terça-feira, 5 de agosto de 2014

DEATH PROOF

À Prova de Morte 
(2007, Quentin Tarantino)


Por um cinema de película

O auge que À Prova de Morte atinge no final de seu primeiro ato, quando o protagonista feito por Kurt Russel mata, com seu carro, as garotas que achávamos serem também protagonistas, é de fato o símbolo do cinema que Tarantino vem fazendo pelo menos desde Kill Bill (2003/ 2004): uma obra sem limites, na qual toda lógica apresentada é uma lógica puramente cinética, reconstitutiva de um mundo perdido. É também uma aula a primeira metade de À Prova de Morte. Em Kill Bill Vol. 2, Tarantino “gastava” aproximadamente uma hora de projeção para resolver o conflito final (Noiva x Bill). Em À Prova de Morte, a reconstrução de uma época e atmosfera tipicamente erigida pelo estragar da película é aquilo que “toma o tempo”, simplesmente porque o trabalho do diretor, neste filme, é colocar de volta um certo papel importante da película para a realização do sentido visual do filme.


Sobretudo porque é neste filme que haverá, ainda com mais força do que em Kill Bill, uma ideia de que o cinema invade tudo. Aqui, é um carro de cinema que será a arma de um assassinato brutal. Já aí essa intrusão, essa coisa que não é de outro mundo, mas, sim, de um outro mundo. Era sobretudo também, a um mundo de cinema que correspondia o contrapeso ideal a um mundo de outro tipo de cinema (o universo habitado por Russel e aquele, totalmente diverso, vivido pelas garotas do primeiro ato). Se Tarantino passava uma hora de projeção inebriado com a recriação do filme copiado de outros filmes, a segunda metade de À Prova de Morte corresponde a uma virada de mesa.


É que para que o Stuntman Mike de Kurt Russel tenha seu merecido castigo, depois de todo o despautério – ainda pior do que Kill Bill, já antecipando o nível de Bastardos Inglórios (2009) – é necessário o surgimento, na segunda parte do filme, de outras vítimas. Na verdade, estas vítimas são, como o personagem de Russel, dublês de cenas de ação. O olhar de Tarantino é ainda mais generoso ao dar a Zoe Bell o papel de si mesma (que, convenhamos, é caríssimo, já que ela protagonizou as cenas perigosas de Kill Bill, como dublê de Uma Thurman) no confronto contra Stuntman Mike. Mas aí temos outra “invasão” do cinema. Na verdade, não é só a profissão igual dos antagonistas que fará com que Mike receba o que merece. É outra coisa. Zoe e Lee (Mary Elizabeth Winstead), antes de serem dublês e entenderem da profissão, possuem o mesmo conhecimento cinematográfico de Mike (e Tarantino, claro), ou seja, conhecem Vanishing Point, Dirty Mary Crazy Larry entre outros filmes. É como se Tarantino desse ao contracampo representado pelas garotas uma verdadeira batalha de conhecimento cinematográfico e, claro, físico, já que o mais lógico seria a vinda de um outro olhar para o cinema (o olhar do verdadeiro dublê: Zoe Bell) para confrontar aquele já conhecido (o do invencível Kurt Russel nos filmes de John Carpenter, que agora interpreta tudo o que talvez não tenha sido nesses filmes).


À Prova de Morte parece ser também a extensão exata de Jackie Brown (1997) e Kill Bill no que toca à alternância do papel feminino, que agora desenvolve a trama e a domina, certamente, até mesmo com mais força e significância do que os homens em Cães de Aluguel (1992) e Pulp Fiction (1994). É neste filme que o agradecimento a Fuller, nos créditos finais de Jackie Brown parece fazer sentido: Tarantino, desde este filme, estrutura suas obras com uma retidão narrativa, que, sem dúvida, podemos associar a Fuller. Estruturalmente e também a respeito do “não voltar jamais”, tão caro a Fuller. Desde Jackie Brown (com a excessão da cena da troca das sacolas e algumas muitas do primeiro volume de Kill Bill), Tarantino tem construído tudo de forma a enunciar seus próprios flashbacks (Kill Bill Vol. 2, Bastardos Inglórios). À Prova de Morte, então, é um filme “para frente”, sem retornos senão aqueles essenciais e letais, que observam, de todos os ângulos, a morte das garotas. Mas aí Tarantino já está obedecendo, há tempos, as leis do seu próprio e renovador cinema.

Ranieri Brandão
Setembro de 2010


FONTE:
http://www.filmologia.com.br/?page_id=1335

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