quarta-feira, 28 de setembro de 2016

DISCOTECA BÁSICA

Roxy Music
Roxy Music (1972)
(Edição 15,Outubro de 1986) 

por  Alex Antunes

"Muita gente descordará de que o Roxy Music tenha definido os anos 70; ao contrário, todos estarão de acordo com que a importância dos Beatles para os anos 60 tenha sido básica e radical. Não devemos estranhar. Os 60 foram anos de esperança, os 70, de confusão. Os 60, anos de unidades; os 70, anos de dispersão."
Como Ramón de España - que o enunciou em um interessante livrinho sobre a banda (Ediciones Jucar, Madri, 82) -, acho que essa é a chave da compreensão da importância do Roxy Music para o rock contemporâneo. O conceito Roxy, tal como foi formulado por Bryan Ferry, ataca o nó cultural daquela década obscura em muitas das suas variantes: consumo versus arte, melodia versus ruído, saída pessoal versus solução coletiva.
Bryan andou metido em uma escola de artes (foi aluno do pintor David Hamilton) antes de decidir que o rock era um suporte mais adequado para as suas aspirações estéticas. Descobriu isso por acaso - ele era crooner, por hobby, em uma banda soul de Newcastle, Inglaterra, por volta de 67. E sabia tocar o "bife", ou pouco mais, ao piano. Mudou para Londres. Comprou um piano (!). Suas exposições de pintura não foram muito bem-sucedidas, mas em 70 ele já tinha diversas composições, competentes o suficiente para não escandalizarem Andy Mackay, um novo amigo, saxofonista com trânsito na música experimental.
Com Mackay e um velho parceiro do grupo de soul, o baixista Graham Simpson, trabalharam o repertório enquanto experimentavam colaboradores: Dexter Lloyd; depois Paul Thompson na bateria, David OÕList (ex-Nice), depois Phil Manzanera para a guitarra. Mas o achado foi um jovem vanguardista, apaixonado pela eletrônica, que além do mais era a única pessoa conhecida capaz de tocar o sintetizador ("Meu Deus, o que é isso?!") que Mackay tinha comprado: Brian Eno.
Eis que, em 72, a EG Records e o letrista/produtor Peter Sinfield, recém-rompido com o King Crimson, resolvem lançá-los. Nesse meio tempo, as primárias canções de Ferry foram rearranjadas, reagindo magnificamente com suas letras cultas, entre o surreal, o irônico e o romântico. Da parte interna da capa do primeiro LP (por fora a modelo Kari-Ann se espalha numa colcha de cetim, sem um apelo sexual) cinco figuras exóticas, topetes pontudos, óculos de homem-mosca, jaquetas de oncinha, lançavam seu manifesto: re-faça, re-modele.
"Re-Make/Re-Model", a primeira faixa, começa com ruídos de festa. É esse o sentido da exuberância dos rapazes: celebração, e não bichice. O som evoca, freqüentemente, o rock dos anos 50. Mas este é um disco de idéias, mais do que música. O primeiro compacto, com a faixa "Virginia Plain", já tinha posto a banda em evidência. Os trinados de Ferry tratavam de uma de suas obsessões, o glamour do cinema hollywoodiano ("o real e confiável/é que Baby Jane está em Acapulco/e todos estamos voando para o Rio"), de um jeito provocador (Baby Jane Holzer foi estrela em alguns filmes underground de Andy Warhol). Sintetizador, sax e guitarra festejavam.
No LP, esses motivos estão expandidos. Além da profusão de efeitos eletrônicos futuristas, o trabalho de Eno no sintetizador amplia a noção de textura, até então pouco presente no rock. Os timbres de teclados, guitarras, sax (e oboé, o outro instrumento de Mackay) se combinam em camadas, se distribuem em solos rápidos, num certo sentido de música visual, gráfica.
Mas sobretudo é Mr. Ferry derramando-se em charme, ao piano, nos vocais brincalhões ou ressentidos, nas letras ricas em images, apaixonadas e apaixonantes - não fosse o nome Roxy inspirado naquelas salas de cinema onde se assistiam aos doces encontros e desencontros do amor. "Parece que foi ontem/que te vi pela primeira vez/É/Como podia esquecer um dia assim?" 




segunda-feira, 26 de setembro de 2016

FOTOGRAFIAS





Fotografias de Ricardo Silva

POBRINHO E LIMPINHO


por  Rogério Distéfano


CONFESSO, como Vinícius quanto ao casamento: fui, sou, sempre serei pobre. Ainda que tenha superado a condição no senso econômico-estatístico em alguns poucos salários-mínimos e no volume da cesta básica, sou pobre. Também pobre de espírito, no sentido bíblico, do vazio interior a ser preenchido por Deus; como não consigo, posso me dizer indigente, mendigo, um sem teto espiritual.

A pobreza está incorporada em minha alma, ainda que enalteça escola e a universidade públicas que me elevaram. Fosse hoje, estaria mais degraus abaixo, mesmo com o sistema de cotas para os excluídos. Tenho a pobreza nos ossos, refletida na quantidade de calças velhas e sapatos rengos, recalque da carência de infância e juventude com um par de cada um para enfrentar a vida e os elementos.

Ser pobre é sentimento agudo, dormente, surge quando não se espera. E dói, põe a vítima à margem, “a tropeçar no tapete das etiquetas”, como disse Fernando Pessoa. Produz a atitude negativa de manter distância dos (outros) pobres, que nos lembram quem fomos, o que somos, o que podemos voltar a ser. Recaí hoje nesse torvelinho de emoções ao deixar o cemitério, onde fui me despedir da amiga.

Cheguei lá de ônibus, passagem grátis da terceira idade. Na saída, generosidade dos ricos, um me oferece carona, carrão desses que valem o mesmo que apartamento de quatro quartos com suíte e garagem. No embarque olho a sola dos sapatos, pisei em cocô?; a cheirada discreta do sovaco, o desodorante não venceu?; a mão em concha na boca, mau hálito?. Menti um pretexto, tomei o ônibus da ida na volta.

Como fui reagir assim? A resposta veio em gestalt, sem raciocínio e arrazoado, da primeira fatia do inconsciente, encruzilhada do ego com o id: e se o gentil caronista não aguenta meu cheiro, põe os bofes para fora ao me entregar em casa? Não bastasse o recalque de pobre, adquiri o de fedido. De onde me surgiu isso?



domingo, 25 de setembro de 2016

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

FERNANDO PESSOA

Poema de Alberto Caeiro

Da minha aldeia vejo quando da terra se pode ver no Universo....
Por isso a minha aldeia é grande como outra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...

Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista a chave,
Escondem o horizonte, empurram nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a única riqueza é ver.


quarta-feira, 21 de setembro de 2016

BRISAL

Inverti as vogais do nome Brasil. Fica mais a cara do país, lugar onde o trabalho sério e honesto é coisa de otário : BRISAL, terra do ócio, mutreta e ladroagem.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

O MANUSCRITO DE SARAGOÇA

por  Sérgio Alpendre

Em 1994, Quentin Tarantino impressionou meio mundo cinematográfico com a narrativa não linear de ''Pulp Fiction - Tempo de Violência''. Longe de ser uma novidade, o diretor tem seus méritos: soube conjugar um espírito pop delicioso com a narrativa intrincada, utilizou muito bem John Travolta, que andava esquecido na época, e aproveitou-se de um tipo de humor cool, bem típico dos anos 1990.

Mas esse filme súmula parece de uma caretice tremenda quando comparado a ''O Manuscrito de Saragoça'', a obra-prima realizada pelo diretor polonês Wojciech Has em 1965. Isso se não resolvermos comparar com o recente ''A Origem'', de Christopher Nolan. A surra seria indescritível.

Sua narrativa manda Tarantino para o jardim da infância do cinema: dois oficiais inimigos encontram-se num casebre espanhol durante as guerras napoleônicas. Lá eles encontram o manuscrito do título, que faz com que as inimizades sejam esquecidas em favor da leitura atenta das histórias ali presentes.

Vamos, assim, para a história-base do filme, que acompanha um militar belga vivido pelo grande astro polonês Zbigniew Cybulski (de ''Cinzas e Diamantes'', o clássico de Andrej Wajda). Em sua jornada, ele encontra outros personagens, incluindo dois enforcados que costumam ressuscitar, duas irmãs que se amam e amam os homens lançando-os feitiços.

Conforme ele vai encontrando as pessoas, novas histórias surgem, e em determinado momento temos dificuldade de acompanhar em que camada estão as histórias, pois cada personagem no filme narra a sua, e elas frequentemente se encontram, numa multiplicação original dos pontos de vista (e é aí que Tarantino perde feio na comparação).

''O Manuscrito de Saragoça'' era adorado pelo diretor espanhol Luis Buñuel (de ''A Bela da Tarde''), que em sua autobiografia revelou: ''filme que vi três vezes, o que é excepcional''. Podemos entender o porquê. Com seu clima onírico, e suas histórias que se encavalam, se confundem e se estilhaçam durante as três horas de duração, é prato cheio para quem sempre contribuiu com a arte surrealista.

Os méritos do filme, entretanto, não param aí. Com movimentos de câmera esplendorosos, dignos dos grandes momentos de Max Ophuls (''Lola Montès''), Andrei Tarkovski (''Solaris'') e Kenji Mizoguchi (''O Intendente Sansho''), e uma fotografia impecável em preto e branco, é plasticamente tão belo que por vezes sentimos vontade de dar pausa no DVD para ficar admirando as composições e os cenários.



segunda-feira, 19 de setembro de 2016

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

FOTOGRAFIA

ROBERT CAPA

USA. Idaho. Sun Valley. October 1941. Gary Cooper

ISRAEL. Haifa. 1949-50. Arriving immigrants.

INDOCHINA (VIETNAM). May, 1954. Motorcyclists and woman walking on the road from Nam Dinh to Thai Binh.

CHINA. Hubei. Hankou. March, 1938. Young women being trained as Nationalist Chinese soldiers.

JOÃO CABRAL DE MELO NETO


Uma Faca só Lâmina


Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse um
vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

DISCOTECA BÁSICA

The Who
Quadrophenia (1971)

A maioria das pessoas vê o álbum de 1971 do The Who, Who’s Next, como uma obra-prima absoluta, mas para Pete Townshend, é apenas uma prova de que ele foi incapaz de realizar o sonho de completar o projeto absurdamente ambicioso dele, Lifehouse. Quando ele se recuperou do trauma da experiência, ele focou suas energias criativas em uma nova ópera rock sobre um jovem, fã de Who, chamado Jimmy, em 1964. Ele faz parte da cena Mod, mas nunca sentiu que conseguia se encaixar bem na família e no grupo de amigos. Ele embarca para Brighton, mas as coisas só pioram. Diferente de Tommy, a história de Quadrophenia é fácil de acompanhar e os jovens do mundo inteiro conseguem se identificar com a angústia de Jimmy. Não há nenhum single asboluto, como "Pinball Wizard", mas muitos dos fãs de Who o consideram o melhor trabalho do grupo. Nunca teria funcionado em um único álbum. Tem muita história para contar.



domingo, 11 de setembro de 2016

GRACILIANO, prefeito revolucionário



por Dênis de Moraes*

Em memória de Luiz B. Torres, solidário anfitrião em Palmeira.

O extraordinário legado de Graciliano Ramos, cujos 124 anos de nascimento serão comemorados em 27 de outubro, extrapola os limites da literatura e alcança a sua trajetória como homem público. Detenho-me aqui no prefeito de Palmeira dos Índios (1928-1930), sem deixar de mencionar o êxito de seus períodos seguintes como presidente da Imprensa Oficial (1930-1932) e diretor da Instrução Pública do Estado de Alagoas (1933-1936). Foi um prefeito revolucionário. Além de ter impulsionado a modernização da cidade, governou em sintonia com seus princípios ético-políticos. Pôs fim à corrupção e ao clientelismo; aplicou o avançado Código de Posturas, cortando privilégios das elites, que passaram a ter que cumprir as mesmas exigências de qualquer cidadão; e desfez a lógica aristocrática de seus antecessores, direcionando a maior parte do investimentos para áreas pobres e abrindo as portas da prefeitura a qualquer cidadão.

Graciliano foi eleito com 433 votos no pleito de 7 de outubro de 1927. Não teve adversário. Aceitou concorrer depois de muito hesitar, sendo afinal convencido por amigos de diferentes grupos políticos de que, por sua honradez, era o único nome de consenso. Não participou da campanha eleitoral, não fez promessas nem se envolveu em composições políticas para a escolha dos conselheiros municipais (vereadores).

O novo prefeito herdou uma massa praticamente falida. Havia 105 mil-réis nos cofres municipais, o que mal dava para cobrir a folha de pagamento dos servidores. Era preciso pôr ordem na casa. Ele instruiu os fiscais a cobrar os impostos com rigor. As dívidas atrasadas teriam de ser pagas imediatamente, sob pena de execução judicial. E as isenções fiscais, que beneficiavam grandes proprietários, comerciantes abastados e chefes políticos, perderam validade.

Passou a controlar com mão de ferro o registro geral de despesas da Prefeitura, tendo como critério básico não gastar mais do que se arrecadava. Ele próprio anotava, à tinta, a finalidade do gasto, a quantia paga e o nome do beneficiado – como se pode constatar no livro contábil exposto na Casa Museu Graciliano Ramos, em Palmeira dos Índios.

Uma das primeiras vitórias do prefeito foi a aprovação, pelo Conselho Municipal, do Código de Posturas, calhamaço com 82 artigos que disciplinava costumes e estabelecia novo marco civilizatório na cidade. As medidas previstas no Código regulamentavam direitos e deveres dos cidadãos e do poder público. Eis alguns: animais não poderiam andar soltos nas ruas; os comerciantes eram impedidos de açambarcar mercadorias de primeira necessidade em época de carestia; os farmacêuticos, proibidos de vender determinados remédios sem receita médica; os hoteleiros, obrigados a ter em ordem o livro de hóspedes e a afixar a tabela de preços em locais visíveis; o comércio não poderia funcionar além das 21 horas nem abrir aos feriados e fins de semana; açougueiros não poderiam vender carne de rês doente e teriam de passar a recolher impostos. O Código estabelecia advertências e, em caso de reincidência, pesadas multas aos infratores.

Palmeira dos Índios não fugia ao figurino de cidades pequenas do Agreste, onde o poder das oligarquias se sobrepunha ao interesse coletivo e às normas vigentes. Graciliano não se amedrontou e fez cumprir a lei, mesmo desgastando-se junto aos grupos políticos dominantes na região. Cobrava resultados dos auxiliares e não hesitava em substituir ocupantes de cargos de confiança que vacilassem, inclusive os que havia mantido a pedido de seus apoiadores na campanha eleitoral de 1927.

Graciliano determinou a limpeza de ruas e logradouros públicos, onde proliferavam animais vadios, lixo acumulado, lama e detritos. Os donos de cães e porcos, acostumados a deixá-los à solta, tomaram um susto quando os animais começaram a ser recolhidos. Mas resistiram, libertando novamente os animais. O prefeito ordenou que todos os bichos encontrados nas ruas fossem mortos, e que se multasse quem reincidisse. Ao saber que Sebastião Ramos não acatara a ordem, mandou o fiscal multá-lo. Magoado, o pai teve de ouvir uma admoestação:

– Prefeito não tem pai. Eu posso pagar sua multa. Mas terei de apreender seus animais toda vez que o senhor os deixar na rua.

Em uma cidade de hábitos arraigados, essas ações moralizadoras despertaram logo lamúrias e incompreensões. Em carta à sua mulher, Heloísa de Medeiros Ramos, que se encontrava em Maceió, queixou-se dos dissabores:

“Para os cargos de administração municipal escolhem de preferência os imbecis e os gatunos. Eu, que não sou gatuno, que tenho na cabeça uns parafusos de menos, mas não sou imbecil, não dou para o ofício e qualquer dia renuncio”.

Até cartas anônimas com ameaças foram colocadas embaixo da porta da loja Sincera. Mas ele não cedeu às pressões. Sua firmeza foi colocada à prova durante a construção da Estrada para Palmeira de Fora. Os operários esbarraram na disposição de um fazendeiro de não permitir obras em suas terras. O prefeito compareceu ao local e mandou cortar as roças de milho. De nada valeram os protestos do latifundiário.

– Seu milho ia dar aqui a noventa dias, mas o senhor já o colheu agora. Vá à prefeitura receber o seu dinheiro.

Se de um lado a sua postura desassombrada contrariava interesses sedimentados, por outro ganhava a simpatia da gente comum, pelas obras realizadas. Construiu três escolas nos povoados de Serra da Mandioca, Anum e Canafístula; abriu um posto de saúde; acabou com a imundície provocada pelo abate de gado miúdo no pátio da feira, instalando um abatedouro na cidade; aterrou a área que separava a cidade do bairro da Lagoa, facilitando a locomoção da periferia ao centro.

Um de seus orgulhos era a estrada ligando o centro do município a Palmeira de Fora, com oito metros de largura. Ao deixar a prefeitura, entregou trinta dos setenta quilômetros do prolongamento até Santana do Ipanema. Mesmo sem ter completado o projeto, calou a boca da oposição ao apresentar o balanço dos gastos: enquanto o Estado gastava, por quilômetro construído, quatro contos de réis, ele fazia a estrada – com as mesmas dimensões – investindo apenas a metade.

Com os presos da cadeia pública, não seria menos rigoroso. Para acabar com a ociosidade no xadrez, decidiu convocá-los para trabalhar na estrada de Palmeira de Fora para Santana do Ipanema. “Eu prendia os vagabundos, obrigava-os a trabalhar. E consegui fazer um pedaço de estrada e uma terraplenagem difícil”, contaria ele em 1948.

As atitudes decididas davam-lhe credibilidade junto à população mais pobre, que simpatizava com seu modo de administrar informal e pela acolhida aos pleitos apresentados. Saía cedo para vistoriar obras; recebia qualquer pessoa em seu gabinete, sem hora marcada; e mantinha o hábito de conversar com amigos e antigos frequentadores da sua loja de tecidos Sincera.

O clímax do mandato foram os dois relatórios de prestações de contas que Graciliano enviou, nos meses de janeiro de 1929 e 1930, ao governador de Alagoas, Álvaro Paes. Em nada reproduziam os sonolentos documentos do gênero. Com ousadia estilística, Graciliano apoiava-se em linguagem coloquial e envolvente, com ironia às vezes corrosiva, e sempre “traído” pelo talento literário na construção de imagens. Ao mesmo tempo, era conciso e convincente na descrição de providências, resultados e dificuldades, como neste parágrafo do segundo relatório:

“Arrecadei mais de dois contos de réis de multas. (…) As infrações que produziram soma considerável para um orçamento exíguo referem-se a prejuízos individuais e foram denunciadas pelas pessoas ofendidas, de ordinário gente miúda, habituada a sofrer a opressão dos que vão trepando. Esforcei-me por não cometer injustiças. Isto não obstante, atiraram as multas contra mim como arma política. Com inabilidade infantil, de resto. Se eu deixasse em paz o proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em pasto a lavoura, devia enforcar-me.”

Depois de sublinhar que as finanças estavam saneadas e a arrecadação crescera 50%, indicou avanços consideráveis em outros setores:

“Favoreci a agricultura livrando-a dos bichos criados à toa; ataquei as patifarias dos pequeninos senhores feudais, exploradores da canalha; suprimi, nas questões rurais, a presença de certos intermediários, que estragavam tudo; facilitei o transporte; estimulei as relações entre o produtor e o consumidor, Estabeleci feiras em cinco aldeias. 1:156$750 foram-se em reparos nas ruas de Palmeira de Fora. Canafístula era um chiqueiro. Encontrei lá o ano passado mais de cem porcos misturados com gente. Nunca vi tanto porco. Desapareceram. E a povoação está quase limpa. Tem mercado semanal, estrada de rodagem e uma escola.”

Como se não bastassem os embates para dignificar a gestão pública, Graciliano concluiu o segundo ano de mandato enfrentando problemas com a loja Sincera. A crise de 1929 arrastara o país à bancarrota, fazendo ruir os alicerces da economia cafeeira. Em Palmeira dos Índios, as colheitas quebraram, as mercadorias sumiram das prateleiras das lojas que não tinham como repô-las, o poder aquisitivo diminuíra a olhos vistos. A Sincera naufragava em dívidas. As agruras financeiras acumulavam-se na medida em que ele ganhava subsídios simbólicos como prefeito e não se locupletava com a corrupção.

Em março de 1930, o governador Álvaro Paes, seu amigo, convidou-o a assumir a direção da Imprensa Oficial do Estado, em Maceió. Desde que lera o primeiro relatório, Paes tencionava chamá-lo para colaborar com seu governo, impressionado com a austeridade à frente da prefeitura.

Pelo estilo inusitado, a primeira prestação de contas de Graciliano, publicada no Diário Oficial, causaria sensação. Para o Jornal de Alagoas, tratava-se de “documento dos mais expressivos e interessantes”. Em uma reação em cadeia, outros periódicos alagoanos – O Semeador e o Correio da Pedra – o transcreveram. Os ecos chegaram ao Rio de Janeiro. O Jornal do Brasil e A Esquerdapublicaram trechos, chamando a atenção do editor e poeta Augusto Frederico Schmidt para o escritor que se ocultava por trás do prefeito interiorano. Schimidt acabaria publicando o primeiro romance de Graciliano, Caetés, em 1933.

O segundo relatório, também noticiado em jornais de Maceió e do Rio, foi publicado no Diário Oficial com uma mensagem de louvor do governador: “A administração de Palmeira dos Índios continua a oferecer um exemplo de trabalho e honestidade, que coloca o município em uma situação de destaque”.

Graciliano aceitou o convite de Álvaro Paes, renunciando à Prefeitura de Palmeira dos Índios em 30 de abril de 1930. “Houve quem tivesse comemorado a sua saída. Eram pessoas que tiveram interesses contrariados, porque ele não fazia cambalachos, nem dispensava multa de ninguém”, relembraria um dos mais antigos moradores da cidade, José Tobias de Almeida.

Em questão de semanas, Graciliano liquidou o estoque para fazer caixa e vendeu a loja. Dos vinte contos de réis arrecadados, dezoito foram para pagar as dívidas. Empobrecera nos 27 meses como prefeito.

*Dênis de Moraes é doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-doutor pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (Clacso). Atualmente, é professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador do CNPq e da Faperj. É autor e organizador de mais de vinte livros, dos quais oito foram editados no exterior (Argentina, Espanha, Cuba e México). Além de O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos, publicou três biografias de intelectuais e artistas de esquerda: Vianinha, cúmplice da paixão: uma biografia de Oduvaldo Vianna Filho, O rebelde do traço: a vida de Henfil e, com Francisco Viana, Prestes: lutas e autocríticas.

SOLDA

CÁUSTICO



SOLDA CÁUSTICO: http://cartunistasolda.com.br/

sábado, 10 de setembro de 2016

O HOMEM INVISÍVEL

The invisible man, 1933, Universal Pictures, 71min. 
Direção: James Whale. Fotografia: R.C. Sheriff, romance de H.G. Wells. Fotografia: Arthur Edeson. Montagem: Ted Kent. Música: Heinz Roemheld. Direção de arte: Charles D. Hall. Produção: Carl Laemmle Jr.. Elenco: Claude Rains, Gloria Stuart, William Harrigan, Henry Travers, Una O'Connor. Estreia: 13/11/33
Quando recebeu o convite da Universal para adaptar o romance “O homem invisível”, de H.G. Wells, o roteirista R.C. Sherriff tomou um susto: depois de ler o livro (um clássico da ficção científica já no início dos anos 30), percebeu que todas as 14 (!!) tentativas de adaptação feitas antes que ele assinasse contrato fugiam radicalmente da história original. Não que os criativos roteiristas anteriores mudassem um nome ou outro ou alterassem o desfecho da trama: eles simplesmente chegavam ao extremo de transferir a narrativa para cenários e tempos absolutamente díspares, como a Rússia czarista e Marte. Decidido a escrever uma adaptação com o máximo possível de fidelidade, Sherriff acabou por atingir um nível de excelência admirável. Dirigido por James Whale – de “Frankenstein” – com sua habitual inteligência, “O homem invisível” é um dos mais interessantes produtos do estúdio em sua fase de lucrar com histórias de monstros.
Contado com um insuspeito senso de humor que muitas vezes disfarça o tom bem mais violento e cruel do que as histórias que fizeram a glória do estúdio nos anos 30 – como “Drácula” e “Frankenstein” – “O homem invisível” já começa surpreendendo o público, acostumado a histórias de cientistas malucos que vão enlouquecendo aos poucos: logo de cara o protagonista, Jack Griffin (Claude Rains), chega a uma hospedaria no interior dos EUA e exige privacidade em sua estadia. Vestido com roupas de inverno, óculos escuros e bandagens, ele desperta a curiosidade dos donos do lugar, mas não demora a deixar claro os motivos de sua discrição. Em uma cena cujos efeitos especiais não deixam nada a desejar à tecnologia de hoje, Griffin revela sua invisibilidade aos atônitos frequentadores do local – que, chocados, entram em contato com a polícia, que passam a caçar o cientista.
É só então que o público irá começar a entender os motivos que levaram Griffin à situação em que se encontra. Como não poderia deixar de ser em histórias sobre cientistas malucos que desde sempre povoam a literatura e o cinema, o roteiro de Sheriff mostra o protagonista como vítima dos inesperados efeitos colaterais de uma experiência que não apenas o deixa invisível (e por consequência afeta drasticamente sua psique) como o joga em rota de colisão com seu sócio/rival, Arthur Kemp (William Harrigan) - um homem que aproveita a situação para livrar-se do homem que lhe impede o acesso à mulher que ama, Flora Cranley (Gloria Stuart, que mais de sessenta anos depois, voltaria a conhecer a fama ao ser indicada ao Oscar de coadjuvante por "Titanic", de James Cameron). Apaixonado por Flora, Arthur será o responsável por colocar a polícia e a população atrás de Griffin, em uma perseguição com consequências trágicas e brutais.
Mesclando com equilíbrio raro a comédia física e um suspense que vai se acentuando gradualmente, James Whale faz um filme ainda melhor do que sua mais famosa obra, “Frankenstein” (31). Contando com a atuação impressionante de Claude Rains em seu primeiro papel no cinema falado, Whale conduz sua narrativa de forma a jamais deixar que a plateia antecipe o que virá pela frente. A forma com que o roteiro transforma Griffin de vilão em anti-herói é brilhante (quando ele começa a ser caçado sem piedade fica difícil não torcer por sua fuga) e o clímax do filme é dos mais empolgantes do gênero - isso sem falar que Jack Griffin é um vilão dos mais excitantes dos filmes da Universal, já que não hesita em matar qualquer um que atrapalhe seus planos, como mostra a impressionante sequência de um desastre de trem (realizada, vale lembrar, antes do advento dos efeitos digitais).
Realizado com elegância e sutileza por um James Whale no auge da criatividade, “O homem invisível” se beneficia – e muito – do talento de Claude Rains, que abre mão da vaidade ao interpretar um personagem de quem só se conhece a voz até os minutos finais de projeção: amparado por ótimos efeitos visuais, Rains consegue transmitir todas as nuances de seu personagem através da modulação da voz, um desafio que cumpre com louvor. É Rains a alma do filme – já que o corpo, obviamente, não é visto até o desfecho – e faz dele um dos melhores do pacote de monstros da Universal.


quarta-feira, 7 de setembro de 2016

THE FACES

The Faces play 'Love In Vain' by Robert Johnson with slide guitar by Ronnie Wood using his 'Dan Armstrong Clear'. Recorded on 26th October 1971: London, Paris Theatre.

O LIVRO


por  Jorge Luís Borges


Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, indubitavelmente, o livro. Os outros são extensões do seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões da vista; o telefone é o prolongamento da voz; seguem-se o arado e a espada, extensões do seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação.

Em «César e Cleópatra» de Shaw, quando se fala da biblioteca de Alexandria, diz-se que ela é a memória da humanidade. O livro é isso e também algo mais: a imaginação. Pois o que é o nosso passado senão uma série de sonhos? Que diferença pode haver entre recordar sonhos e recordar o passado? Tal é a função que o livro realiza.

(…) Se lemos um livro antigo, é como se lêssemos todo o tempo que transcorreu até nós desde o dia em que ele foi escrito. Por isso convém manter o culto do livro. O livro pode estar cheio de coisas erradas, podemos não estar de acordo com as opiniões do autor, mas mesmo assim conserva alguma coisa de sagrado, algo de divino, não para ser objecto de respeito supersticioso, mas para que o abordemos com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria.

THE FREAK BROTHERS

by  Gilbert Shelton







terça-feira, 6 de setembro de 2016

ME TORTURA, SÓ UM POUQUINHO

ZÉ DA SILVA

Matador de policiais, era frio, calculista e ruim, muito ruim. Matava por prazer. Sua justificativa é que não gostava dos defensores da lei que se vestiam com uniformes iguais. Um grupo de elite foi criado para caçá-lo e matá-lo. O assassino também era mulherengo. Caiu numa armadilha, algemaram a fera e o levaram para um local distante onde seria executado. O comando da operação era de uma oficial linda, daquelas de fechar o comércio, como se dizia antigamente. O assassino, ao vê-la de perto, perguntou se podia fazer o tradicional último pedido. Ela consentiu. Ele: “Me tortura um pouquinho antes de me mandar para o inferno?”


BLOG DO ZÉ BETO:http://www.zebeto.com.br/ze-da-silva-62/#.V88nyPkrKUk

MOVIE STAR

MARILYN MONROE




domingo, 4 de setembro de 2016

BERNARDO VILHENA

Tira teima


Tire a faca do peito
e o medo dos olhos
Ponha uns óculos escuros
e saia por aí. Dando bandeira

Tire o nó da garganta
que a palavra corre fácil
sem desculpas nem contornos
Direta: do diafragma ao céu da boca

Tire o trinco da porta
liberte a corrente de ar
Deixe os bons ventos levantarem a poeira
levando o cisco ao olho grande

Tire a sorte na esquina
na primeira cigana ou no velho realejo
Leia o horóscopo e olhe o céu
lembre-se das estrelas e da estrada
Tire o corpo da reta
e o cu da seringa
que malandro é você, rapaz
o lado bom da faca é o cabo

Tire a mulher mais bonita
pra dançar e dance
Dance olhando dentro dos olhos
até que ela morra de vergonha

Tire o revólver e atire
a primeira pedra
a última palavra
a praga e a sorte
a peste, ou o vírus?


quinta-feira, 1 de setembro de 2016

SOLDA

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SÉRGIO SAMPAIO

Inquietante e Enigmático

por Rodrigo Moreira

Sérgio Moraes Sampaio foi um cantor e compositor brasileiro, nascido em Cachoeiro de Itapemirim (Espírito Santo) em 13 de abril de 1947 e falecido no Rio de Janeiro em 15 de maio de 1994.

A trajetória errática do capixaba Sérgio Sampaio sempre desafiou explicações. Depois de sacudir o país em 1972 com a marcha-rancho “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua” – um sucesso estrondoso, que realmente marcou época –, o compositor viu pouco a pouco sua carreira estagnar. Difícil de entender porque um artista de evidente talento – melodista sensível, poeta inspirado, expressivo cantor, violonista competente – acabou por não alcançar, em seu tempo, a popularidade e o prestígio devidos. Há quem diga que o sucesso foi da música, não do cantor e compositor – uma análise um tanto simplista, mas não desprovida de um certo fundo de verdade.

Nascido em 1947, em Cachoeiro de Itapemirim, sul do Espírito Santo, filho de Raul Gonçalves Sampaio, maestro de banda e compositor, e de Maria de Lourdes Moraes, professora primária, Sérgio Sampaio recebeu do pai as primeiras influências musicais, tendo curtido na adolescência grande paixão pelo repertório seresteiro de Orlando Silva, Sílvio Caldas e Nelson Gonçalves. Em 1967, enamorado da ebulição cultural do Rio de Janeiro, foi para lá em busca de um lugar no céu estrelado da MPB. Atuou por dois anos como locutor de rádio nas AMs cariocas, enquanto desenvolvia também o seu trabalho musical. Em fins de 1970, foi descoberto acidentalmente pelo produtor Raul Seixas, quando acompanhava ao violão um aspirante a cantor, num teste na gravadora CBS.

Contratado pela CBS, Sérgio fez sua estréia, em meados de 1971, com o compacto “Coco Verde/Ana Juan”, produzido por Raul. Meses depois, Raul, Sérgio e mais Míriam Batucada e Edy Star gravaram o polêmico disco “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das Dez”, que causou grande celeuma na CBS. Uma verdadeira sessão de escracho, com paródias e pastiches musicais temperadas com um humor corrosivo, esse trabalho trazia algumas parcerias de Sérgio e Raul, como o xote elétrico “Quero ir” e o acid rock “Doutor Pacheco”. No mesmo ano, o artista defendeu no V FIC sua composição “Ano 83”, que permanece inédita em disco.
Em 1972, já integrando o elenco da Phillips/Phonogram, Sérgio apresentou no sétimo e último FIC a marcha-rancho “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”. Mesmo não tendo sido a vencedora, a música foi o maior sucesso do evento. O compacto lançado a seguir venderia cerca de 500 mil unidades. Em meio ao êxito avassalador da música, Sampaio, jovem e sem dispor ainda de uma estrutura profissional sólida, adotou uma postura arredia frente ao intenso assédio da mídia, o que acabaria lhe custando a fama de artista “temperamental” e “difícil”.

Em março de 1973 foi lançado seu primeiro LP, que levou o título de seu maior sucesso. Embora trazendo sambas de apelo popular (“Cala a Boca, Zebedeu”, de autoria de seu pai, e “Odete”) e incursões personalíssimas pela música pop (“Leros e Leros e Boleros”, “Eu Sou Aquele Que Disse”), o disco teve uma vendagem modesta, além de ser recebido pela crítica com desapontamento notável. Mais à frente, sua composição “Quatro Paredes” foi gravada parcialmente por Maria Bethânia, encaixada num pot-pourri no disco “A Cena Muda”.

No início de 1974 saiu o compacto “Meu Pobre Blues / Foi Ela”. A primeira, uma dúbia elegia ao conterrâneo Roberto Carlos, de letra desconcertante, alcançou boa repercussão. Foi sua despedida da Phillips. Ele só retornaria à cena musical em 1975, já na gravadora Continental, lançando o compacto “Velho Bandido / O Teto da Minha Casa”, com boa aceitação popular e críticas muito favoráveis. Ainda em 1975, a irônica marchinha “Cantor de Rádio”, onde o artista alfinetava a indústria musical, foi incluída no LP “Convocação Geral nº 2”, da Som Livre.

Em 1976, Sérgio lançou seu segundo LP, “Tem Que Acontecer”, considerado por muitos seu melhor trabalho. Com produção de Roberto Moura e arranjos do violonista João de Aquino, no disco brilhavam instrumentistas como Altamiro Carrilho (flauta), Abel Ferreira (clarinete) e Joel Nascimento (bandolim).Sérgio aliava o vigor interpretativo e poético dos primeiros anos a uma maior maturidade como compositor, em obras bem acabadas, como o amargo samba “Até Outro Dia”, o samba-canção “Velho Bode” (em parceria com Sérgio Natureza), o fox “Que Loucura” (uma letra em homenagem ao poeta tropicalista Torquato Neto) e a faixa-título. O disco foi bem recebido junto à crítica mas não alcançou o sucesso esperado.

Em meados de 1977, ainda na Continental, Sérgio Sampaio lançou mais um compacto, “Ninguém Vive Por Mim / História de Boêmio (Um Abraço em Nelson Gonçalves)”. A primeira, um pop altamente suingado, foi bem executada nas rádios, apesar da letra cáustica, novamente enfocando a difícil relação do compositor com a indústria do disco. Foi o derradeiro trabalho de Sampaio por uma gravadora oficial. Dali em diante, já arrolado entre os “malditos” da MPB, ele seria um artista independente, sem gravadora e sem música no rádio, vivendo apenas de shows eventuais para um séquito fiel de admiradores em todo o país.

Em 1981, Erasmo Carlos gravou em seu LP “Mulher” a canção “Feminino Coração de Deus”, composta por Sérgio especialmente para ele. No ano seguinte, Sampaio lançou o disco independente “Sinceramente”. Como o título sugeria, um trabalho de grande desnudamento pessoal do compositor. No entanto, mais uma vez a repercussão foi pequena, a despeito da qualidade de canções como “Nem Assim”, “Tolo Fui Eu” e “Essa Tal de Mentira”. O disco trazia também o samba “Doce Melodia”, onde o homenageado Luiz Melodia terçava vozes com Sérgio.

Durante os anos 80, o artista viveu praticamente no limbo profissional, com escassos shows em bares a minguados cachês. Em seus longos retiros em sua cidade natal, porém, ele compunha sempre e cada vez melhor. Suas melodias se tornaram mais elaboradas, ao mesmo tempo conservando seu despojamento tão característico. Passou a criar harmonias com maior esmero e sua poesia atingiu o perfeito balanço entre lirismo, humor, perspicácia e concisão.

Nos longos anos em que esteve relegado ao acostamento da cena musical, Sérgio apresentou-se quase sempre sozinho com seu violão, maturando sua performance ao máximo. De um balaio de cerca de 50 canções que ele mostrava nessas apresentações, ele escolheria o repertório do cd “Cruel”, que seria produzido pela gravadora paulista Baratos Afins em 1994, e que marcaria a volta deSérgio ao disco, projeto abortado pela morte do artista, em maio daquele ano, ocasionada por uma crise de pancreatite.

Mesmo hoje, tantos anos após sua morte, Sérgio Sampaio continua a ser um dos artistas mais verdadeiros, inquietantes e enigmáticos da história da MPB.


DISCOGRAFIA


1973 - Eu quero é botar meu bloco na rua

1. Lero e leros e boleros
2. Filme de terror
3. Cala a boca Zébedeu
4. Pobre meu pai
5. Labirintos negros
6. Eu sou aquele que disse
7. Viajei de trem
8. Não tenha medo, não (rua Moreira, 65)
9. Dona Maria de Lourdes
10. Odete
11. Eu quero é botar meu bloco na rua
12 Raulzito Seixas

1976 - Tem que acontecer

1. Até outro dia
2. Que loucura
3. Cada lugar na sua coisa
4. Cabras pastando
5. Velho bode
6. O que pintar, pintou
7. A luz e a semente
8. Quanto mais
9. Tem que acontecer
10. Quatro paredes
11. Filho do ovo
12. Velho bandido

1982 - Sinceramente

1. Homem de trinta
2. Na captura
3. Tolo fui eu
4. Só para o seu coração
5. Essa tal de mentira
6. Meu filho, minha filha
7. Cabra cega
8. Sinceramente
9. Nem assim
10. Doce melodia (com Luiz Melodia)
11. Faixa seis

2006 - Cruel

1. Em nome de Deus
2. Roda morta (reflexões de um executivo)
3. Polícia, bandido, cachorro e dentista
4. Brasília
5. Magia pura
6. Rosa púrpura de Cubatão
7. Muito além do jardim
8. Real beleza
9. Pavio do destino
10. Quero encontrar um amor
11. Quem é do amor
12. Cruel
13. Quem é do amor
14. Maiúsculo


*Rodrigo Moreira é o autor da biografia Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua – Edições Muiraquitã, 2000