de David Cronenberg
Pollyana Notargiacomo Mustaro
é professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie(2004)
eXistenZ, filme com o qual o canadense David Cronenberg
ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlin de 1999, é uma
ficção científica pós-moderna cyberpunk.
Neste, Cronenberg, responsável pelo roteiro e direção,
apresenta um mundo complexo e hiper-real, onde as percepções
humanas, provenientes de experiências vividas, são substituídas
por imagens simuladas e no qual indivíduos que divulgam novas
idéias, encaradas de forma extremamente ameaçadora por
instâncias da sociedade, precisam se esconder para sobreviver
(a exemplo de Salmon Rushdie, autor de Versos Satânicos,
entrevistado por Cronenberg em 1995). Contudo, o diretor, propositadamente,
não mostra computadores, laboratórios ou quaisquer outros
objetos ou ambientes futuristas comumente presentes em filmes de ficção
científica. É a supressão intencional desta estética
que confere significado à mensagem do filme e aponta suas questões
centrais: a assustadora hibridação biotecnológica
pode dissipar as fronteiras entre o mundo real o mundo virtual? O
ser humano será absorvido por extensões tecnológicas
e perderá a visão de si mesmo? Quais são os efeitos
prejudiciais de viver em uma realidade virtual?
No início do filme a personagem Allegra Geller, projetista
de jogos RPG (Role Playing Games) neurais interpretada pela
atriz Jennifer Jason Leigh, começa a explicar que seu novo
jogo, eXistenZ, constitui um revolucionário sistema
de imersão interativa em ambientes virtuais desenvolvido pela
empresa Antenna Research. Para jogar eXistenZ são
necessários três dispositivos biotecnológicos:
um “game pod” (console de videogame feito de DNA e órgãos
sintéticos, obtidos através da criação
de anfíbios mutantes), uma “bio-porta” (orifício,
similar a uma tomada, instalado no final da medula espinhal do jogador)
e um “UmbyCord” (espécie de cordão umbilical
para conectar o console ao sistema nervoso central dos participantes
do jogo). Estes aparatos bombardeiam o sistema nervoso com estímulos
neurais até que seja impossível distinguir sua artificialidade,
ou seja, até a instituição de um simulacro tridimensional,
palpável e extremamente plausível pautado na “geração
de modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-real”
(BAUDRILLARD, 1991, p. 8). O cerne da discussão reside, portanto,
em questionar até que ponto o ser humano pode ser seduzido
ou não por este simulacro e se existem limites para a total
aceitação dos modelos e pressupostos colocados.
Durante a apresentação de eXistenZ, Allegra
começa a fazer o download do jogo para o cérebro das
pessoas que integram o teste e estes entram em uma espécie
de transe. De repente ela sofre um atentado e o atirador, armado com
uma pistola que dispara dentes humanos ao invés de projéteis
de balas, grita: “Morte à diabólica Allegra
Geller! Morte à Antenna Research!” Allegra, então,
foge com Ted Pikul (Jude Law), um estagiário de marketing da
corporação. Isso ocorre porque um segmento da sociedade
defende a preservação da integridade corporal (sem implantes
tecnológicos) e o fim das experiências de realidade virtual
mediadas por dispositivos orgânicos para imersão, que
passaram a constituir uma espécie de alucinógeno consumido
pelos fanáticos por jogos. Estes extremistas, denominados de
“Movimento Realista”, concluem que a única saída
para este problema, para este vírus social, é o extermínio
dos projetistas de jogos de imersão e a destruição
da fábrica de consoles biotecnológicos.
Cronenberg, então, acrescenta outros ingredientes à
trama. O primeiro deles é a oposição entre virtual
e atual. O filósofo Pierre Lévy, no livro O que
é o virtual? (1996), coloca que o virtual se opõe
ao atual, não ao real, porque a atualização está
vinculada à solução criativa de um problema,
diferentemente da realização, que envolve somente a
concretização de uma possibilidade previamente existente.
Em um sistema complexo como o jogo eXistenZ a realização
de uma possibilidade representaria a reação (resposta)
do sistema, ao passo que a atualização de uma virtualidade
seria interativa, uma criação pautada nas ações
dos jogadores. A interação entre os participantes do
RPG neural constitui, desta forma, o elemento chave para o desenvolvimento
da narrativa hipertextual, construída coletivamente e alterada
pelas decisões e ações provenientes da cooperação
para ultrapassar os desafios colocados pela arquitetura do sistema
biotecnológico. Por isso, Allegra argumenta que precisa jogar
eXistenZ com alguém amistoso, para verificar se o
jogo foi danificado, e que passear pelo ambiente sozinho não
tem a menor graça.
Neste momento, ela constata que Pikul não possui uma bio-porta.
Na verdade a falta do dispositivo tecnológico implantado no
corpo humano torna-se, neste caso, motivo de um misto de vergonha
e de orgulho. Vergonha porque a maioria das pessoas possui uma bio-porta
e orgulho por prescindir da dependência de dispositivos tecnológicos.
Estes últimos também assumem a conotação
de uma necessidade, de uma espécie de dependência psicológica
manifestada fisicamente pela conexão com o sistema do jogo,
um outro mundo, um mundo irreal que possibilita às pessoas
assumirem outros personagens de forma esquizofrênica. A intenção
de Cronenberg aqui é chamar a atenção do espectador
para o que considera inevitável: a fusão entre ser humano
e tecnologia.
Mas, em que medida as pessoas estão preparadas para isso?
O personagem Ted Pikul diz: “tenho fobia em ter meu corpo
penetrado cirurgicamente... não sei... não posso fazer
isso. É assustador, me dá arrepios!”. Ela
contra-argumenta dizendo que a instalação do dispositivo
abrirá um novo mundo de possibilidades para ele: “Não
tem jeito, esta é a jaula para sua raça que o mantém
preso em um local minúsculo para sempre. Saia da sua jaula.
Saia agora”. Na mesma cena, Willem Dafoe, que faz uma aparição
no filme como frentista de posto de gasolina diz: “Continuo
sendo frentista após ter sido introduzido aos games, mas só
no nível mais patético da realidade”. Esta
frase antológica de eXistenZ pode ser relacionada
a frase de um poema de William Blake – “Se as portas
da percepção fossem abertas, as coisas surgiriam como
realmente são: infinitas”. Tais possibilidades são
extremamente instigantes porque, como coloca Sherry Turkle (1997,
p. 15), “À medida que participam, os jogadores tornam-se
autores [...] de si próprios, construindo novas identidades
através da interação social”.
Com o gradativo mergulho no microcosmo surrealista de eXistenZ,
Cronenberg procura oferecer indícios ao espectador de que a
hipotética diferenciação entre realidade e simulação
colocada inicialmente não existe: o universo de eXistenZ
constitui o cenário do jogo transCendenZ – ou
seja, é um jogo dentro de outro jogo. Isto configura transCendenZ
como um “metajogo” que engloba jogos como eXistenZ
para descrever a questionar a transparência da simulação,
a substituição da vida real por um simulacro e a transferência
de padrões complexos de comportamento do console do videogame
para o cérebro dos jogadores (os quais, em determinados momentos,
entram em “loop” mental à espera de um código
para continuação da interação). Contudo,
não satisfeito, Cronenberg conduz o espectador a outras questões:
quantos outros níveis existem no jogo? A transCendênciA
da eXistênciA é um jogo ou um simulacro? Existe uma saída
ou o propósito maior é o abandono do corpo físico
em detrimento de um corpo-imagem simulado? O mundo existe ou é
um conjunto de ambientes virtuais que integra um simulacro global?
Nesta última pergunta reside o maior ponto de convergência
entre as propostas de eXistenZ e de Matrix (dos
irmãos Andy e Larry Wachowski), filmes que estrearam no mesmo
ano (1999). Outros pontos de aproximação entre estes
filmes são a presença de bio-portas (sendo que em Matrix
o conector é plugado diretamente na nuca) e a utilização
do ser humano como fonte de energia para o sistema. Porém,
em Matrix os seres humanos são escravizado por uma
Inteligência Artificial (IA) que os utiliza como “pilhas”.
Em eXistenZ, por outro lado, é o ser humano que “cultiva”
anfíbios geneticamente modificados para fabricar consoles para
jogos como o eXistenZ, utilizados como um alucinógeno
para a “deformação da realidade”.
O filme eXistenZ termina com o assassinato do suposto criador
do jogo transCendenZ, Yevgeny Nourish, morto por Allegra
Geller e Ted Pikul, que seriam terroristas pertencentes ao movimento
para a destruição de sistemas que possibilitam “eXistênciA”
mediada por dispositivos biotecnológicos. “Morte
ao demônio Yevgeny Norish! Morte à Pilgr-Image! Morte
ao transCendenZ!” A repetição desta frase
familiar (dita em eXistenZ para a personagem Allegra Geller)
sugere que o jogo continua em um outro nível, o que deixa uma
dos participantes confuso a ponto de dizer: “Não
precisam atirar em mim. Digam-me a verdade: ainda estamos no jogo?”
Cronenberg demonstra com isso que a possibilidade de acessar e interagir
em diferentes níveis de realidade virtual leva à total
perda de índices de localização e referência
dos limites que separariam o jogo da realidade.
Referências
bibliográficas:
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros
e simulação. Lisboa: Relógio d’Água:
1991.
LÉVY,
Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Ed. 34,
1996. (Coleção TRANS)
TURKLE,
Sherry. A vida no ecrã. A identidade na era da Internet.
Lisboa: Relógio d’Água: 1997.
Fonte: http://www.telacritica.org/eXistenZ.htm