Meu tio me ensinou música. Sem falar nada. Apenas tocando seu afoxé com maestria no conjunto de chorinho que tocava lá no quintalzinho que dividia nossas casas. A dele, onde morava com Antonia e os filhos Márcio e Estela (e esta entrou no ritmo tocando pandeiro), e a nossa, nos fundos, meia-água, Vila Alpina, Zona Leste de São Paulo, onde moravam, no quarto e cozinha, eu, meu irmão Ricardo (autor do retrato acima), o Zé Luis e a Zefinha. Manoel Antonio da Silva, o Mané Luis, era irmão do Zé. Antonia, a Tonha, da Zefa. Todos desceram o mapa do Brasil de Palmeira dos Índios para o Rio de Janeiro e depois para São Paulo. Criados no sítio. Meu tio me ensino a ter bom humor na vida, mesmo sem saber disso. Era o oposto do meu pai, que descobri ser depressivo só depois que frequentei por anos o inferno da alma. Sei como o Mané aprendeu música. Foi com carro de boi, que ele amava guiar com aquela vara com ponteira – e a ouvir o ranger musical das rodas nas vielas de terra lá da origem. Era dele a rádio-vitrola com olho mágico que tanto lembro e que ficava na sala da casa de frente lá da vila. Foi ali que, mesmo sem ele saber, me apresentou a semente: Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Venancio e Corumba, Jararaca e Ratinho, Alvarenga e Ranchinho, Pedro Sertanejo, Jacó do Bandolin, Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Francisco Alves, Angela Maria, Tonico e Tinoco e… no caminho aberto, a filha entrando de sola com Elvis Presley. Meu tio era um forte. Lavou pratos, lavou chão e banheiros em restaurante do Rio de Janeiro, foi operário do batente pesado em São Paulo. Sabia escrever e ler malemá, como dizia. Suas mãos foram calejadas na roça e na casa de farinha que ficava ao lado da casinha dos pais. Depois de adulto eu olhava aquela massa compacta de músculos, formando uma parede, e imaginava ele como boxeador. Se treinasse, seria campeão. Devia ter um coice nas mãos. Nunca brigou. Era um artista -também no humor. Não voltou para morrer na origem, como fez o irmão. Foi para Campinas, ficar ao lado dos netos e bisnetos. Dizia sempre, ao telefone, quando eu perguntava como estava: “Com a cabeça entre as orelhas” ou o clássico “Com um pé na cova e outro na casca de banana”. Mané Luis foi embora hoje cedo depois de, com mais de noventa anos, lutar pela vida que lhe colocou uma casca de banana na quarta-feira passada. Teve uma parada cardíaca de vários minutos e resistiu o quanto pode. Agora descansa, pois precisava. Tinha um olhar penetrante sob as sobrancelhas espessas. Quando ria, até dobrava o corpo. Eu gostava muito de lhe falar besteira ao telefone. Sabia que gostava. Me chamava de bicho sem vergonha. Eu rebatia: “De que famílias eu sou?”. Que sorte e orgulho de ser da deles. Dos dois irmãos casados com as duas irmãs. Hoje houve o encontro sei lá onde do Mané, com o Zé e a Zefa. Eles se entendiam do jeito que aprenderam. Sem nhenenhém, mas se gostavam. Nunca se separaram, assim como nós aqui dessa família que é grande e teve e sempre terá este grande artista, o que tocava afoxé porque o som do carro de boi despertou seu dom. Amém
FONTE: http://www.zebeto.com.br/