quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

FERNANDO PESSOA

por ÁLVARO DE CAMPOS

REALIDADE

Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos...
Nada está mudado — ou, pelo menos, não dou por isto —
Nesta localidade da cidade ...


Há vinte anos!...
O que eu era então!  Ora, era outro...
Há vinte anos, e as casas não sabem de nada...


Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram!
Sei eu o que é útil ou inútil?)...
Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)


Tento reconstruir na minha imaginação
Quem eu era e como era quando por aqui passava
Há vinte anos...
Não me lembro, não me posso lembrar.


O outro que aqui passava, então, 
Se existisse hoje, talvez se lembrasse...
Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro
De que esse eu-mesmo que há vinte anos passava por aqui!


Sim, o mistério do tempo.
Sim, o não se saber nada, 
Sim, o termos todos nascido a bordo
Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer...


Daquela janela do segundo andar, ainda idêntica a si mesma,
Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu, mais
lembradamente de azul.


Hoje, se calhar, está o quê?
Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.
Estou parado físisca e moralmente: não quero imaginar nada...


Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro, 
Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado, 
Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso alegremente.
Quando muito, nem penso...
Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora, 
Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.


Olhamos indiferentemente um para o outro.
E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol, 
E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada.


Talvez isso realmente se desse...
Verdadeiramente se desse...
Sim, carnalmente se desse...


Sim, talvez...

FONTE: http://www.revista.agulha.nom.br/facam41.html

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