O álbum da bela capa acima é A Tábua de Esmeralda (1974), com certeza o melhor disco que Jorge Ben gravou. Depois de lançar a coletânea Dez Anos Depois, que incluía tríades de pout-pourris de letras fáceis, como “A Minha Menina/Que Maravilha/Zazoeira” ou ” País Tropical/Fio Maravilha/Taj Mahal”, Jorge queria buscar uma filosofia para sua música. Uma filosofia que não o deixasse fugir de suas raízes – como o samba-rock – e o swing de suas melodias. Mas, para isso, ele precisava focar em algo mágico. E acabou caindo pra alquimia.
Jorge queria gravar um álbum apenas com músicas que transmitissem essa influência que ele pegara no ar. Contactou a Phonogram, mas eles não curtiram muito a ideia. Entretanto, um álbum que enfatizasse a crença milenar alquímica tinha agradado o gerente da gravadora André Midani. E ele confiou na maestria de Jorge.
Aliás, não dava pra negar experimentações musicais pro negro que mais se destacou na música popular desde o lançamento de seu revolucionário jeito de tocar com Samba Esquema Novo, de 1963. Tudo na viola de Jorge soava dançante. Foi assim que iniciou com os primeiros sucessos “Mas Que Nada” e “Chove Chuva”. E estava criado o conceito de samba-rock.
Agora, um samba-alquimista? Possível? Sim, e com muita grandiosidade musical. Nunca a viola de Jorge Ben soou tão original, tão prolífica e eficiente como em A Tábua de Esmeralda. “Os Alquimistas Estão Chegando”, primeira canção, dá o ar de ser um álbum ‘ao vivo no estúdio’. Começa com as falas de Jorge dando os preparativos: “Salve… não, não, senta, pra sair legal. Tem que dançar dançando…”. É tão descompromissado que a música vem de uma forma natural, como se fosse absolutamente associável ao artista. E faz sentido a frase ‘estão chegando os alquimistas’, mas o que realmente impressiona é a voz de Jorge. Quando canta “eles são discretos e silenciosos”, da primeira faixa, de forma estonteante se segue uma percussão muito bem encaixada, unindo os elementos musicais ao culto alquímico.
Seguindo a mesma linha de “As Rosas eram Todas Amarelas”, de seu álbum de estúdio anterior,Ben (1972), a segunda faixa, “O Homem da Gravata Florida”, é uma bem humorada canção que traz o apreço pela beleza, algo que Jorge sempre ressalta em suas canções sem soar enjoativo. “Eu Vou Torcer” também é um grande exemplo de como o cantor traz elementos diferenciados sem deixar de ser brasileiro. Talvez o mais brasileiro dos músicos.
“Errare Humanum Est” é praticamente uma psicodelia espacial. Jorge Ben canta como se realmente estivesse na atmosfera, revelando o interesse dos alquimistas pelo conhecimento das estrelas. Quem já leu o excelente livro de Gabriel García Marquez, 100 Anos de Solidão, conseguirá associar com facilidade essa viagem alucinante de Jorge Ben e suas seis cordas com os misteriosos conhecimentos dos pergaminhos de Melquíades. Como se o conhecimento fosse algo que está além da localização geográfica do homem. “E que se pode voar sozinho até as estrelas-las-las-las-las/Ou antes dos tempos conhecidos/Vieram os deuses de outras galáxias-as-as-as-as-as/Em um planeta de possibilidades impossíveis…“. Fabuloso.
Outra bela contribuição da alquimia é a canção “Hermes Trismegisto e Sua Celeste Tábua de Esmeralda”, escrita em parceria com Fulcanelli. Parece surreal quando Jorge diz ver “as três partes da filosofia universal”. Muito além de surreal, parece um delírio, algo totalmente fora da normalidade. É como se Hermes, o personagem da canção, fosse o escolhido para disseminar o conhecimento milenar e Jorge Ben assimilasse muito bem essa divindade com seus acordes únicos e sua entrega vocal à alquimia. Uma interpretação fora do comum.
Mas a grande reserva mesmo de Jorge Ben está em “Cinco Minutos”, última faixa do álbum. Aqui a interpretação de Jorge beira o impossível, o inimaginável (Jorge quem escreveu todas as letras do álbum). A canção fala de um encontro com uma mulher que não deu certo. Mas a voz de Jorge soa tão verdadeira, que realmente parece que ele preparou uma peça de teatro. Jorge consegue tornar o momento real, como se estivesse se lamentando pela perda do encontro de forma excêntrica – e ao mesmo tempo pueril – porque sua desejada não quis ‘esperar cinco minutos’. Jorge consegue ser mais emocional que técnico, sem deixar de lado sua habilidade como violonista, que se torna explícita em cada canção de A Tábua de Esmeralda.
Sem esquecer sua condição de negro de raízes escravocratas, Jorge exalta com orgulho o grande revolucionário na faixa “Zumbi”. E não deixa de lado as nações africanas que também contribuíram para a formação da miscigenação brasileira, ao citar Angola e Congo. É uma negritude que Jorge sabe que está incorporada; e ninguém mais adequado para representar essa força racial que Zumbi dos Palmares.
Isso sem contar as suas belas narrativas para a mulher brasileira, como “Menina Mulher da Pele Preta” e “Magnólia”, que sempre soaram magistrais na voz do cantor.
Ou seja, o potencial de Jorge se multiplica em uma obra só. Alquimia, negritude, positivismo, interpretação vocal, belas melodias… Talvez o álbum seja a principal reinvenção de Jorge, porque ele criou um clima de descontração e um ambiente fluido para que a música soasse nova sem deixar de soar como Jorge, unanimidade da música brasileira que consegue incorporar diversos elementos musicais com uma condição: que o tempero musical realce a unicidade da música brasileira.
Tiago Ferreira
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