diversos planos, incluindo o close e o super-close up – como assinalou Jô Soares, admirador de carteirinha de Will Eisner.

Seu grande personagem – The Spirit – nasceu em 1940, deixou de ser produzido em 1952, mas tornou-se eterno, conquistando gerações de admiradores no mundo todo. Tido como morto, o detetive Denny Colt, vestia um terno azul, usava chapéu e luvas, tinha uma bela gravata vermelha, ocultava-se por trás de uma máscara em torno dos olhos e morava em um cemitério. Sim, no Cemitério Wildwood, de onde partia para combater secretamente o crime em Central City. Era solteiro, mas estava sempre cercado de belas mulheres fatais. A sua verdadeira identidade jamais foi revelada, a não ser para uma reduzida corte integrada pelo inseparável amigo Ébano, pelo comissário-de-polícia Dolan e pela filha deste, a louríssima Ellen, que Denny namorava à moda antiga.

– Como todas as boas ideias já tinham sido usadas – relatou Eisner -, Colt teve que se virar como pôde. Sem superpoderes e sem superuniforme capaz de lhe dar vantagem sobre as forças do mal, ele tinha que combater o crime correndo o risco de se arrebentar. Afinal, era de carne e osso como qualquer humano.

As histórias de Spirit eram a prova da genialidade de seu criador. Curtas, bem estruturadas e com uma pitada de bom humor, destacavam, como expressou Waldomiro Vergueiro, no blog Omelete,“a fragilidade do ser humano na luta pela sobrevivência frente a situações adversas e enfatizavam, muitas vezes, a ironia da própria existência”. Aliás, as historietas traziam outra novidade inventada pelo autor: o logotipo do personagem nunca foi repetido. A cada aventura ganhava de Will nova forma gráfica.

E assim, por doze anos, o misterioso justiceiro esteve presente nas tiras dos jornais e em revistas do mercado norte-americano – foram mais de 600 aventuras, interrompidas, ao que consta, porque Eisner se sentiu cansado das exigências que o quadrinho comercial lhe colocavam.

Em seguida, as histórias de Spirit foram reeditadas em várias séries de quadrinhos por diversas editoras. A principal das quais, a Kitchien Sink Press, que republicou toda a série, pré e pós-guerra, sob o título de “The Spirit: The Origin Years”. Posteriormente, a Kitchen lançou “The Spirit: The New Adventures”, com histórias escritas e ilustradas por uma variedade de criadores, entre os quais Alan Moore, Eddie Campbell e Dave Gibbons.

O Brasil – pelo qual Will Eisner tinha especial carinho – foi o primeiro país, fora os EUA, a publicar The Spirit, a partir de 1941, um ano após a sua estreia. A informação foi dada ao jornal Folha de S.Paulo pelo britânico Paul Gravett. O lançamento ocorreu na revista O Gibi, de Roberto Marinho. Era, então, O Espírito. Ao mercado europeu o personagem só chegou em 1967.

Depois de Spirit, Will Eisner dedicou-se por inteiro às “novelas gráficas”, termo por ele cunhado para indicar a nova linguagem gráfica sequencial. E aí seguiu-se uma série de obras-primas, como “Um Contrato com Deus”, “O Edifício”, “A Força da Vida”, “No Coração da Tempestade”, “Avenida Dropsie”, “Narrativas Gráficas”, “New York – A Grande Cidade”, “Assunto de Família”, “Fagin, o Judeu” e “O Nome do Jogo”.

A explicação foi oferecida por ele próprio: “Eu estava conversando ao telefone com um editor, e disse a ele: ‘Eu tenho uma coisa nova para você, uma coisa muito nova’. Ele indagou: ‘O que é?’ E eu olhei para ela e me dei conta de que, se eu falasse uma história em quadrinhos, ele desligaria. Era um sujeito muito ocupado, e aquela era uma editora de alto nível. Por isso, eu a chamei de romance gráfico (graphic novel), e ele disse: ‘Oh, isto é interessante. Traga aqui!’ Eu levei. Ele olhou para ela, olhou para mim por cima de seus óculos de leitura, e disse: ‘Você sabe, ainda é uma história em quadrinhos’ ”.

Aquele editor não a quis, mas outros quiseram. E o mundo dos quadrinhos e da arte gráfica agradecem penhoradamente.

O quadrinhólogo brasileiro Álvaro de Moya, recentemente falecido, foi amigo pessoal de Will Eisner. Quando enviou-lhe uma edição de “Anos 50/50 Anos”, recebeu o agradecimento do grande mestre: “Os quadrinhos, a narrativa visual, com o emprego da arte sequencial e texto, estão afinal no limiar de chegarem ao lugar merecido na cultura ocidental. Este livro de sua autoria, que é um reconhecido historiador, muito fará para acelerar esse processo”.

As lembranças dessa amizade, que também durou quase 50 anos, estão em “Eisner / Moya – Memórias de Dois Grandes Nomes da Arte Sequencial”, livro organizado pelo jornalista Dario Chaves e lançado este ano pela Editora Criativo. O volume traz histórias narradas por Moya, em primeira pessoa, que remontam a 1951, quando ele fez o primeiro contato com Eisner, pedindo originais do artista para a Primeira Exposição Internacional de Quadrinhos, que foi realizada em São Paulo, naquele ano.

William Erwin Eisner nasceu no Brooklyn, Nova York, em 6 de março de 1917 e faleceu em 3 de janeiro de 2005, em Lauderdale Lakes, Flórida.



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