quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Quando os quadrinhos fazem a diferença

por Célio Heitor Guimarães
Fui um leitor compulsivo de gibis. Como aprendi a ler aos 5 anos, aos 6 já andava metido entre os quadrinhos. Foram mais de sessenta anos de convívio com os heróis de papel. Afastei-me de vez deles há coisa de dois anos, quando me despedi do Super-Homem, o maior ícone da minha geração, que vem sendo metodicamente assassinado por editores mais perigosos que a kryptonita vermelha. Depois disso, passei – como já lhes disse aqui neste espaço do Zé Beto – a acompanhar apenas as aventuras do ranger italiano Tex Willer e do gaulês Asterix, passando, de vez em quando, pela releitura de Mafalda, de Quino; Peanuts, de Schulz; e Spirit, de Eisner. Mas continuo, por vício de origem, acompanhando o mercado quadrinizado. Às vezes, ele nos surpreende com mimos encantadores. Foi o que aconteceu recentemente.
Eu andava atrás da edição quadrinizada de “O Quinze”, romance de Rachel de Queiroz, que soubera ter sido lançada pela Editora Ática. A versão era datada de 2014, mas não havia jeito de encontrá-la por estas bandas. Estava prestes a encomendá-la à editora, quando – surpresa! – a localizei meio escondida entre as ofertas da Livraria Cultura. Foi uma alegria tamanha quanto a leitura da preciosa edição. Bonita, contundente, triste, mas, sobretudo, verdadeira e bem brasileira. É história de nossa gente, gente que se apega à fé e à terra em que nasceu, onde amarga sofrimento atroz, mas não perde a coragem nem a vontade de viver; gente que divide o nada com o seu semelhante e com os esquálidos animais, que considera da família.
“Encostado ao mourão da porteira de paus corridos, o vaqueiro das Aroeiras aboiava dolorosamente, vendo o gado sair, um a um, do curral. A junta de bois mansos passou devagarinho. O velho touro da fazenda saiu, arrogante. Garrotes magros, de grandes barrigas, empurravam as vacas de cria, atropelando-se. Até que a derradeira rês, a Flor do Pasto, fechando a marcha, também transpôs a porteira e passou junto de Chico Bento, que lhe afagou com a mão a velha anca rosilha, num gesto de carinho e despedida… Saída a última rês, Chico Bento bateu os paus na porteira e foi caminhando devagar, atrás do lento caminhar do gado que marchava à toa, parando às vezes, e pondo no pasto seco os olhos tristes, como numa agudeza de desesperança.”

Quando escreveu “O Quinze”, nos idos de 1930, a cearense Rachel de Queiroz tinha apenas 19 anos, mas soube registrar as cicatrizes deixadas pela estiagem de 1915 no Nordeste brasileiro. E surpreendeu. Não apenas pela pouca idade, mas por ser mulher e por haver demonstrado uma sensibilidade inusitada na época. Mais que isso: pela sobriedade e ausência de pieguice com que conseguiu desenvolver a trama, tendo como pano de fundo uma das mais dolorosas tragédias humanas – que até hoje se presta para fomentar a demagogia e o enriquecimento criminoso de políticos indecentes e mal-intencionados, sem maior resultado concreto para a população.

Não é fácil transpor para os quadrinhos uma obra literária. Ainda mais em se tratando de um clássico como “O Quinze”. Pois outro nordestino, o paraibano Shiko (na verdade, Francisco José de Souto Leite), conseguiu. E o fez com competência, mantendo a essência do texto original e valorizando-o com seu traço firme, suas aquarelas caprichadas e suas cores fortes. A sequência narrativa prende a atenção do leitor, comove, causa tristeza e revolta. E isso se deve ao talento de Shiko. O fato de ele haver morado até os 20 anos no interior da Paraíba e assistido com o avô a muitos pores do sol no dia de São José, o ajudou, com certeza. Nem por isso, o artista deixou de priorizar a simplicidade, como fez questão de registrar:

“Tentei fazer uma construção objetiva, sem grandes floreios, sem perspectivas fantásticas, enquadramentos de malabarista, ou cenas de página inteira”.

No entanto, toda a aridez da região, o desencanto das pessoas e o flagelo da seca se fazem presentes. Assim como os sonhos e as desilusões da normalista Conceição, que protagoniza o romance e diz-se ter muito da autora quando jovem.

“O Quinze”, de Rachel de Queiroz, completou cem anos no ano passado. Mas, desgraçadamente, continua mais atual do que nunca. Por isso, a versão em quadrinhos é uma boa oportunidade para os jovens do Sul-Maravilha entenderem um pouco mais do Brasil. E uma prova que nem tudo está perdido na arte quadrinizada.
FONTE: http://www.zebeto.com.br/

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