Capricórnio
Seria fácil porque o doutor lhe disse que a pior dor é a da alma.
Então ele se preparou minuciosamente durante anos para o que viria a ser
a realização completa do ser humano. Lâminas afiadas ao ponto de
repetirem ao vivo o brilho de luz emanado nas telas de cinema. O
primeiro pedaço foi de pele. O segundo, depois de uma pequena incisão,
foi um pedaço do fígado, escolhido prioritariamente porque esbagaçado em
anos de bebedeiras. Um dia cortou os tendões acima dos joelhos, o que
não o impediria de andar. Abriu o pescoço e a traqueostomia estava
gabaritada. A ponta da língua ofereceu aos cachorros do vizinho que o
incomodavam o dia inteiro. Rim, baço, o que podia, e sabia, tirava um
pedacinho, que guardava num lindo baleiro antigo, daqueles de rodar,
todos flutuando no formol. O coração preservou, pois este não existia
mais há tempos devido ao massacre próprio e consentido. Um dia comprou
um lindo espelho, moldura de madeira antiga. Para o Ato Final, trilha de
Cat Stevens, menino mergulhado na piscina do clube londrino antigo, o
sangue manchando a água azul e os azulejos brancos encardidos pelo
tempo. O cabo branco da navalha intacta. O corte fundo e com raiva. O
esguicho… o esguicho… filmes japoneses, samurais… que vida… que vida…
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