The Clash
London Calling (1980)
(Edição 50,Setembro de 1989)
por Ana Maria Bahiana
Três anos depois do verão punk, o establishiment pop ainda lambia
suas feridas. Aqueles Sex Pistols de Malcoln McLaren eram uma
brincadeira de mau gosto? E - impensável - se eles fossem importantes,
mesmo sendo uma brincadeira de mau gosto? Aliás, se tudo aquilo fosse
importante exatamente por ser uma bricadeira de mau gosto?
Desde os Beatles, os 60 e a politização/psicodelização do rock, a
indúsria não via questões tão profundas e tão graves ameaçando as regras
do (seu ) jogo. A primeira metade dos 70 trouxe uma paz confortadora,
em que bons negócios eram possíveis com um mínimo de tumultos e
confrontos. A indústria tinha um produto de aceitação certa e imediata, e
os consumidores pareciam felizes. Por que e de onde vinha essa
insurreição?
E que momento péssimo haviam escolhido para atacar: exatamente
quando, dos clubes gay underground, a disco music avançava sobre as
hordas de adolescentes. Mas o pior ainda estava por vir: em 1979 , o
establishiment descobriu que a rebelião tinha um cérebro além de uma
voz. E foi "London Calling", do Clash, que proclamou isto.
O Clash surgira na primeira hora do verão londrino de 1976, reunindo
Joe Strummer, com uma carreira de performances no metrô e à frente de
uma banda de pubs (os 101'ers); Paul Simonon, um estudante de arte que
jamais havia pegado num baixo: e Micke Jones, que também vinha da cena
de pubs. Primeiro Tory Crimes e depois com Topper Headon na bateria (e,
por pouco tempo com Keith Levene, futuro PIL, completando um quinteto) ,
o Clash abriu concertos dos Pistols em 1976 e, um ano depois, assinou
um contrato vultoso para a época, com duzentos mil dólares de
adiantamento. Os dois primeiros discos desse contrato "The Clash" (
1977) e "Give'Em Enough Rope" (1978) - já revelavam claramente o que o
Clash pretendia: de dentro da barragem alucinante de decibéis erguida
por Jones, Strummer cantava articuladamente uma inquietação social e
política que os Pistols conheciam, mas tratavam com um ódio brutal e
amorfo. Mas, na época, a forma triunfou sobre o conteúdo, iludindo a
todos, sem sequer antecipar o que seria "London Calling".
Lançado em meados do ano, London Calling foi um clarão de lucidez e
coerência que nem o rock nem o Clash conheceriam depois. As 19 faixas do
álbum duplo - a última, "Train In Vain", não está creditada na capa -
interligam-se para formar ao mesmo tempo um painel da Inglatera sobre
Thatcher - relutantemente multirracial, bacia de fermentação de ódios e
frustrações - e de um mundo apenas aparentemente sob controle, mas
impulsionado por armas, drogas e guerras sob encomenda. A música tem uma
riqueza de texturas que o punk desconhecia: O Clash canta o ska e o
reggae pesado da Londres negra (" The Guns of Brixton", "Rudie Can't
Fail". "Wrong Em Boyo") e puxa o longo fio ancestral que vai até os anos
50 ( " Brand New Cadillac") e o jazz ( "Jimmy Jazz").
O impacto de "London Calling" abriu clareiras em todas as frentes.
Para as platéias punk, ele disse que a fúria podia e devia ser
organizada, e que a lucidez e a curiosidade eram as únicas saídas
estéticas possíveis antes da caricatura e da dissolução. Para o resto do
público, o álbum restaurou a fé num gênero em visível decadência, o
rock. Para o próprio Clash o disco foi a bateria energética que o
impulsionou freneticamente durante um inacreditável par de anos - e o
álbum triplo "Sandinista" (1980) - até caírem exaustos ao chão das
realidades mesquinhas do business, ícaros modernos deixando no ar o
traço do seu vôo.
FONTE: http://rateyourmusic.com/list/Mhrr/discoteca_basica_revista_bizz
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