por Pedro Soenen
É sabido que, quando se observa um abismo demasiado tempo, ele observa-nos de volta. Porque os abismos não são fendas geológicas naturais, mas fendas psicológicas naturais. O abismo não existe fora de nós, mas em nós. Georges Pichard, autor e ilustrador de banda desenhada, libertino do traço a tinta da China, conviveu toda a sua vida com o seu abismo e convidou-nos a desbravar as suas sombras. Um espírito livre que ficou conhecido pela expressão das mais diversas e perversas formas de aprisionamento (feminino). Pichard é considerado um dos grandes mestres do erotismo gráfico francês, raramente um autor tendo ido tão longe nos labirintos dos seus negros fantasmas. Provavelmente nunca mais haverá outro assim, nestes tempos de hipocrisia sexual globalizada. Nascido em Paris em 1920, teve o percurso típico de muitos autores de BD da época: trabalhou em publicidade e dedicou-se à ilustração, tornando-se mesmo professor de desenho na escola onde tinha estudado (tendo como alunos alguns autores que se vieram a tornar célebres). Estreou-se na 9ª Arte em 1956, com “Miss Mimi”, mas foi em 1964 que a colaboração com o argumentista Jacques Lob o tornou notado, com as divertidas criações dos heróis “Ténébrax” e “Submerman”, com “Ulisses”- uma versão em ficção científica da Odisseia - e sobretudo com a sua primeira grande heroína, a doce “Blanche Epiphanie”, em 1967. Viviam-se tempos sulfurosos em França, acabavam de surgir as primeiras revistas de BD viradas para um público mais adulto e pairava no ar uma liberdade criativa nunca antes vista (e nunca mais repetida). A liberdade sexual está na ordem do dia e Blanche, uma pobre orfã primeiro abusada e depois expulsa de casa pelo seu protector, o sinistro banqueiro capitalista Adolphus, irá viver uma série de aventuras tão rocambolescas como picantes. A imagem da Justine de Sade perpassa por ali e estão definidos os grandes parâmetros da obra de Pichard: a heroína de formas generosas, embrenhada em situações escabrosas, abusada e torturada por homens de aparência simiesca e brutal (ou, mais tarde, por outras mulheres, tão belas quanto implacáveis), um sistema de forças sociais marcado pela preponderância dos fantasmas masculinos, a provocação, o anticlericalismo e o humor corrosivo. Desde o início que o seu estilo carnal o torna inconfundível, conferindo às suas personagens uma sensualidade próxima do leitor e bebendo das influências eróticas orientais, nomeadamente indianas. Em 1970 cria juntamente com Georges Wolinski a sua heroína mais conhecida, “Paulette”. Uma herdeira loura e rica, de vocação proletária e aventurosa – raptada na primeira página da história, ela simpatiza logo com os motivos dos seus captores -, Paulette sofre todo o tipo de peripécias policiais/amorosas/oníricas e torna-se uma espécie de símbolo sexual, ao longo de vários álbuns em que tem a companhia de Joseph, um velho amigo transformado por engano em belíssima jovem pela toupeira míope (!) de Paulette – exemplo da ironia cáustica do autor, ao transformar um velho libidinoso no seu próprio objecto de desejo, o que o deixa de razoável mau humor... Segue-se a colaboração com Danie Dubos, de que resultam “Lolly Strip” e “Caroline Choléra” em 1976, esta última uma das suas personagens mais conseguidas graças aos argumentos verdadeiramente delirantes de Dubos. O erotismo acentua-se e enegrece, notando-se o deslize ambíguo para o jogo da “mulher-objecto” nas farsas político-sociais “Les Manufacturées” (em que ex-delinquentes são recicladas como bonecas de prazer) e “L’Usine” (onde um grupo de mulheres é escravizado numa fábrica de contornos sinistros). Em 1977, “Marie-Gabrielle de Saint-Eutrope”, com textos e imagens de Pichard, incorre mesmo na censura, graças à violência de certas cenas. Nos anos seguintes, o autor compraz-se a adaptar à sua maneira clássicos da literatura, como As Feiticeiras de Tessália (a partir das Metamorfoses de Apuleio), Carmen de Mérimée, Germinal de Zola, A Religiosa de Diderot, Don Juan de Apollinaire, A Condessa Vermelha de Sacher-Masoch, e mesmo o Kama-Sutra, de Vasyayana. Em todas estas obras as personagens femininas são cruelmente torturadas e maltratadas, num estilo tão cândido como apaixonado, num exercício de voyeurismo transbordante em que nenhum detalhe dos requintes de - verdadeira - malvadez é descurado. Entre os anos 80 e os anos 90 destacam-se ainda o 2º volume das 110 Pilules, o trio de pendor mais violentamente anticlerical (ou de maior cínico aproveitamento das luxúrias da fé) Marie-Gabrielle en Orient, Madoline e La Voie du Repentir e a ilustração da obra de Pierre Louys Trois Filles de Leur Mére, onde o sadomasoquismo convive alegremente com a pedofilia, a bestialidade e a coprofilia. Aqui não há lugar para fetichismos específicos, apenas o gozo desbragado do prazer transgressivo, do sexo como queda no abismo. O convite à Sombra por excelência é aquele que emana das nossas pulsões sexuais mais primárias, aquelas que não estão temperadas pela moralidade ou pelos costumes, as que não conhecem o medo, apenas o êxtase.Georges Pichard morreu aos 83 anos, em 2003, sem ter pedido desculpa.
Copyright: © 2004 Umbigo; Pedro Soenen
FONTE:
BEDETECA DE LISBOA
Um comentário :
Olá,o seu blog é bem legal,pricipalmente essa homenagem a George Pichard
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