segunda-feira, 30 de maio de 2016

PERCY LAU

Autodidata, Percy Lau, com seus conceitos e pontos de vista próprios, desenvolveu uma carreira de sucesso nacional. Nasceu em Arequipa, Peru, em 16 de outubro de 1903, filho caçula de Bruno Law e Sofia Schon Law, cultivadores de cana-de-açúcar. Após sofrer um acidente na escada de sua casa, que afetou sua coluna vertebral, a família viajou para a Alemanha, terra de seus ancestrais, em busca de tratamento para o garoto, que é interrompido devido ao início da I Guerra Mundial. Foram para os Estados Unidos, mas por dificuldades financeiras chegaram ao Brasil em 1921, fixando residência em Olinda-PE. A adaptação do menino foi tão imediata que aprendeu o português com facilidade e sem sotaque, e o Law virou Lau. A natureza do lugar motivou os primeiros traços, surgindo os desenhos de coqueirais e mocambos com seus tipos humanos da região. Esses trabalhos (em grafite, nanquim e aquarela) estavam na primeira Exposição de Belas Artes de Pernambuco.
Em 1933 se associa a Augusto Rodrigues para criar um atelier comercial, criando trabalhos decorativos para restaurantes, formaturas, publicidade, letreiros artísticos, tabuletas, anúncios luminosos, retratos a óleo, etc. Em pouco tempo o lugar se tornou um ponto de encontro da sociedade cultural local. Segundo Augusto Rodrigues: “Trabalhávamos o dia inteiro e nos reuníamos à noite em torno de uma mesa ou no atelier para desenhar. O Percy Lau tinha parentes na Alemanha e recebia de lá uma quantidade muito grande de livros e revistas. Assim, tomamos conhecimento do movimento expressionista alemão. Recebíamos reproduções e revistas do Rio. Lembro-me de uma revista que se chamava Base, em que havia reproduções de Guignard, Di Cavalcanti, Portinari, e tivemos conhecimento também do Fujita”. Nesse tempo começa um namoro com Ismênia, vizinha do atelier. Trabalha no Diário de Pernambuco fazendo pequenas ilustrações. 
Em 1938 se muda para o Rio de Janeiro, trabalhando durante um ano para a Central do Brasil confeccionando maquetes para gares ferroviárias. Conhece e se relaciona com grandes nomes da arte brasileira como Di Cavalcanti, Guignard, Pancetti, Heitor dos Prazeres, entre muitos outros, estimulando seu ingresso no Liceu de Artes e Ofícios para estudar gravura, tendo assim um estudo sistemático da arte pela primeira vez. Volta ao Recife no ano seguinte e, depois de casar com Ismênia, retorna ao Rio. Recebe convite para integrar a equipe de desenhista do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que ilustrava a série Tipos e Aspectos do Brasil da Revista Brasileira de Geografia (RBG), permanecendo aí até os últimos dias de sua vida. 
Com sua aposentadoria do IBGE em 1967, chega ao fim sua fase de pontilhados à nanquim e surge o pintor cinquentão à mão livre, com composições líricas de paisagens do Rio de Janeiro, mulheres na praia e nus femininos. Em 12 de janeiro de 1972 morre de um mal cardíaco, depois de um período de internamento, interrompendo essa breve fase de pintor e encerrando a carreira de maior documentarista/artista, que dividiu com o gaúcho José Wasth Rodrigues e o paulista José Lanzellotti.


sábado, 28 de maio de 2016

quinta-feira, 26 de maio de 2016

TEX, O HERÓI E A LENDA

Serpieri: de Drunna a Tex



por Célio Heitor Guimarães

O veneziano Paolo Eleuteri Serpieri notabilizou-se no mundo dos quadrinhos pelas curvas que deu à Druuna, a gostosa nº 1 dos gibis. Morena saudável, de longos cabelos negros e corpo espetacular, Drunna nasceu em 1985 para encantar o universo masculino.

Ainda que as mulheres sempre tenham merecido especial carinho de Serpieri, inicialmente, ele pretendia dar um tom caricatural à personagem. Até o dia em que estava numa praia em Ostia, nas proximidades de Roma, então completamente deserta.

– De repente – conta o autor -, uma mulher nua saiu das águas. Seu corpo, perfeito e radiante, reluzia com as inúmeras gotas que o molhavam e refletiam a luz do sol.

Ali nascia a exuberante Drunna, figura de um futuro apocalíptico, onde os seres humanos foram sido atingidos por terríveis mutações. À vaporoso heroína cabe encontrar uma salvação para o planeta. Nem que para isso seja obrigada a fazer aquilo que mais lhe agrada: sexo.

Pois Serpieri acaba de dar uma guinada de 180 graus e arredou-se da supergata, que continua incendiando as páginas de álbuns ilustrados, para uma volta ao Velho Oeste norte-americano. E nessa empreitada não poderia ter sido mais feliz na escolha do herói retratado: Tex Willer, criação da casa editora Bonelli e o mais longevo caubói dos quadrinhos em atividade.

Não se pode dizer que o tema seja estranho a Paolo Eleuteri. No início de sua carreira de desenhista e criador de quadrinhos, ele se dizia influenciado por artistas como José Luis Salinas, o consagrado criador das tiras de Cisco Kid. Em seguida, chegou a participar da equipe que elaborou a História do Oeste Norte-Americano, um pretensioso projeto com mais de mil páginas. Por isso, o seu encontro com o mocinho de Gianluigi Bonelli e Aurélio Gallepini, é uma espécie de retorno à origem.

O resultado é um belíssimo álbum, que acaba de ser editado no Brasil por Dorival Vitor Lopes, da Mythos Editora, com tradução do curitibano Júlio Schneider: O Herói e a Lenda, argumento, desenhos e cores de Serpieri. A história se passa no início do século passado, na cidade de Nova York, onde um suposto Kit Carson, idoso e hóspede de um asilo e hospital psiquiátrico, narra a um insistente repórter italiano a história do seu inseparável companheiro de aventuras, o ranger Tex Willer ou Águia da Noite, o chefe branco dos índios navajos. A história expõe uma ambiguidade: teria o herói sido realmente um bravo soldado da lei e da ordem, caçador de ladrões de gado, comancheiros e malfeitores de toda ordem ou tudo não passou de uma lenda, tal qual tantas outras presentes no imaginário popular?

Como adverte Mauro Boselli, um dos atuais (e principais) argumentistas das aventuras de Tex e que assina o prefácio da edição, Serpieri tomou certas liberdades cronológicas em sua trama. Mas nem por isso prejudicou a história. Ao contrário, possibilita a integração do leitor ao relato e até – quem sabe? – a reversão de algumas convicções. É um trabalho instigante e merecedor de atenção.

O Tex de Paolo Eleuteri Serpieri é um Tex jovem, impetuoso, violento, com um destemor que beira a irresponsabilidade. Mas sabe o que faz e, sob a condução de Eleuteri, protagoniza um eletrizante episódio da vida na fronteira norte-americana, nos idos de 1855.

Como fecho, o autor ainda oferece, no quadrinho final, uma significativa surpresa ao leitor.

À obra, pois, texianos!



quarta-feira, 25 de maio de 2016

The Rocky Horror Picture Show (1975)

por MARCOS BROLIA
1975 / EUA, Reino Unido / 100 min / Direção: Jim Sharman / Roteiro: Jim Sharman, Richard O’Brien / Produção: Michael White, John Goldstone (Produtor Associado), Lou Adler (Produtor Executivo) / Elenco: Tim Curry, Susan Sarandon, Barry Bostwick, Richard O’Brien, Patricia Quinn, Nell Campbell, Charles Gray

The Rocky Horror Picture Show é sinônimo de cinema cult. Endeusado por gerações e mais gerações de jovens a trintões e quarentões, o musical / comédia / horror do diretor Jim Sharman é um clássico absoluto tanto para quem é fã do gênero, como para quem não é.
Lançado em 1975, dois anos após a peça musical estrear nos teatros ingleses, é um caso curioso de filme feito por um grande estúdio, aqui no caso a 20th Century Fox, que acabou se popularizando nas sessões da meia-noite e seus “double features” como a própria emblemática música de abertura evoca, recheado de toneladas e mais toneladas de referências de clássicos da ficção-científica e filmes de terror dos anos 30 até 50. Fora toda a estética glam rock, estilo musical dos anos 60 e 70, que tem David Bowie como um dos grandes ícones, caracterizado por músicos andróginos, maquiagem, purpurina e roupas coladas.
Todos esses elementos entraram em ebulição quando transportados ao cinema pelo produtor executivo Lou Adler. Um banho de sexualidade e transexualidade aterrissou nas telas naquela metade dos anos 70, e por mais que tenha sido um fracasso retumbante de bilheteria no circuito convencional, ganhou sua aura cult no decorrer dos anos e ainda hoje é objeto de estudo e admiração dos jovens, sendo citado em filmes adolescente indies como As Vantagens de Ser Invisível ou na baboseira chiclete televisiva Glee, fazendo com que seu público se renove sempre com o passar dos anos.
The Rock Horror Picture Show é um fenômeno social cinematográfico. Sua cenografia (simplista, tal qual a peça de teatro), as atuações exageradas (feitas por toda a trupe inglesa da peça, com exceção do casal protagonista americano Brad Majors, vivido por Barry Bostwick e Janet Weiss, vivida por Susan Sarandon), as mensagens (subliminares e escancaradas), as canções e suas coreografias e a trama que parodia o clichê do clichê do clichê do cinema de matinê e de drive-in se mostraram uma aposta certeira. Não há como um único fã de terror (aqueles malucos como eu que escrevo e você que lê esse blog), não querer passar a película inteira decifrando todas as referências a esse universo fantástico, seja nas letras, nos arquétipos dos personagens, na trama e subtramas paralelas ou nas memorabílias espalhadas pelos 100 minutos de projeção. 
Começa pelo casal em lua de mel em perigo, que durante uma noite de tempestade, vai parar no lugar errado e na hora errada (claramente inspirado no casal Peter e Joan Alison de O Gato Preto, filme de 1934 da Universal, uma das pérolas produzidas por Carl Laemmle Jr. durante a Era de Ouro do estúdio). Acontece que ali é a residência do transex e completamente despirocado Dr. Frank-N-Furter, impecavelmente vivido por Tim Curry em seu papel mais emblemático (junto com o palhaço Pennywise de It – Uma Obra Prima do Medo), o cientista louco da vez com seus ajudantes, o corcunda Riff-Raff (Richard O’Brien), e as estranhas beldades Magenta (Patricia Quinn – que em determinado momento irá se caracterizar na personagem de Elsa Lanchester em A Noiva de Frankenstein) e Columbia, a groupie (Nell Campbell). Isso sem contar a narração pontual do Criminologista e expert interpretado por Charles Gray (ator que é impossível dissociar de seu papel de Mocata em As Bodas de Satã da Hammer).
O famigerado doutor, entre um e outro ato de canto e dança, finalmente dá vida a sua criação, Rocky Horror, vivido pelo musculoso Peter Hinwood, tal qual o Dr. Frankenstein. Todo esse caldo é pano de fundo para a lascívia de Frank-N-Furter, as descobertas sexuais (e puladas de cerca) dos heróis e uma ode à cafonalha setentista, ao visual camp e elementos queers, que obviamente afugentaram o americano médio das salas de cinema, mas que ganhou sua força exatamente por seu aspecto B escancarado, quando voltado ao público underground, marginalizado, reprimido sexualmente (aí vale para héteros, por meio do casal que esconde sua libido por simples imposição social daqueles tempos e para os gays, que não preciso nem discursar aqui) que se identificava com a produção, e o via como uma forma de expressão, de questionamento, tomar posição e de fazer se “levantar a voz” em tempos de homofobia, intolerância e valores morais exacerbados gritantes.
Frank-N-Furter aparece como um libertino libertário, como um doce travesti (como na letra da música cantada por Curry) em seu escandaloso corselet, salto alto, cinta-liga, cantando aos quatro ventos sobre quem ele é, o que ele quer fazer e criar, exatamente para chocar a plateia e seu rival, o cientista Dr. Everett V. Scott (Jonathan Adams) que funciona como o contraponto que representa os pensamentos reacionários da sociedade, e servir com um mártir, um messias que execra os dont’s e é um estopim para os do’s de uma sociedade inteira e todos os seus tipos. Abre mundos como de Brad e sua homossexualidade latente, Janet e sua libido guardada a sete chaves pelo papel de esposa subserviente. Esqueça sua opção sexual, seu fetiche, seu credo, cor e raça, estilo musical que ouve, tipo de roupa com que se veste, ser excluído, minoria, sofredor de bullying. A mensagem gritante para esses oprimidos é: encontre o seu Frank-N-Furter dentro de você, lhe dê voz e a capacidade de criar, e saia do armário (armário que vale não apenas no sentido de escolha sexual, mas um armário que funciona como uma reprimenda de seus medos no fundo de sua psique). 
A emblemática cena de abertura com a música tema “Science Fiction Double Feature” e suas diversas referências originalmente mostraria os créditos dos atores entre clipes dos filmes citados. A ideia foi abortada por Brian Thomson, designer de produção, pois seria impossível ir atrás da permissão de todos os estúdios para que esse material fosse exibido e lhe ocorreu a ideia dos lábios, inspirado pela pintura de Man Ray “A l’heure de l’observatoire, les Amourex”. E bingo! Uma daquelas ideias tão acertadas que aquela boca vermelha carnuda se tornou uma marca registrada de TRHPS. Fora essa abertura e todos os pequenos easter eggs, o filme ainda tem uma cacetada de símbolos dos clássicos estúdios de cinema, como um dos mais emblemáticos, a torre de rádio e raio da RKO Radio Pictures, o globo símbolo da Universal e o grande Atlas, símbolo da Amicus, entre tantos outros. É como eu disse: assistir a TRHPS é um caça-palavras cinematográficos que entretém os fãs mais fervorosos.
No interessante campo dos quase, Mick Jagger queria o papel de Frank-N-Furter que acertadamente ficou para Tim Curry, oriundo da peça original; Steve Martin foi cotado para o papel de Brad Majors; e Vincent Price para o papel do Criminologista, que não pode aceitar por conflitos de agenda.
Mas o mais importante de tudo em The Rocky Horror Picture Show é que através de seus personagens facilmente identificáveis, mesmo que caricatos, é a capacidade de mostrar ao público a redenção, a descoberta do seu eu, de seus desejos, e por fim, se ver aceito no mundo. Até por isso ele tem tanta força nos adolescentes e continua perdurando até hoje em dia, funcionando com um belo serviço psicológico e social e, além disso, também despertando certo interesse nos clássicos, que hoje parecem anos luz de distância dessa geração vídeo-clipe e vídeo-game. É um sinônimo de ousadia em todos os sentidos. 

FONTE/DOWNLOAD

terça-feira, 24 de maio de 2016

MILLÔR FERNANDES


Nas cidades se mata.

Na Amazônia se desmata.

Estamos em pleno equilíbrio sustentável.


DISCOTECA BÁSICA


Herbie Hancock
Head Hunters (1973)
(Edição 195,Novembro de 2005) 

por  Alex Antunes

Quando estava introduzindo sua fase fusion, por volta de In A Silent Way(1969) e Bitches Brew (1970), Miles Davis teve de aporrinhar seus pianistas para que usassem teclados eletrônicos. Ou melhor, teve de aporrinhar Chick Corea, Joe Zawinul e Keith Jarrett - porque o versátil Herbie Hancock nunca se vexou com o jazz plugado. Pelo contrário, mesmo na fase acústica ele já gostava de gadgets: levava um protótipo de gravador portátil aos shows e o deixava embaixo do piano.
Depois, Hancock gravou álbuns em que fez recombinações de seu jazz c1assudo e climático com fragmentos de boogie elétrico-Crossings e Sextant,em que os créditos das programações de Moog e ARP vão para o dr. Patrick Gleason. Ecléticos sim, até afro¬tecno-primitivo-futuristas (numa estranha junção de codinomes tribais e processamento eletrônico), mas ainda assim discos "de jazz'.
Nada que alertasse para o balanço sem volta de Head Hunters. Por trás de uma daquelas estantes gigantes de teclados e efeitos - piano, rhodes, clavinet. órgão, sintetizadores, mellotron, echoplex -, como um Rick Wakeman negão, Hancock comandou o mais fulminante destacamento do jazz-funk: Bennie Maupin,
sax e clarone; Paul Jackson, baixo; Harvey Mason, bateria; Bill Summers, percussão.
Só que a vistosa tecladeira era usada com concisão, precisão e senso de groove robóticos e intrincados - a contrapartida com melanina e testosterona ao Kraftwerk, numa antecipação do electro nova-iorquino que daria origem ao hip hop e ao techno, anos depois.
Os puristas ficaram tão alarmados com os timbres abstratos e as conduções lineares que
se esqueceram de notar que, nas composições e nos solos de piano, o talento jazzístico continuava intacto. E Herbie provocava dizendo que ainda não tinha conseguido soar "comercial" de fato.
Na capa ele desaparece atrás de uma máscara tradicional africana onde V.U. e potenciômetros substituem os búzios. A primeira coisa que se ouve é uma levada sintética de baixo que é suingue e galhofa puros. Faça a experiência: toque os primeiros compassos de "Chameleon" em qualquer festinha black, electro-rock ou hip-hop, e as mentes seguirão as bundas. Até o início dos 80, Herbie testou a receita em meia dúzia de álbuns, alguns deles realmente comerciais, enquanto cultivava o jazz acústico em paralelo.
Só para dar uma idéia do imaginário do cara, na ilustração da capa de Thirst(1974) ele pilota uma espaçonave sobre Machu Picchu. Então, em 1983, veio Future Shock, nova Obra-prima com Bill laswell, e o hino break "Rockit" fazendo dançar as posses de b-boys em todo o universo


FONTE
http://rateyourmusic.com/list/Mhrr/discoteca_basica_revista_bizz/4/

domingo, 22 de maio de 2016

A REVOLUÇÃO DOS IDIOTAS


por  Nelson Rodrigues


Julgando-se um inepto nato e hereditário, jamais se atreveu a mover uma palha, ou tirar um cadeira do lugar. Em 50, 100 ou 200 mil anos, nunca um idiota ousou questionar os valores da vida. Simplesmente, não pensava. Os “melhores” pensavam por ele, sentiam por ele, decidiam por ele. Deve-se a Marx o formidável despertar dos idiotas. Estes descobriram que são em maior número e sentiram a embriaguez da onipotência numérica. E, então, aquele sujeito que, há 500 mil anos, limitava-se a babar na gravata, passou a existir socialmente, economicamente, politicamente, culturalmente etc. houve, em toda parte, a explosão triunfal dos idiotas.


sexta-feira, 20 de maio de 2016

quinta-feira, 19 de maio de 2016

SOLDA

CÁUSTICO


CABEÇA DE PEDRA

Sem vento e sem movimento

Na esquina das duas estradinhas de chão tem uma árvore. Está dentro do cercado onde há alguns pés de jaca e de manga. Está florida e parece um buquê. Não sei o nome dela. Não sei o que estou fazendo aqui parado. Tudo parado. Momento sem vento e sem movimento. Não consigo dar um passo adiante. O céu está azul e as nuvens brancas parecem pintadas. É um mistério como vim parar aqui. Até onde me lembro, olhava a tela de um computador no trabalho da empresa multinacional. Minha roupa é a mesma. Nunca usei terno. Camiseta, calça jeans e tênis. Alguma coisa aconteceu. Não lembro. Nem as vacas que vejo em outro cercado se mexem. O tempo estacionou até no relógio. Duas da tarde. No horizonte tem uma montanha. Acho que a conheço. De foto, provavelmente. Isso! A imagem chegou, abri e a árvore, esta aqui ao lado, estava lá. Não sei quem mandou. O que vai acontecer, também não sei. Consigo pensar. Mas será que tudo isso é pensamento? Momento sem vento e sem movimento. Inércia.


CABEÇA DE PEDRA: http://cabecadepedra1.blogspot.com.br/

terça-feira, 17 de maio de 2016

ROCK STARS


 David Bowie
 Sly
 Jimi Hendrix
 Keith Richards

 Richards/Jagger
 Elvis Presley
Frank Zappa

KING CRIMSON

In The Court Of The Crimson King (live)


A Casa com Janelas Sorridentes (1976)

 por  MARCOS BROLIA 


La casa dalle finestre che ridono / The House With Laughing Windows

1976 / Itália / 110 min / Direção: Pupi Avati / Roteiro: Pupi Avati, Antonio Avati, Gianni Cavina, Maurizio Costanzo / Produção: Antonio Avati, Gianni Minervini / Elenco: Lino Capolicchio, Francesca Marciano, Gianni Cavina, Giulio Pizzirani, Bob Tonelli, Vana Busoni

O filme completamente atmosférico de Pupi Avati infelizmente não tem o mesmo status que outras obras como Mario Bava e Dario Argento atingiram, e nem como as grosserias gráficas de Lucio Fulci. Mas na minha humilde opinião esta fita está entre os cinco melhores filmes de terror italianos de todos os tempos. Não é nem um giallo, nem um splatter, nem um filme sobrenatural. É uma mistura de elementos precisos que convergem em um final realmente impactante (e até estrambólico deixando a emoção um pouco de lado).

Os créditos do longa já são de meter medo em muito marmanjo e fazer o caboclo grudar no sofá. Uma figura masculina está sendo brutalmente torturada e esfaqueada em tom sépia, enquanto uma narração medonha e completamente esquizofrênica falando sobre sangue, cores, morte, pecado, sífilis, ecoa junto a excelente trilha sonora. Após isso, somos apresentados a Stefano (excelente atuação de Lino Capolicchio), um restaurador que vai até um inóspito, bucólico e distante vilarejo italiano, contratado para restaurar uma pintura destruída feita na parede de uma igreja, que parece ser o Martírio de São Sebastião, de um controverso pintor local chamado Buono Legnani, conhecido como “pintor da agonia”.
Reza a lenda local que Legnani era um cara completamente perturbado, que pintava tão bem seus quadros de mártires pelo simples fato de usar vítimas vivas, capturadas por suas duas irmãs tão desequilibradas quanto, que esfolavam o sujeito enquanto ele captava toda a dor com seu pincel e tintas. Como se não bastasse, ainda havia uma teoria de que os três costumavam praticar incesto e adoravam fazer um threesomeente irmãos. Legnani foi perseguido pelos aldeões e incendiado vivo, porém seu corpo nunca fora encontrado.

Tudo que gira em torno de Legnani é tratado com mistério e desconfiança pelos incautos moradores, que parecem ocultar algo sinistro em uma engendrada conspiração silenciosa. Antonio Mazza (Giulio Pizzirani), antigo amigo de Stefano que o indicou ao trabalho, começa a descobrir algumas pistas sobre o trabalho e paradeiro do “pintor da agonia” e suas irmãs e o que está por trás daquele terrível quadro. Porém, ele acaba assassinado para ser silenciado, como vem acontecendo frequentemente com todos aqueles que resolvem se meter neste assunto (isso nos faz remeter aos gialli), e o que vai acontecer também futuramente com Copolla (Gianni Cavina), taxista bêbado que tentará ajudar Stefano das investigações.

Todos os moradores daquela cidade são suspeitos e parecem ter algo a esconder, desde o prefeito anão Solmi (Bob Tonelli – que parece uma versão Al Capone de Tatu, de A Ilha da Fantasia), passando pelo pároco local e seu esquisito e arrepiante assistente, de Lidio (Pietro Brambilla) a uma decrépita velha paralítica (Pina Borione) que fica confinada na cama na casa onde Stefano está se hospedando. O herói ainda irá se envolver romanticamente com a bela Francesca (Francesca Marciano), professora da escola infantil do vilarejo. O problema todo para os dois começa quando Stefano fica obcecado por Legnani e toda a aura macabra que ronda sua história, tentado juntar pistas sobre seu paradeiro, sobre o que aconteceu com seu amigo, quem destruiu novamente a pintura com ácido após seu trabalho ter terminado, e escutando a tenebrosa fita que tem a narração do começo do filme.
Avati abusa da estética barroca para contar sua história, passeando por ambientes desoladores de uma cidade parada no tempo após a Segunda Guerra Mundial, com seus moradores esquisitos e construções desgastadas e destruídas, além dos pântanos encharcados por causa de uma cheia que praticamente acabou com o local. Fora isso, ao invés de violência extrema e sexo, tão costumeiros nos filmes italianos do período, o diretor prefere fixar-se no terror psicológico, no suspense crescente que vai se arrastando até seu final sem revelar nada, deixando o espectador literalmente angustiado até beirar o insuportável, jogando tragédias no caminho de Stefano até o final acachapante, que misturará sadismo, violência e necrofilia.

Mas claro, que escolados que somos no cinema de horror vindo da Itália, podemos esperar uma centena de buracos no roteiro que fará parecer um queijo suíço e uma sequência final, que por mais bizarra que seja, é completamente estrambólica e sem sentido, mas que acaba impactando por sua estranheza. ALERTA DE SPOILER. Pule para o próximo parágrafo ou leia por sua conta e risco. Após Francesca ser brutalmente assassinada por Lídio, Stefano finalmente se depara com o mistério por trás da história toda: ao subir no sótão da casa onde está hospedado, ele encontra o corpo do excêntrico ajudante da igreja pendurado exatamente como no começo do filme ou na pintura, sendo esfaqueado por duas senhoras, que são na verdade as nefastas irmãs Legnani. Uma inclusive sendo a paralítica que vivia confinada na cama (que já sacamos alguns frames antes do filme, ao vê-la cantando uma música em português, sendo que em determinado momento do longa, descobre-se que Buono e suas irmãs viveram um período no Rio de Janeiro na década de 30). As duas mantém o corpo do irmão morto dentro de um tanque de formol guardado dentro do armário, e segundo elas, ainda praticava sexo com o mesmo. Stefano é violentamente esfaqueado e toda a cidade recusa-se a prestar socorro, até ele adentrar a igreja pedindo auxílio ao padre. Até aí tudo bem, quando descobrimos que o padre é na verdade a outra irmã. Ele é uma travesti/transexual que se disfarça de padre, e até mostra o peitinho de fora para comprovar. Imediatamente a imagem da Luiza Erundina me veio à cabeça ao encarar aquele padre como mulher. Enfim, é de deixar qualquer um boquiaberto com a bizarrice.

Agora você me pergunta: “Marcos, mas o porquê do título, A Casa com Janelas Sorridentes?”. E eu lhe respondo, caro fã do horror: porque a casa no meio do charco onde Buono e suas irmãs perversas moravam tem na parte de trás estranhos sorrisos pintados em tornos das janelas (essa da foto aí embaixo). Fato é, assista a este filme. Um dos melhores exemplares do cinema de terror italiano em todos os seus quesitos, até nos mais absurdos.

Era uma casa muito engraçada…


segunda-feira, 16 de maio de 2016

O CRIME COMPENSA

por João Ubaldo Ribeiro


Distinto leitor, encantadora leitora, ponham-se na pele de quem tem de escrever toda semana. Não me refiro à obrigação de produzir um texto periodicamente, sem falhar. Às vezes, como tudo na vida, é um pouquinho chato, mas quem tem experiência tira isso de letra, há truques e macetes aprendidos informalmente ao longo dos anos e o macaco velho não se aperta. O chato mesmo, na minha opinião, é o “gancho”, o pé que o texto tem de manter na realidade que o circunda. Claro, nada impede que se escreva algo inteiramente fantasioso ou delirante, mas o habitual é que o artigo ou crônica seja suscitado pelo cotidiano, alguma coisa que esteja acontecendo ou despertando interesse.

Pois é. Hoje, outra vez, qual é o gancho? Quer se leia o jornal, quer se converse na esquina, só se fala em ladroagem. Roubalheiras generalizadas, desvios, comissões, propinas. Rouba-se tudo, em toda parte. Roubam-se recursos do governo na União, nos estados e nos municípios. Roubam-se donativos humanitários e verbas emergenciais destinadas a socorrer flagelados. Rouba-se material, rouba-se combustível, rouba-se o que é possível roubar. Qual é, então, o gancho? Só pode ser a ladroagem. Não há outro, pelo menos que eu veja. É o tema do dia, não adianta querer escolher outro, ele se impõe.

Hoje creio que não há um só brasileiro ou brasileira (de vez em quando eu acerto no uso desta nova regra de distinguir os gêneros) que não tenha a convicção de que pelo menos a maior parte dos governantes, nos três poderes, é constituída de privilegiados abusivos e larápios, no sentido mais lato que o termo possa ter. Já nos acostumamos, faz parte do nosso dia a dia, ninguém se espanta mais com nada, qualquer mirabolância delinquente pode ser verdade. E também já nos acostumamos a que não aconteça nada aos gatunos. Não só permanecem soltos, como devem continuar ricos com o dinheiro furtado, porque não há muita notícia de devoluções.

Ou seja, por mais que alguma autoridade nos diga expressamente o contrário, usando um juridiquês duvidoso e estatísticas entortadas, a verdade é que, no Brasil, o crime compensa. Presumo que até os assaltantes pés de chinelo tenham pelo menos a vaga percepção de que todos os poderosos roubam e, portanto, fica mais uma vez comprovado que quem não rouba é otário. Às vezes, chega a parecer que existe uma central programadora de falcatruas, pois a engenhosidade dos ladrões não tem limites e, hoje, analisar somente os golpes dados em um ou dois ministérios requereria um profissional especializado, com anos de estudo e experiência. É criado um órgão ou despesa, aparece logo uma quadrilha dedicada a furtar desse órgão ou abiscoitar essa despesa. Suspeitamos de tudo, de obras públicas a loterias, da polícia aos tribunais. Contamos nos dedos os governantes, em qualquer dos três poderes, em que ainda acreditamos que podemos confiar – e é crescente a descrença neles, bem como o cinismo e a apatia diante de uma situação que parece insolúvel e da qual, como quem cumpre uma sina má, jamais nos desvencilharemos.

Não seria de todo descabida a afirmação de que somos uma sociedade sem lei. Sob certos aspectos, somos mesmo, porque as nossas leis não têm dentes, não mordem ninguém. Mesmo na hipótese de um assassinato ser esclarecido, o que está longe da regra, estamos fartos de ver homicidas ficarem praticamente impunes por força de uma labiríntica e deploravelmente formalista rede de recursos, firulas jurídicas e penas brevíssimas. A possibilidade de, mesmo confesso, um homicida jamais ser de fato punido, a não ser muito levemente, é concretizada todo dia. Aqui matar é cada vez mais trivial e muitos assaltantes atiram pelo prazer de atirar, matam pelo gosto de matar.

Não sei em que outro país do mundo o sujeito entra numa delegacia policial levando o cadáver da vítima, mostrando a arma do crime e confessando sua autoria, para ser posto em liberdade logo em seguida, já cercado de advogados e manobras para evitar a cadeia. É difícil de acreditar, mesmo sabendo-se que é verdade documentada. Réu primário, moradia conhecida, ocupação fixa etc. e tal e o sujeito vai para casa quase como se nada tivesse acontecido, talvez até trocando um aperto de mão com o delegado, como já imaginei aqui. Ou seja, é crime, mas é mole matar no Brasil, o preço é muito em conta. E essa situação não envolve apenas os ricos, porque os outros também estão aprendendo, como foi o caso de um jovem assaltante de São Paulo, que muitos de vocês devem ter visto na TV. Apresentou-se numa delegacia espontaneamente, é réu primário, tem residência fixa etc. etc. Embora tenha posto a culpa na vítima, por esta haver reagido, confessou o crime. Foi solto logo em seguida, saindo muito sorridente da delegacia. E, se um dia vier a ser condenado, contará com um mar de recursos à sua disposição, complementados pelos benefícios a que terá direito, com a progressão da pena.

Já tive oportunidade de dizer aqui que a melhor maneira de assassinar alguém no Brasil é encher a cara, sair no carro e atropelar a vítima. Encher a cara é agravante em toda parte, mas aqui parece funcionar como uma espécie de atenuante. Fica-se discutindo se o homicídio é doloso ou culposo, se o que vale no caso é o Código de Trânsito ou o Código Penal e, no fim das contas, o que acontece é o atropelador pagar fiança, ir embora para casa e esperar, na pior das hipóteses, ser enquadrado numa dessas leis desdentadas e cumprir pena em liberdade, ou quase isso. O que, somado ao que está dito acima, leva mesmo a concluir que, entre nós, o crime compensa. E, talvez graças aos exemplos dados por parlamentares e outros governantes, estamos assistindo à democratização da impunidade, que gradualmente deixa de ser privilégio dos ricos e poderosos para se estender a todos. Tá dominado.

sábado, 14 de maio de 2016

quarta-feira, 11 de maio de 2016

CONVERSA NA PINACOTECA

por Yuri Vasconcelos Silva


Alexander entra deslizando seus dedinhos pelos tijolos expostos e justapostos que formam as paredes externas, uma casca que protege em seu interior devaneios em telas. Invólucro feito da mesma terra onde nascem as casas, os alimentos e os homens. De cor vermelho alaranjado, esfarelento ao contato com a pele. Quente mesmo quando o dia é chumbo frio, e bruto à vista. Alexander me pergunta por que o prédio não está terminado. Parece ser velho. Apenas aceno com a cabeça enquanto dou tapas em suas palmas para retirar os farelos do velho edifício. Alexander tem 7 anos.

Mais interessado na lanchonete do que nas galerias, ele admira empanadas e tortas na vitrine da cafeteria. Explico que o prédio é de fato um senhor com mais de 100 anos, projetado por um arquiteto bastante popular na época, o Ramos de Azevedo. Mas passou por uma intervenção em 1990, sob o traço de um outro conhecido arquiteto contemporâneo. Paulo Mendes da Rocha. Alexander vira o azul de seus olhos para mim e afirma que não tem nada de novo ali, que o prédio parece velho. Explico que a reforma teve o respeito de ser sutil, respeitando o que o outro arquiteto, naquele outro tempo, havia projetado para o edifício. Mas, reforço ao guri erguendo um pão de queijo aos céus, não só por isso o arquiteto do nosso tempo deixou de imprimir sua marca. Então caminhamos até o pátio no miolo da construção. Apontei a cobertura para o Alexander. Veja como é leve, como a teia de uma aranha. É quase invisível, repousada e esticada pelas sólidas paredes em tijolo aparente, mas se mostra ao balanço da luz e do vento. Perceba como a luz transpassa pela cobertura e se esparrama aqui dentro. Siga a sombra da estrutura da cobertura caminhar lentamente, impressa, sobre paredes e piso. Alexander mira o alto e até parece entender o que eu quero dizer. Mas entendo que palavras são insuficientes para descrever experiências espaciais de lugares como este. Então aponto para as passarelas que cruzam um lado ao outro, irrompendo das aberturas originais. Elas são também metálicas, como a cobertura zenital. O arquiteto escolheu material leve e também diferente de tudo que existia no princípio, para criar uma dualidade clara do que é original e o que é contemporâneo. Este arquiteto gosta do básico e do simples, como acontecia na arquitetura modernista. É preto no branco. São depurações extremas do significado de uma escada, um corrimão, uma parede ou um teto. Já te mostrei isso em outras exemplos, Alexander. Lembra daquela casa de campo nos Estados Unidos, toda branca e transparente. Ou em Curitiba, aquelas casas elegantes do Artigas? Os paulistas sempre gostaram muito dos materiais como eles saem da fábrica. Casas sem maquiagens ou adornos, e isso foi, em boa parte, revelado pelo Artigas. De fato, ele influenciou muitos arquitetos daqui, inclusive o Paulo Mendes. O concreto, especialmente o aparente, o tijolo, o metal e a crueza destes materiais sem qualquer pudor, em tom bruto e desnudo, definem boa parte da arquitetura desta cidade. Paulo Mendes da Rocha não apenas revitalizou esta Pinacoteca, ajudou a criar a identidade de São Paulo. São casas, museus, galerias de arte, edifícios públicos. Ele ganhou o Pritzker há um tempo e agora mesmo acaba de receber um importante reconhecimento da arquitetura mundial em Veneza, pelo conjunto de seu trabalho. O Leão de Ouro. Aliás, este evento tem a direção do arquiteto Aravena, que ganhou o Pritzker este ano e é nosso vizinho, do Chile. Perceba, Alexander, como tudo se conecta, da mesma forma que esta cobertura e suas linhas. Paulo Mendes da Rocha, Vilanova Artigas, Aravena, a arquitetura de São Paulo, da América Latina. Tudo converge para um ponto comum: a busca do espaço inclusivo, o lugar que é para todos.

Dei-me conta que Alexander não está mais comigo. Voltou para a cafeteria. Talvez o mais importante na arquitetura seja a cozinha. É onde está a comida e o fogo. Não existe lugar mais inclusivo e confortável em qualquer casa, edifício ou cidade.

* Paulo Mendes da Rocha e Oscar Niemeyer são os únicos arquitetos brasileiros ganhadores do Pritzker, reconhecimento máximo da arquitetura internacional; Vilanova Artigas foi um dos fundadores da escola paulista e brutalista da arquitetura nacional. Nasceu em Curitiba;

sábado, 7 de maio de 2016

FOTOGRAFIAS

Julia Margaret Cameron 
(1815-1879)



FERNANDO PESSOA


Entre o sono e sonho,
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim.

Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre -
Esse rio sem fim.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

SOLDA

CARTUM



SOLDA CÁUSTICOhttp://cartunistasolda.com.br/

Cadeia, o grande sertão de Graciliano

Por  Nei Duclós


“Memórias do Cárcere”, a obra maior do prisioneiro que radiografou o ofício da literatura ao confiná-la em cubículos, dividindo espaço com a diversidade do povo marcado para morrer.
Cigarros ordinários acesos um no outro para economizar fós­foro, um restinho de iodo para desinfetar um ferimento no dedo, papel e caneta embrulhados em pijamas e outros trapos numa valise que carrega por todo lado, por mais de cinco prisões para onde foi jogado junto com milhares de outros presos políticos, misturados a vigaristas, ladrões e malandros, acompanham o escritor na sua faina: o de escrever notas que mais tarde vão continuar a literatura iniciada nos confins do Brasil seco e violento. Os livros que esmerilha na sua rotina brutal são narrados como personagens ocultos, um amontoado de letra miúda, mal alinhavadas e passíveis de todas as correções.

O protagonista é o livro — pode ser “Angústia”, publicado em 1938, ou as anotações que geraram mais tarde “Memórias do Cárcere”. Ele está sendo esmiuçado nos apertos sem conta, em meio ao pavor, o horror, a miséria, a sujeita e o escândalo. O que lemos em “Me­mórias do Cárcere” é uma obra sobre literatura, que começa a ser esboçada na cadeia. A s notas se transmutam mais tarde, reescritas e editadas (dez anos depois de sua soltura, em 1938) para a posteridade — foi publicado em 1953 pelo seu filho Ricardo, que mudou o título original, “Cadeia”.

Escrever é a ação principal deste grande sertão de Gra­ciliano. É sua obra maior, não só pelo tamanho, mas pela ambição. Longe de ser apenas um mural do povo brasileiro no seu habitat natural — a miséria confinada em porões de uma tirania endêmica. É sua grande obra prima, seu “O Tempo e o Vento”, seu “Guerra e Paz”. O Brasil no porão, explícito, cru, diverso, assustador. Um mural humano com detalhes íntimos de cada figura, cada gesto, cada ação. Nele, vemos que vida não é texto que se costure, a não ser que você costure a vida como um texto.

Em “Memórias do Cárcere”, Graciliano Ramos usa técnicas de ficção para contar a verdade. Uma delas é focar uma dúvida da percepção para iluminar o entorno, destacar um elemento protagonista para elucidar pormenores. Invoca-se, por exemplo, com dois vultos fixos vistos na madrugada da janela da sua cela. Não atina o que seja e usa a dúvida para ir narrando sua insônia, feita de migalhas e vivências. Outra técnica é dizer que não lembra de determinados detalhes enquanto outros se tornam abundantes.

Para tornar explícita a miséria social e política, afunda-se na baixa autoestima, como se o personagem que cria — ele mesmo, a vítima de uma injustiça — seja o fruto da escassez que domina o país. A família que descreve — a esposa mesquinha e histérica, os filhos agitadores — tem perfil fictício, o que o deixa à vontade para reforçar o papel de uma situação doméstica opressiva, contra a qual a prisão acaba se oferecendo como uma bizarra solução. O drama se desenrola no varejo, com vingancinhas pessoais, pequenas traições nos gestos e palavras, ruas mal iluminadas, prédios sinistros, funções inúteis, cidadania zerada.

O narrador está no miolo de um drama que se expõe das bordas às vísceras, em que a rotina doméstica é substituída pela falta absoluta de sentido do encarceramento. Graciliano Ramos conta sua história compondo um mural literário inspirado na memória. É o tempo todo literatura, pois os fatos se unem pelo fio narrativo de uma improbabilidade, o mundo sendo definido pela visão amarga e ríspida de alguém que sobrevive à revelia.

Desisti de ler “Recordações das Casa dos Mortos”, de Dos­toiévski, diante dos horrores que ele descreve da vida na prisão da Sibéria. Descubro agora, lendo “Memórias do Cárcere”, que Graciliano Ramos supera o clima descrito pelo gênio russo ao reproduzir as cenas infernais do porão do navio-prisão Manaus. Nem vou citar a sucessão de cenas descritas, pois prefiro me ater a um detalhe importante. O grande escritor, mestre absoluto da língua, era tido como personagem menor pelos bem postados revolucionários famosos.

Foi até confundido com tira, policial disfarçado, pois entrou no navio vestindo terno, gravata, chapéu e levando uma valise. O mal entendido se dissipou, mas ele continuou sendo tratado como um subalterno. É assim mesmo. Um grupo se forma, se autodenomina líder e coloca quem quiser no limbo. Não adianta espernear. Mais tarde, ao ser transferido de prisão, Gra­ciliano conseguiu se ambientar entre os chamados comunas, sempre mantendo a postura crítica, pois para ele o importante era a crueza humana e não sua ideologia. Uma das forças do livro é a produção de pensamento sobre comportamentos em situações limite.

Sua autocrítica é arrasadora. Sentindo-se incompetente para viver em grupo, enxerga-se como um outsider permanente, a passar sua bateia entre os cascalhos das palavras tartamudeadas por ele e ouvidas nas várias cenas que se sucedem na prisão. Uma de suas magistrais lições de literatura neste livro é a composição de personagens. Temos um exemplo no parágrafo inicial do capítulo 9, da segunda parte, do volume 1. Ele ensina como um mestre formata um personagem, que neste trecho do livro tem a função de sintetizar as dissenções internas dos presidiários políticos. “O capitão de nariz comprido esteve conosco dois ou três dias. Nunca lhe ouvi uma palavra, mas vi-o falar em excesso a grupos pequenos, afirmativo, açodado, a examinar os arredores com jeito de conspirador. Sem revelar em público nenhuma opinião, estava sempre a sussurrar um cacarejo indistinto, passeava na assistência minguada os inexpressivos olhos de ave, erguia o bico longo, baixava-o, reproduzia movimentos sacudidos de galinha a colher grãos. Os cochichos permanentes aborreciam-me, os gestos ambíguos, o proceder furtivo, o conluio visível de meia dúzia de pessoas. Afinal o tipo se sumiu. Na verdade estivera a sumir-se constantemente, a esgueirar-se de um cubículo para outro. Findos esses manejos, bateu asas na fuga definitiva, nem nos deu tempo de gravar-lhe o nome: para mim ficou sendo o capitão de nariz furtivo.”

Outro exemplo é como ele descreve Agildo Barata. No capítulo 13, da segunda parte, do volume 1 , Graciliano traça um perfil primoroso de Agildo Barata, uma personalidade conhecida nas leituras sobre a época das revoluções dos anos 1920 e 1930. Li “A Vida de Um Revolucionário”, de Agildo e também as páginas que a ele se referem em Juarez Távora e outros memorialistas. Jamais tinha tido uma ideia exata da figura até chegar a este parágrafo de ouro.

“Esquisita pessoa, Agildo. Minguado, mirrado. A voz fraca e a escassez de músculos tornavam-no impróprio ao comando. A sua força era interior. Dizia a palavra necessária, fazia o gesto preciso, na hora exata. Economizava ideias e movimentos para utilizá-los com segurança: moreno, rosto impassível, tinha uns longes de esportista japonês: ligeiro desvio, avanço ou recuo oportuno assegurava-lhe a vitória. Preso, dirigira a sublevação do 3º Re­gimento e tão bem se comportara que, após breve luta, estava no cassino, vigiando os oficiais legalistas vencidos. Faltava um major e ninguém dera pela ausência dele: provavelmente sucumbira na peleja. Súbito o desaparecido invadira a sala, gigantesco, chegara-se ao carcereiro, uma pistola em cada mão. Às desvantagens naturais Agildo somava então inconvenientes acessórios: apanhavam-no de surpresa, sentado, via um sujeito enorme, em pé diante dele, manejando armas. Estou frito, dissera por dentro. E levantara-se para morrer. O colossal major, rubro e afobado, largara as duas pistolas em cima de uma banca e expressara-se veemente: — Rendo-me. Contra a força não há argumento.”

O capítulo todo é dedicado a Agildo, que, segundo Graciliano, tinha a qualidade rara de “apre­ender num instante as disposições coletivas”. O episódio em que Agildo lidera a briga por talheres decentes, em que os presos jogam as refeições no pátio com grande estardalhaço, é de fazer saltar da cadeira.

O texto pelo avesso

A palavra, como Corisco, não se entrega. Tem a vocação da permanência, apesar de fustigada pela passagem da fanfarra. Por um tempo, pode até colorir o discurso, vender sabonete ou escorrer em panfletos de rua. Mas seu destino final, conduzido sob a ética do talento, é refazer o mundo, por pior que ele seja. Mesmo aquele mundo seco, rude, duro do interior de Alagoas, que criou Graciliano Ramos a partir de 1892.

No seu livro “Infância”, ele conta como foi difícil aprender a ler no meio do sertão. O pai sem paciência e a escola, ameaçadora e punitiva, forjaram na dificuldade sua iniciação ao texto. É esta lição, de um mestre de ofício a iluminar, na pedra, suas origens e o futuro, que ele deixa para um país ainda pobre e perdido.

“Graciliano nos ensinou a provocar emoção discretamente, concisamente”, diz a escritora Edla Van Steen. “Ele nos apontou uma nova maneira de escrever, através do acabamento impecável do texto, num estilo sem adjetivos. É o pai dos modernistas brasileiros.” Esse é um dos paradoxos do mestre: de formação clássica, nunca tinha lido Proust e gostava mesmo era de Flaubert, Balzac, Dostoiévski. Seu poeta predileto era Manuel Bandeira, assim mesmo de “Cinza das Horas”. Não gostava da oralidade dos modernistas e chegou a falar mal de Oswald e Mário de Andrade. Segundo o crítico Fábio Lucas, ele dizia que precisava comprar uma gramática paulista para entendê-los.

Logo o “velho Graça” — ex­pressão lembrada, numa crônica, pela sua contemporânea Rachel de Queiroz —, tão cheio de regionalismos: “Graciliano é o mais representativo de uma região que se universaliza”, diz Fábio Lucas. “A partir de ‘Caetés’, seu primeiro romance, publicado em 1933, introduz um vocabulário exclusivo do Nordeste, usando com rigor a tradição da língua.” Fábio nota que em sua obra prima, “Vidas Secas” (1939), ele despoja as personagens com tal riqueza de traços que estes acabam se tornando o prolongamento dos animais e da paisagem.

Outro contemporâneo, o poeta Ledo Ivo — ex-menino prodígio que em 1933, aos 10 anos de idade, foi cumprimentado pelo diretor de Instrução Pública de Maceió, o próprio Graciliano em pessoa — destaca a análise psicológica do mestre, feita num cenário geográfico e político. “É um escritor elíptico e sumário”, diz, “que se baseou na tradição literária. Ao mesmo tempo, ele é singular por não ter a eloquência do perfil brasileiro. Mas o traço mais marcante da personalidade do escritor é, segundo Ledo Ivo, o da vítima inocente, que so­freu a punição sem culpa.

“Memórias do Cárcere”, seu alentado depoimento sobre um ano de encarceramento em 1936 — quando foi acusado de comunista — e publicado depois de sua morte em 1953, é a obra mais citada por Ledo Ivo: “Além do ressentimento de ter sofrido uma prisão kafkiana, ele tinha uma visão trágica da vida. Era um bicho do mato, um caracol. Vivia recolhido e era avesso à publicidade. Não participava da festa do sucesso dos escritores nordestinos, como José Lins do Rego ou Jorge Amado. Sua glória é póstuma”.
Laços de família tinham aproximado ainda mais Ledo Ivo da casa de Graciliano, que ficava no Rio de Janeiro no início da década de 1940. Foi lá que conversara longamente pela primeira vez, quando o escritor mostrou ao jovem poeta um artigo que este tinha publicado aos 14 anos, sobre “Vidas Secas”.

Esse foi também o início da amizade do poeta com o filho do mestre, Ricardo Ramos. “É curiosa a relação entre pai e filho”, diz a pesquisadora Yedda Dias Lima, do IEB — Instituto de Estudos Brasileiros, da USP. “Ambos morreram no mesmo dia, 23 de março, vítimas da mesma doença, o câncer, e deixaram, cada um, um livro não concluído.” O pai deixou “Me­mórias do Cárcere” e o filho, que morreu em 1992, quando se preparava para coordenar as festividades do centenário, “Graciliano, um Retrato Fragmentado”, lançado pela Siciliano.

A polêmica que se seguiu à publicação do livro póstumo de Graciliano está relacionado diretamente aos 3500 originais que deixou em poder da mulher, Heloisa e se encontra no IEB desde 1982, sob a responsabilidade de uma equipe coordenada por Yedda. O crítico Wilson Martins chegou a dizer que “Memórias do Cárcere” foi corrigido pelo Partido Comunista.

A fidelidade ao que realmente acontece, o sentido de retidão, a sua recusa à mentira, a sua reflexão profunda sobre a realidade faz de Graciliano um prato cheio para estudiosos como o professor de Literatura Comparada da USP, João Luís Tafetá (1946-1976), autor de um estudo sobre a riqueza e complexidade da obra do escritor. “Ele é a sua própria experiência”, disse Lafetá. “Nele, o fundamental é o modo honesto de contar. O escritor está preso ao real e longe, portanto, da falsidade.” O trabalho, tese de livre docência, enfoca três ângulos principais, que se comunicam internamente. O primeiro é literário, examina as técnicas das formas de narrativa, onde se sobressai o texto neorrealista que acaba transcendendo os rótulos.

O segundo é psicanalítico, que levanta um oblíquo complexo de Édipo em “Caetés” e dois triângulos amorosos: um imaginário em “São Bernardo” — no qual os ciúmes do anti-herói Honório leva a mulher ao suicídio — e outro real em “Angústia”, no qual Luis da Silva, outro anti-herói, acaba matando o rival. Para Lafetá, Graciliano diminui suas personagens e revela os cortes que sofreu ao longo da vida. Ele gosta de citar um trecho de “Infância”: “Herdei a vocação para as coisas inúteis”.

O terceiro enfoque é da linguagem da ironia, que basicamente é uma inversão e procura dizer o máximo num mínimo de palavras. Lafetá estuda a ética da construção da linguagem de Graciliano, raiz da sua exigência e contenção. “Ele cortava tanto seus textos a cada nova edição, que a esposa advertiu que acabaria apenas com páginas em branco”, lembra Fábio Lucas. Yedda conta detalhes da sua técnica de escrever: “Colocava um cigarro ao lado do outro, fora do maço, para não perder tempo. Desenhava uma letra caligráfica, que descia a detalhes da perna da letra a. Quan­do cortava, passava uma régua em cima e abaixo da palavra, riscava no meio e até, ás vezes, um cigarro aceso, para não haver dúvidas”.

Descoberto pelo poeta Augusto Frederico Schmidt, graças aos seus relatórios quando foi prefeito em Palmeira dos Índios, Graciliano Ramos foi traduzido em 32 línguas e seus livros venderam, até 1992, cinco milhões de exemplares, só no Brasil. Alguns deles, como “Vidas Secas”, “Insônia”, “São Bernardo” e “Memórias do Cárcere”, viraram filmes. Ele destacou-se por virtudes que por um tempo foram esquecidas no Brasil. Hoje elas ressurgem como um exemplo para um país que precisa desesperadamente reencontrar seu rumo.


FONTE:
http://acervo.revistabula.com/posts/ensaios/cadeia-o-grande-sertao-de-graciliano


segunda-feira, 2 de maio de 2016

FOTOGRAFIAS

No quintal de Dona Zefa




Fotografias de Ricardo Silva