segunda-feira, 24 de abril de 2017

FARRAPO HUMANO


FARRAPO HUMANO (The lost weekend, 1945, Paramount Pictures, 101min) Direção: Billy Wilder. Roteiro: Charles Brackett, Billy Wilder, romance de Charles R. Jackson. Fotografia: John F. Seitz. Montagem: Doane Harrison. Música: Miklós Rósza. Figurino: Edith Head. Direção de arte/cenários: Hans Dreier, A. Earl Hedrick/Bertram Granger. Produção: Charles Brackett. Elenco: Ray Milland, Jane Wyman, Phillip Terry, Howard da Silva, Doris Dowling. Estreia: 16/11/45

7 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Billy Wilder), Ator (Ray Milland), Roteiro Adaptado, Fotografia em P&B, Montagem, Trilha Sonora Original
Vencedor de 4 Oscar: Melhor Filme, Diretor (Billy Wilder), Ator (Ray Milland), Roteiro Adaptado
Vencedor de 3 Golden Globes: Melhor Filme, Diretor (Billy Wilder), Ator (Ray Milland)
Vencedor de 2 prêmios no Festival de Cannes: Ator (Ray Milland), Grande Prêmio


Com medo das possíves consequências financeiramente desastrosas de um filme que abordasse sem meias-verdades o drama do alcoolismo, a indústria de bebidas dos EUA chegou até a Paramount Pictures em 1945 com uma proposta inusitada: comprar os negativos do novo filme de Billy Wilder por 5 milhões de dólares para impedir seu lançamento nos cinemas. É lógico que o estúdio declinou da oferta, e Wilder, irônico como sempre, declarou anos mais tarde que se tivesse sido ele o destinatário de tão generosa oferta a resposta teria sido positiva. Uma piada, é claro, já que sem “Farrapo humano” o cineasta austríaco não teria se firmado como um dos maiores diretores de Hollywood de todos os tempos – e de quebra, não teria ganho também seu primeiro Oscar (e o segundo, também, já que dividiu com seu parceiro habitual Charles Brackett a estatueta de roteiro). Incensado por crítica e pelo Festival de Cannes, “Farrapo humano” ainda saiu da cerimônia da Academia com dois outros importantes prêmios: melhor filme e ator (Ray Milland).

Até então um ator popular mas pouco levado a sério, Milland hesitou em aceitar dar a virada que sua carreira tanto precisava. O mundo estava saindo da II Guerra e um filme sério e pesado sobre o vício em álcool e seus efeitos não parecia algo que o público fosse adotar para fins de entretenimento. Essa não era, no entanto, a opinião de Billy Wilder, que, depois de ler o romance “The lost weekend”, de Charles R. Jackson, em uma viagem de trem, decidiu que sua adaptação seria seu filme seguinte ao noir “Pacto de sangue”, baseado no livro de Raymond Chandler. Ainda impressionado com as dificuldades que passou com Chandler durante a feitura do roteiro do filme – o escritor sofria de alcoolismo – Wilder imediatamente convenceu seu amigo Charles Brackett a acompanhá-lo no desafio de fazer do anti-heroi criado por Jackson um protagonista simpático o suficiente para não afugentar as plateias das salas de exibição. Depois que Cary Grant e José Ferrer recusaram estrelar a produção – talvez por medo que ela pudesse fracassar e matar suas carreiras – o estúdio acabou convencendo Ray Milland de que o papel poderia ser um divisor de águas em sua trajetória de ator. Mergulhado com dedicação na busca por uma atuação convincente, Milland acabou por passar por dificuldades inusitadas – internado espontaneamente na ala para dependentes de álcool em um hospital nova-iorquino, ele tentou fugir apavorado com o que viu e demorou a convencer os funcionários de que era apenas laboratório – e se viu, no fim do processo, não só com o Oscar de melhor ator, mas também com o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes e o Golden Globe.

Não é para menos: na pele de Don Birman, um escritor em meio a uma enorme crise criativa que tanto foi o catalisador de seu vício quanto sua consequência, Milland entrega uma performance de intensidade rara. Era a primeira vez que o cinema americano mostrava uma vítima de alcoolismo sem apoiar-se no humor ou como parte do elenco de coadjuvantes. Mais do que isso, o roteiro de Wilder e Brackett tampouco caía na tentação de fazer de seu protagonista um bêbado engraçadinho ou simpático, vítima das circunstâncias. Birman não hesita em mentir e roubar para sustentar seu vício, chegando a ser humilhado e sofrer na pele desde o desespero da abstinência até as temidas alucinações - que lhe chegam durante sua internação em um hospital que o faz tomar contato com outro lado de sua doença: a partir dali ela não é mais parte de um universo de bares e conversas inconsequentes ou subterfúgios que o fazem disfarçar o problema e minimizá-lo. Enfatizadas pela angustiante trilha sonora de Miklós Rozsa - também indicada à estatueta da Academia - as cenas em que Birman anda pelas ruas de Nova York tentando empenhar sua máquina de escrever para arrumar dinheiro para a bebida e quando rouba a bolsa de uma cliente de um bar são de uma força ainda hoje admiráveis e fascinantes. O "fim-de-semana perdido" do título original - que se refere aos dias em que Birnam aproveita uma viagem do irmão para entregar-se sem medo a seu vício - se escora na trêmula fotografia de John F. Seitz para carregar consigo uma plateia até então desacostumada a viagens tão realistas.

E justamente por causa do realismo de tais cenas, dirigidas com a firmeza e a inteligência características de Billy Wilder, não deixa de ser irônico que, à época de seu lançamento, o filme tenha sofrido tantos ataques. Não bastasse a reação totalmente negativa do público na primeira exibição do filme - segundo o diretor houve risadas do início ao fim da projeção - e o medo da Paramount a respeito de uma história tão pesada, entidades de combate ao vício do álcool se posicionaram contra "Farrapo humano" por acreditar que ele poderia incentivar o consumo da bebida. Quase engavetado pelo estúdio, a produção só chegou às telas devido ao respeito e ao prestígio de Wilder - e para surpresa de todos, o que parecia mais um projeto destinado ao fracasso acabou caindo nas graças da crítica e da Academia. De algo arriscado e corajoso, o filme marcou época, ganhou quatro dos sete Oscar a que foi indicado, levou 3 Golden Globes, dois prêmios no Festival de Cannes e se fixou na memória do público como a mais importante e relevante produção a respeito do tema. Graças ao roteiro conciso (que substituiu a homossexualidade do protagonista por um simples bloqueio criativo sem perder a força da trama), a direção criativa e à atuação milagrosa de Ray Milland, "Farrapo humano" é, ainda hoje, um filme irretocável e moderno.


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