domingo, 24 de janeiro de 2016

MANÉ LUIS

                    Manoel Antonio da Silva

por Roberto José da Silva


Meu tio me ensinou música. Sem falar nada. Apenas tocando seu afoxé com maestria no conjunto de chorinho que tocava lá no quintalzinho que dividia nossas casas. A dele, onde morava com Antonia e os filhos Márcio e Estela (e esta entrou no ritmo tocando pandeiro), e a nossa, nos fundos, meia-água, Vila Alpina, Zona Leste de São Paulo, onde moravam, no quarto e cozinha, eu, meu irmão Ricardo (autor do retrato acima), o Zé Luis e a Zefinha. Manoel Antonio da Silva, o Mané Luis, era irmão do Zé. Antonia, a Tonha, da Zefa. Todos desceram o mapa do Brasil de Palmeira dos Índios para o Rio de Janeiro e depois para São Paulo. Criados no sítio. Meu tio me ensino a ter bom humor na vida, mesmo sem saber disso. Era o oposto do meu pai, que descobri ser depressivo só depois que frequentei por anos o inferno da alma. Sei como o Mané aprendeu música. Foi com carro de boi, que ele amava guiar com aquela vara com ponteira – e a ouvir o ranger musical das rodas nas vielas de terra lá da origem. Era dele a rádio-vitrola com olho mágico que tanto lembro e que ficava na sala da casa de frente lá da vila. Foi ali que, mesmo sem ele saber, me apresentou a semente: Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Venancio e Corumba, Jararaca e Ratinho, Alvarenga e Ranchinho, Pedro Sertanejo, Jacó do Bandolin, Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Francisco Alves, Angela Maria, Tonico e Tinoco e… no caminho aberto, a filha entrando de sola com Elvis Presley. Meu tio era um forte. Lavou pratos, lavou chão e banheiros em restaurante do Rio de Janeiro, foi operário do batente pesado em São Paulo. Sabia escrever e ler malemá, como dizia. Suas mãos foram calejadas na roça e na casa de farinha que ficava ao lado da casinha dos pais. Depois de adulto eu olhava aquela massa compacta de músculos, formando uma parede, e imaginava ele como boxeador. Se treinasse, seria campeão. Devia ter um coice nas mãos. Nunca brigou. Era um artista -também no humor. Não voltou para morrer na origem, como fez o irmão. Foi para Campinas, ficar ao lado dos netos e bisnetos. Dizia sempre, ao telefone, quando eu perguntava como estava: “Com a cabeça entre as orelhas” ou o clássico “Com um pé na cova e outro na casca de banana”. Mané Luis foi embora hoje cedo depois de, com mais de noventa anos, lutar pela vida que lhe colocou uma casca de banana na quarta-feira passada. Teve uma parada cardíaca de vários minutos e resistiu o quanto pode. Agora descansa, pois precisava. Tinha um olhar penetrante sob as sobrancelhas espessas. Quando ria, até dobrava o corpo. Eu gostava muito de lhe falar besteira ao telefone. Sabia que gostava. Me chamava de bicho sem vergonha. Eu rebatia: “De que famílias eu sou?”. Que sorte e orgulho de ser da deles. Dos dois irmãos casados com as duas irmãs. Hoje houve o encontro sei lá onde do Mané, com o Zé e a Zefa. Eles se entendiam do jeito que aprenderam. Sem nhenenhém, mas se gostavam. Nunca se separaram, assim como nós aqui dessa família que é grande e teve e sempre terá este grande artista, o que tocava afoxé porque o som do carro de boi despertou seu dom. Amém

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Quando os quadrinhos fazem a diferença

por Célio Heitor Guimarães
Fui um leitor compulsivo de gibis. Como aprendi a ler aos 5 anos, aos 6 já andava metido entre os quadrinhos. Foram mais de sessenta anos de convívio com os heróis de papel. Afastei-me de vez deles há coisa de dois anos, quando me despedi do Super-Homem, o maior ícone da minha geração, que vem sendo metodicamente assassinado por editores mais perigosos que a kryptonita vermelha. Depois disso, passei – como já lhes disse aqui neste espaço do Zé Beto – a acompanhar apenas as aventuras do ranger italiano Tex Willer e do gaulês Asterix, passando, de vez em quando, pela releitura de Mafalda, de Quino; Peanuts, de Schulz; e Spirit, de Eisner. Mas continuo, por vício de origem, acompanhando o mercado quadrinizado. Às vezes, ele nos surpreende com mimos encantadores. Foi o que aconteceu recentemente.
Eu andava atrás da edição quadrinizada de “O Quinze”, romance de Rachel de Queiroz, que soubera ter sido lançada pela Editora Ática. A versão era datada de 2014, mas não havia jeito de encontrá-la por estas bandas. Estava prestes a encomendá-la à editora, quando – surpresa! – a localizei meio escondida entre as ofertas da Livraria Cultura. Foi uma alegria tamanha quanto a leitura da preciosa edição. Bonita, contundente, triste, mas, sobretudo, verdadeira e bem brasileira. É história de nossa gente, gente que se apega à fé e à terra em que nasceu, onde amarga sofrimento atroz, mas não perde a coragem nem a vontade de viver; gente que divide o nada com o seu semelhante e com os esquálidos animais, que considera da família.
“Encostado ao mourão da porteira de paus corridos, o vaqueiro das Aroeiras aboiava dolorosamente, vendo o gado sair, um a um, do curral. A junta de bois mansos passou devagarinho. O velho touro da fazenda saiu, arrogante. Garrotes magros, de grandes barrigas, empurravam as vacas de cria, atropelando-se. Até que a derradeira rês, a Flor do Pasto, fechando a marcha, também transpôs a porteira e passou junto de Chico Bento, que lhe afagou com a mão a velha anca rosilha, num gesto de carinho e despedida… Saída a última rês, Chico Bento bateu os paus na porteira e foi caminhando devagar, atrás do lento caminhar do gado que marchava à toa, parando às vezes, e pondo no pasto seco os olhos tristes, como numa agudeza de desesperança.”

Quando escreveu “O Quinze”, nos idos de 1930, a cearense Rachel de Queiroz tinha apenas 19 anos, mas soube registrar as cicatrizes deixadas pela estiagem de 1915 no Nordeste brasileiro. E surpreendeu. Não apenas pela pouca idade, mas por ser mulher e por haver demonstrado uma sensibilidade inusitada na época. Mais que isso: pela sobriedade e ausência de pieguice com que conseguiu desenvolver a trama, tendo como pano de fundo uma das mais dolorosas tragédias humanas – que até hoje se presta para fomentar a demagogia e o enriquecimento criminoso de políticos indecentes e mal-intencionados, sem maior resultado concreto para a população.

Não é fácil transpor para os quadrinhos uma obra literária. Ainda mais em se tratando de um clássico como “O Quinze”. Pois outro nordestino, o paraibano Shiko (na verdade, Francisco José de Souto Leite), conseguiu. E o fez com competência, mantendo a essência do texto original e valorizando-o com seu traço firme, suas aquarelas caprichadas e suas cores fortes. A sequência narrativa prende a atenção do leitor, comove, causa tristeza e revolta. E isso se deve ao talento de Shiko. O fato de ele haver morado até os 20 anos no interior da Paraíba e assistido com o avô a muitos pores do sol no dia de São José, o ajudou, com certeza. Nem por isso, o artista deixou de priorizar a simplicidade, como fez questão de registrar:

“Tentei fazer uma construção objetiva, sem grandes floreios, sem perspectivas fantásticas, enquadramentos de malabarista, ou cenas de página inteira”.

No entanto, toda a aridez da região, o desencanto das pessoas e o flagelo da seca se fazem presentes. Assim como os sonhos e as desilusões da normalista Conceição, que protagoniza o romance e diz-se ter muito da autora quando jovem.

“O Quinze”, de Rachel de Queiroz, completou cem anos no ano passado. Mas, desgraçadamente, continua mais atual do que nunca. Por isso, a versão em quadrinhos é uma boa oportunidade para os jovens do Sul-Maravilha entenderem um pouco mais do Brasil. E uma prova que nem tudo está perdido na arte quadrinizada.
FONTE: http://www.zebeto.com.br/

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

FOTOGRAFANDO





Fotografias de Ricardo Silva

AMANHÃ


por  Ticiana Vasconcelos Silva


O doce olhar repousa sobre o verde que a lua fez da grama
A vida continua como uma linha que de tão contígua
Se mistura ao que se vê e se confunde com o que não se entende
Queria poder emergir das manhãs como uma gota de mel em sua boca
Queria poder me tornar a noite como a cor que se faz do azul no horizonte
Morreria se pudesse corrigir o que é vivo hoje e se perdeu no ontem
Arderia como o núcleo do sol se calasse a dor nos mistérios da fonte
No meio de tudo isso, percebo que o céu nasceu de um deleite afrodisíaco
Onde deuses jogam Tarot para Querubins que se perderam no abismo
Ser humana me traz um alívio de poder ser triste
Sem saber que o amanhã foi contornado pelo o que eu não quis que existisse.


FONTE: http://www.zebeto.com.br/amanha-4/#.VqAC0fkrKUk

ETTORE SCOLA

Ettore Scola, um dos maiores nomes do cinema italiano, morre aos 84 anos

Morreu na terça-feira (19) Ettore Scola, um dos maiores nomes do cinema italiano. Desde domingo (17), o diretor de 84 anos estava em coma no departamento cardiológico do hospital Policlino de Roma. De acordo com familiares, seu coração parou por “cansaço”.

Scola nasceu em Trevico, uma pequena cidade de mil habitantes na província italiana de Avellino, em 10 de maio de 1931. Antes de virar cineasta, estudou direito em Roma, passando também pelo jornalismo e pelo rádio.

Estreou no cinema em 1964, com a comédia “Fala-se de Mulheres”. Em 1974, ganhou o prêmio César de melhor filme estrangeiro com “Nós que nos Amávamos Tanto” e, dois anos depois, venceu o prêmio de melhor diretor em Cannes por “Feios, Sujos e Malvados”.

Em 1984, ganhou o Urso de Prata no festival de Berlim por “O Baile”. Outras de suas obras mais conhecidas são “Aquele Que Sabe Viver” (1962), “O Jantar” (1998) e “Um Dia Muito Especial (1977)”, que rendeu uma indicação ao Oscar de melhor ator para Marcello Mastroiani.

O cineasta deixa a mulher, a roteirista Gigliola Scola, e as filhas Paola Scola e Silvia Scola, que também seguiram carreira no cinema italiano e fizeram parcerias com o pai.

Sua morte “deixa um enorme vazio na cultura italiana”, afirmou o primeiro-ministro Matteo Renzi. O premiê disse ainda que Scola dominava a “incrível capacidade de leitura da Itália, desde sua sociedade até suas mutações, sentimentos ao longo do tempo e consciência social”.

Já o ministro italiano para os Bens Culturais e Turismo, Dario Franceschini, lembrou o vigor do cineasta. “Um grande professor, um homem extraordinário, jovem até o último dia de sua vida”, comentou no Twitter.

Também na rede social lamentou Juan José Campanella, diretor argentino que levou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2010 por “O Segredo dos Seus Olhos”: “Ettore Scola, obrigado por mudar minha vida”, escreveu.

ÚLTIMO TRABALHO

Seu último filme foi “Que Estranho Chamar-se Federico”, de 2013, em que homenageia o amigo e conterrâneo Federico Fellini (1920 – 1993). Destaque no festival de Veneza, o filme conta não só a trajetória de Fellini, mas retrata seu universo e reconstrói a amizade emocionante entre os dois mestres do cinema italiano.

“Precisamos mesmo de outra bela guerra”, diz um dos personagens de “O Terraço”. Roteirista de comédias em crise de criação, revoltado com o neoconformismo de uma Itália americanizada e o capitulacionismo dos companheiros de geração, esse personagem, vivido por Jean-Louis Trintignant, é dos mais autobiográficos de sua obra.Intelectual da esquerda italiana, Scola idealizava o potencial de crítica social da comédia, tendo como mestres Mario Monicelli, Totó e Dino Risi. Em “Feios, Sujos e Malvados”, satiriza a antiga cultura popular solapada pela miséria.

Da Folha.com

FONTE:http://www.zebeto.com.br/ettore-scola-adeus/#.Vp9QkfkrKUk

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

SOLDA

CÁUSTICO


SOLDA CÁUSTICO: http://cartunistasolda.com.br/

RAZÃO DE SER

Paulo Leminski

Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?

domingo, 17 de janeiro de 2016

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

HIENA PAPUDA

por  Dalton Trevisan


hiena papuda necrófila
traveca de araponga louca da meia-noite

mente na vírgula mente no pingo do i
mente no bico fechado mente na carta aberta
corrilho merdoso de intrigas e falsidades

caráter sem jaça de escorpião
filho adotivo espiritual de Caim

delator premiado informa dedura
a desonra, ó cagüeta, é o teu butim
fora, traidor do amigo!Rua, olheiro maldito!

no teu coração pesteado
rondam os lobos da inveja
na tua alma leprosa
uivam os chacais da infâmia

Judas que se vendeu por trinta lentilhas
uma corda uma figueira seca

se não for à figueira seca
a figueira e o laço da corda
fatal irão logo logo até você



*Prosa de escárnio.Revista Idéias 36.Janeiro de 2006

FONTE: http://aedoscuritibanos.blogspot.com.br/2013/07/hiena-papuda.html

FOTOGRAFANDO

2008

 Fotografias de Ricardo Silva

STAR WARS

Naquela galáxia, somos todos um

por Yuri Vasconcelos Silva

Em ocasiões muito específicas, todos se tornam um. Para o bem ou para o mal, a coletividade conecta todos os indivíduos através de um curioso campo wi-fi transpessoal – e sincroniza as respostas emocionais em uníssono conforme o estímulo. Para o mal, sabe-se o que acontece quando a turba se enfurece ou quando um doido feito Hitler fala bonito para uma massa em desespero. Já no lado da luz, este efeito pode ser provocado e premeditado para o bem, como em uma música dos Rolling Stones com Mick Jagger se contorcendo em um palco no meio do Maracanã. Ou de forma aleatória em uma partida do Fla-Flu no mesmo coliseu, onde o palco se transforma em gramado e o astro é a bola. O refrão bem conhecido de Jagger amplificado em milhares de decibéis que se expandem sobre e através da multidão, certo de que carrega um significado pessoal e intransferível, ascende em cada um. Sai daquela salinha escura, que todos têm dentro da alma, e explode na poesia cantada, de olhos fechados e talvez com os braços jogados ao alto, junto a outras milhares de vozes em volta.

Quando fui ao cinema na madrugada do primeiro minuto do dia 17 de dezembro buscava a mesma sensação. Era a pré estréia de Star Wars – O Despertar da Força. Acredito ter assistido três dezenas de vezes cada um dos episódios da primeira trilogia, iniciada na década de 1970. No lançamento da segunda trilogia, estive na fila da primeira exibição com boa parte da minha turma da faculdade. Nesta ocasião, organizei a compra de todos os ingressos de uma sala para que meus colegas estivessem naquela histórica exibição. Deu certo.

Para o lançamento desta nova trilogia, o trajeto pelo shopping vazio com lojas fechadas me deu uma tola sensação de exclusividade. Somente aqueles de posse do ingresso poderiam estar ali. O saguão já acumulava filas para pipoca com dois ou três Jedis na espera. Os cartazes e displays gigantes de promoção do filme eram o pano de fundo para selfies e fotos em grupo. Faltando 40 minutos para o início do filme, o saguão já não comportava mais tantos Jedis e Siths empunhando seus sabres de luz. Ansiedade e expectativa eram sentimentos compartilhados silenciosamente, em trocas de olhares entre desconhecidos.

Não sei como conseguiram, mas absolutamente nada havia vazado sobre a trama. A produção deve ter contratado a mesma equipe de contenção que guarda os segredos da Apple. Quando as salas foram abertas, finalmente estávamos a caminho daquele lugar muito, muito distante. Quando a marca de George Lucas – agora pertencente à Disney – apareceu, o silêncio tomou conta da sala e da escuridão. Os acordes clássicos da fanfarra de Star Wars, obra do impecável compositor John Williams, estouraram no sistema de som enquanto o início deste capítulo nos situava através do letreiro laranja que seguia em direção ao espaço infinito à nossa frente.

Enfim, as primeiras informações. Neste momento, asseguro que a emoção era equivalente à Mick Jagger cantando Sympathy for the Devil, só que em uma versão nerd. O interessante não era apenas sentir aquilo, mas saber que cada uma daquelas estranhas pessoas estavam na mesma sintonia. À medida que o filme transcorria, as surpresas cuidadosamente planejadas por JJ Abrams nos arrebatava, perceptível através dos suspiros, movimentos e sons não contidos emitidos pela audiência. Estar no meio deste público me pareceu tão familiar quanto estar na sala de minha casa. Trata-se, na verdade, da sensação buscada quando se opta estar em determinado grupo, para determinado evento onde um elemento singular conecta a todos. Neste caso, uma fábula que constará algum dia no futuro como um dos símbolos que definiu o ocidente do século XX. Mesmo que não passe de uma história sobre a família mais barraqueira da galáxia. Os Skywalkers.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

HEROES

DAVID BOWIE


DAVID BOWIE

David Robert Jones
(Brixton, Londres, 8 de janeiro de 1947 - 10 de janeiro de 2016)

domingo, 10 de janeiro de 2016

RAY HARRYHAUSEN

Drawings

A MENSAGEM

por Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto)


Um amigo nosso, comandante da VASP, conta-me a estranha mensagem recebida por um piloto americano durante uma aterrissagem.

O avião da companhia norte-americana sobrevoava a Bahia, a caminho do Rio, quando um defeito no motor obrigou o piloto a providenciar uma aterrissagem no aeroporto mais próximo possível.

Na Bahia, justamente na pequena cidade de Barreiras, existe uma pista de emergência (se é que se pode chamar aquilo de pista) para os aviões das linhas internacionais. Raramente é usada, mas era a mais próxima da rota do avião. Assim, o piloto não teve dúvidas. A situação dele estava muito mais pra urubu do que pra colibri. 0 negócio era mesmo se mandar para Barreiras.

Pediu pouso durante certo tempo, dirigindo-se à Rádio local em inglês. A resposta demorou um pouco, mas acabou vindo. Alguém, com forte sotaque nordestino, falando um inglês arrevesado e misturado com palavras em português, respondia que estava ouvindo e aconselhava o comandante a procurar outro local para aterrissagem.

Há dias estava chovendo em Barreiras e a pista se achava em péssimo estado.

O piloto, sem outra alternativa, insistiu em pousar assim mesmo, e tornou a pedir instruções, ouvindo-se lá a voz a dizer que estava bem, mas que não se responsabilizava pelo que desse e viesse.

Acontece porém que isso foi dito com outras palavras, ainda num misto de português e inglês. Assim:

— Ok. You land. But se der bode, I'il take my body out.


*Texto extraído do livro "10 em Humor", Editora Expressão e Cultura — Rio de Janeiro, 1968, pág. 42.


BETTY BOOP

© Max Fleischer

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

VELHO LIMPO


daqui a
uma semana farei
55.

sobre o que
escreverei
quando ele não
levantar mais
pela manhã?

meus críticos
vão adorar
quando a minha diversão
passar a ser
tartarugas
e estrelas-do-mar.

chegarão inclusive a
dizer
coisas boas sobre
mim

como se eu tivesse
finalmente
alcançado a
razão.


CHARLES  BUKOWSKI

DISCOTECA BÁSICA

Carl Perkins
Original Sun Greatest Hits (1986)
(Edição 152,Março de 1998)

Estatisticamente, Carl Perkins não passa de um artista de um sucesso só. Apenas o clássico "Blue Suede Shoes’’ registrou alto nas paradas de sucesso da revista Billboard. Mas, da mesma forma como aconteceu com Velvet Underground e MC 5, a influência de Perkins foi muito superior a seu êxito comercial. O cantor e guitarrista, morto no último dia 19 de janeiro aos 65 anos, foi sinônimo do rockabilly e fator decisivo na carreira de gente como George Harrison, Eric Clapton, Brian Setzer e muitos outros.
Pobre e ambicioso, Perkins não diferia muito dos centenas de jovens músicos que rondavam a Sun Records de Memphis (única gravadora que pode clamar o título de berço do autêntico rock’n’roll). Ele começou a gravar na Sun logo depois de Elvis Presley, mas Sam Phillips, dono da empresa, vetou suas inclinações country. A recomendação de Phillips foi clara: queria que o cantor achasse "um som diferente’’.
Perkins então acelerou sua música e colocou no country muita pegada de blues. Ao lado de Scotty Moore (também guitarrista de Elvis), ele logo se tornou um dos primeiros guitar heroes brancos da história do rock. Seu estilo de tocar era certeiro e preciso, e seu fraseado, cheio de elegância, remontava a músicos como Merle Travis, pioneiro da guitarra no country.
Grande instrumentista, Perkins também sacava a linguagem da juventude da época. É o caso do clássico "Blue Suede Shoes’’, um hino ao narcisismo e ao estilo cool dos rockers dos anos 50. Lançada no final de 1955, a música estourou em todas as paradas americanas e fez dele um astro nacional muito antes de Elvis Presley.
Infelizmente, Perkins sofreu um acidente de carro que o tirou de cena por vários meses. Quando voltou a gravar, tinha até evoluído, mas nunca recuperou sua popularidade inicial. Músicas como "Everybody’s Trying To Be My Baby’’, "Put Your Cat Clothes On", "Matchbox’’, "Sure To Fall’’, "Lend Me Your Comb’’, "Glad All Over’’, "Honey Don’t" são peças definitivas do rockabilly e obrigatórias no aprendizado de qualquer guitarrista com aspirações a roqueiro. Quase todas essas músicas foram gravadas pelos Beatles - nos discos oficiais ou em registros só lançados recentemente, como Live At BBC e a série Anthology. Nenhum outro artista teve tantas composições regravadas pelo maior grupo de rock de todos os tempos.
Depois que saiu da Sun, Perkins foi para Columbia e lançou pelo menos um disco antológico, o notável Whole Lotta Shaking (1959). Depois se dedicou mais ao country. Nunca, porém, abandonou o rockabilly. O melhor exemplo dessa fidelidade é Go, Cat Go, seu último trabalho, lançado no fim de 1996 (e inexplicavelmente fora de catálogo). Mas é seu registro na Sun que o colocou no mapa como um dos grandes do rock’n’roll. E toda a vez que alguém atacar "it’s one for the money, two for the show", Perkins vai sentir a confirmação de que fez seu trabalho direitinho.

Paulo Cavalcanti

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

SOLDA CÁUSTICO

HUMOR
“Não faças aos outros o que gostarias que te fizessem a ti. O gosto deles pode não ser o mesmo”. George Bernard Shaw

SOLDA CÁUSTICO: http://cartunistasolda.com.br/

sábado, 2 de janeiro de 2016

MUNDO PEQUENO

de Manoel de Barros

I
O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.

II
Conheço de palma os dementes de rio.
Fui amigo do Bugre Felisdônio, de Ignácio Rayzama
e de Rogaciano.
Todos catavam pregos na beira do rio para enfiar
no horizonte.
Um dia encontrei Felisdônio comendo papel nas ruas
de Corumbá.
Me disse que as coisas que não existem são mais
bonitas.

IV
Caçador, nos barrancos, de rãs entardecidas,
Sombra-Boa entardece. Caminha sobre estratos
de um mar extinto. Caminha sobre as conchas
dos caracóis da terra. Certa vez encontrou uma
voz sem boca. Era uma voz pequena e azul. Não
tinha boca mesmo. "Sonora voz de uma concha",
ele disse. Sombra-Boa ainda ouve nestes lugares
conversamentos de gaivotas. E passam navios
caranguejeiros por ele, carregados de lodo.
Sombra-Boa tem hora que entra em pura
decomposição lírica: "Aromas de tomilhos dementam
cigarras." Conversava em Guató, em Português, e em
Pássaro.
Me disse em Iíngua-pássaro: "Anhumas premunem
mulheres grávidas, 3 dias antes do inturgescer".
Sombra-Boa ainda fala de suas descobertas:
"Borboletas de franjas amarelas são fascinadas
por dejectos." Foi sempre um ente abençoado a
garças. Nascera engrandecido de nadezas.

VI
Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
- Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas...
E se riu.
Você não é de bugre? - ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas -
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
gramática.

VI
Toda vez que encontro uma parede
ela me entrega às suas lesmas.
Não sei se isso é uma repetição de mim ou das lesmas.
Não sei se isso é uma repetição das paredes ou de mim.
Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes?
Parece que lesma só é uma divulgação de mim.
Penso que dentro de minha casca
não tem um bicho:
Tem um silêncio feroz.
Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.


*do livro "O Livro das Ignorãças" - ed. Civilização Brasileira.


FONTE:http://www.jornaldepoesia.jor.br/manu.html#mundo