domingo, 11 de setembro de 2016

GRACILIANO, prefeito revolucionário



por Dênis de Moraes*

Em memória de Luiz B. Torres, solidário anfitrião em Palmeira.

O extraordinário legado de Graciliano Ramos, cujos 124 anos de nascimento serão comemorados em 27 de outubro, extrapola os limites da literatura e alcança a sua trajetória como homem público. Detenho-me aqui no prefeito de Palmeira dos Índios (1928-1930), sem deixar de mencionar o êxito de seus períodos seguintes como presidente da Imprensa Oficial (1930-1932) e diretor da Instrução Pública do Estado de Alagoas (1933-1936). Foi um prefeito revolucionário. Além de ter impulsionado a modernização da cidade, governou em sintonia com seus princípios ético-políticos. Pôs fim à corrupção e ao clientelismo; aplicou o avançado Código de Posturas, cortando privilégios das elites, que passaram a ter que cumprir as mesmas exigências de qualquer cidadão; e desfez a lógica aristocrática de seus antecessores, direcionando a maior parte do investimentos para áreas pobres e abrindo as portas da prefeitura a qualquer cidadão.

Graciliano foi eleito com 433 votos no pleito de 7 de outubro de 1927. Não teve adversário. Aceitou concorrer depois de muito hesitar, sendo afinal convencido por amigos de diferentes grupos políticos de que, por sua honradez, era o único nome de consenso. Não participou da campanha eleitoral, não fez promessas nem se envolveu em composições políticas para a escolha dos conselheiros municipais (vereadores).

O novo prefeito herdou uma massa praticamente falida. Havia 105 mil-réis nos cofres municipais, o que mal dava para cobrir a folha de pagamento dos servidores. Era preciso pôr ordem na casa. Ele instruiu os fiscais a cobrar os impostos com rigor. As dívidas atrasadas teriam de ser pagas imediatamente, sob pena de execução judicial. E as isenções fiscais, que beneficiavam grandes proprietários, comerciantes abastados e chefes políticos, perderam validade.

Passou a controlar com mão de ferro o registro geral de despesas da Prefeitura, tendo como critério básico não gastar mais do que se arrecadava. Ele próprio anotava, à tinta, a finalidade do gasto, a quantia paga e o nome do beneficiado – como se pode constatar no livro contábil exposto na Casa Museu Graciliano Ramos, em Palmeira dos Índios.

Uma das primeiras vitórias do prefeito foi a aprovação, pelo Conselho Municipal, do Código de Posturas, calhamaço com 82 artigos que disciplinava costumes e estabelecia novo marco civilizatório na cidade. As medidas previstas no Código regulamentavam direitos e deveres dos cidadãos e do poder público. Eis alguns: animais não poderiam andar soltos nas ruas; os comerciantes eram impedidos de açambarcar mercadorias de primeira necessidade em época de carestia; os farmacêuticos, proibidos de vender determinados remédios sem receita médica; os hoteleiros, obrigados a ter em ordem o livro de hóspedes e a afixar a tabela de preços em locais visíveis; o comércio não poderia funcionar além das 21 horas nem abrir aos feriados e fins de semana; açougueiros não poderiam vender carne de rês doente e teriam de passar a recolher impostos. O Código estabelecia advertências e, em caso de reincidência, pesadas multas aos infratores.

Palmeira dos Índios não fugia ao figurino de cidades pequenas do Agreste, onde o poder das oligarquias se sobrepunha ao interesse coletivo e às normas vigentes. Graciliano não se amedrontou e fez cumprir a lei, mesmo desgastando-se junto aos grupos políticos dominantes na região. Cobrava resultados dos auxiliares e não hesitava em substituir ocupantes de cargos de confiança que vacilassem, inclusive os que havia mantido a pedido de seus apoiadores na campanha eleitoral de 1927.

Graciliano determinou a limpeza de ruas e logradouros públicos, onde proliferavam animais vadios, lixo acumulado, lama e detritos. Os donos de cães e porcos, acostumados a deixá-los à solta, tomaram um susto quando os animais começaram a ser recolhidos. Mas resistiram, libertando novamente os animais. O prefeito ordenou que todos os bichos encontrados nas ruas fossem mortos, e que se multasse quem reincidisse. Ao saber que Sebastião Ramos não acatara a ordem, mandou o fiscal multá-lo. Magoado, o pai teve de ouvir uma admoestação:

– Prefeito não tem pai. Eu posso pagar sua multa. Mas terei de apreender seus animais toda vez que o senhor os deixar na rua.

Em uma cidade de hábitos arraigados, essas ações moralizadoras despertaram logo lamúrias e incompreensões. Em carta à sua mulher, Heloísa de Medeiros Ramos, que se encontrava em Maceió, queixou-se dos dissabores:

“Para os cargos de administração municipal escolhem de preferência os imbecis e os gatunos. Eu, que não sou gatuno, que tenho na cabeça uns parafusos de menos, mas não sou imbecil, não dou para o ofício e qualquer dia renuncio”.

Até cartas anônimas com ameaças foram colocadas embaixo da porta da loja Sincera. Mas ele não cedeu às pressões. Sua firmeza foi colocada à prova durante a construção da Estrada para Palmeira de Fora. Os operários esbarraram na disposição de um fazendeiro de não permitir obras em suas terras. O prefeito compareceu ao local e mandou cortar as roças de milho. De nada valeram os protestos do latifundiário.

– Seu milho ia dar aqui a noventa dias, mas o senhor já o colheu agora. Vá à prefeitura receber o seu dinheiro.

Se de um lado a sua postura desassombrada contrariava interesses sedimentados, por outro ganhava a simpatia da gente comum, pelas obras realizadas. Construiu três escolas nos povoados de Serra da Mandioca, Anum e Canafístula; abriu um posto de saúde; acabou com a imundície provocada pelo abate de gado miúdo no pátio da feira, instalando um abatedouro na cidade; aterrou a área que separava a cidade do bairro da Lagoa, facilitando a locomoção da periferia ao centro.

Um de seus orgulhos era a estrada ligando o centro do município a Palmeira de Fora, com oito metros de largura. Ao deixar a prefeitura, entregou trinta dos setenta quilômetros do prolongamento até Santana do Ipanema. Mesmo sem ter completado o projeto, calou a boca da oposição ao apresentar o balanço dos gastos: enquanto o Estado gastava, por quilômetro construído, quatro contos de réis, ele fazia a estrada – com as mesmas dimensões – investindo apenas a metade.

Com os presos da cadeia pública, não seria menos rigoroso. Para acabar com a ociosidade no xadrez, decidiu convocá-los para trabalhar na estrada de Palmeira de Fora para Santana do Ipanema. “Eu prendia os vagabundos, obrigava-os a trabalhar. E consegui fazer um pedaço de estrada e uma terraplenagem difícil”, contaria ele em 1948.

As atitudes decididas davam-lhe credibilidade junto à população mais pobre, que simpatizava com seu modo de administrar informal e pela acolhida aos pleitos apresentados. Saía cedo para vistoriar obras; recebia qualquer pessoa em seu gabinete, sem hora marcada; e mantinha o hábito de conversar com amigos e antigos frequentadores da sua loja de tecidos Sincera.

O clímax do mandato foram os dois relatórios de prestações de contas que Graciliano enviou, nos meses de janeiro de 1929 e 1930, ao governador de Alagoas, Álvaro Paes. Em nada reproduziam os sonolentos documentos do gênero. Com ousadia estilística, Graciliano apoiava-se em linguagem coloquial e envolvente, com ironia às vezes corrosiva, e sempre “traído” pelo talento literário na construção de imagens. Ao mesmo tempo, era conciso e convincente na descrição de providências, resultados e dificuldades, como neste parágrafo do segundo relatório:

“Arrecadei mais de dois contos de réis de multas. (…) As infrações que produziram soma considerável para um orçamento exíguo referem-se a prejuízos individuais e foram denunciadas pelas pessoas ofendidas, de ordinário gente miúda, habituada a sofrer a opressão dos que vão trepando. Esforcei-me por não cometer injustiças. Isto não obstante, atiraram as multas contra mim como arma política. Com inabilidade infantil, de resto. Se eu deixasse em paz o proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em pasto a lavoura, devia enforcar-me.”

Depois de sublinhar que as finanças estavam saneadas e a arrecadação crescera 50%, indicou avanços consideráveis em outros setores:

“Favoreci a agricultura livrando-a dos bichos criados à toa; ataquei as patifarias dos pequeninos senhores feudais, exploradores da canalha; suprimi, nas questões rurais, a presença de certos intermediários, que estragavam tudo; facilitei o transporte; estimulei as relações entre o produtor e o consumidor, Estabeleci feiras em cinco aldeias. 1:156$750 foram-se em reparos nas ruas de Palmeira de Fora. Canafístula era um chiqueiro. Encontrei lá o ano passado mais de cem porcos misturados com gente. Nunca vi tanto porco. Desapareceram. E a povoação está quase limpa. Tem mercado semanal, estrada de rodagem e uma escola.”

Como se não bastassem os embates para dignificar a gestão pública, Graciliano concluiu o segundo ano de mandato enfrentando problemas com a loja Sincera. A crise de 1929 arrastara o país à bancarrota, fazendo ruir os alicerces da economia cafeeira. Em Palmeira dos Índios, as colheitas quebraram, as mercadorias sumiram das prateleiras das lojas que não tinham como repô-las, o poder aquisitivo diminuíra a olhos vistos. A Sincera naufragava em dívidas. As agruras financeiras acumulavam-se na medida em que ele ganhava subsídios simbólicos como prefeito e não se locupletava com a corrupção.

Em março de 1930, o governador Álvaro Paes, seu amigo, convidou-o a assumir a direção da Imprensa Oficial do Estado, em Maceió. Desde que lera o primeiro relatório, Paes tencionava chamá-lo para colaborar com seu governo, impressionado com a austeridade à frente da prefeitura.

Pelo estilo inusitado, a primeira prestação de contas de Graciliano, publicada no Diário Oficial, causaria sensação. Para o Jornal de Alagoas, tratava-se de “documento dos mais expressivos e interessantes”. Em uma reação em cadeia, outros periódicos alagoanos – O Semeador e o Correio da Pedra – o transcreveram. Os ecos chegaram ao Rio de Janeiro. O Jornal do Brasil e A Esquerdapublicaram trechos, chamando a atenção do editor e poeta Augusto Frederico Schmidt para o escritor que se ocultava por trás do prefeito interiorano. Schimidt acabaria publicando o primeiro romance de Graciliano, Caetés, em 1933.

O segundo relatório, também noticiado em jornais de Maceió e do Rio, foi publicado no Diário Oficial com uma mensagem de louvor do governador: “A administração de Palmeira dos Índios continua a oferecer um exemplo de trabalho e honestidade, que coloca o município em uma situação de destaque”.

Graciliano aceitou o convite de Álvaro Paes, renunciando à Prefeitura de Palmeira dos Índios em 30 de abril de 1930. “Houve quem tivesse comemorado a sua saída. Eram pessoas que tiveram interesses contrariados, porque ele não fazia cambalachos, nem dispensava multa de ninguém”, relembraria um dos mais antigos moradores da cidade, José Tobias de Almeida.

Em questão de semanas, Graciliano liquidou o estoque para fazer caixa e vendeu a loja. Dos vinte contos de réis arrecadados, dezoito foram para pagar as dívidas. Empobrecera nos 27 meses como prefeito.

*Dênis de Moraes é doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-doutor pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (Clacso). Atualmente, é professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador do CNPq e da Faperj. É autor e organizador de mais de vinte livros, dos quais oito foram editados no exterior (Argentina, Espanha, Cuba e México). Além de O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos, publicou três biografias de intelectuais e artistas de esquerda: Vianinha, cúmplice da paixão: uma biografia de Oduvaldo Vianna Filho, O rebelde do traço: a vida de Henfil e, com Francisco Viana, Prestes: lutas e autocríticas.

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