WERNER HERZOG, 1974
O
instigante filme “O Enigma de Kaspar Hauser” (ano de 1974), do cineasta
alemão Werner Herzog, vencedor do Grande Prêmio do Júri, no festival de
Cannes, em 1975, levanta para nós um tema filosófico polêmico, a saber:
há uma racionalidade própria à natureza humana, ou ainda, é possível
admitir uma natureza humana?
O drama do personagem,
interpretado por Bruno S., que não era ator profissional, mas que
trabalhou com muito esforço com o diretor alemão, é iniciado,
mostrando-o sozinho, sentado, isolado, emitindo sons como de um animal,
envolvendo um pano velho em um cavalo de brinquedo. Ele se encontra
preso por um corrente, bebe água e come um pedaço de pão. É quando chega
um homem vestido de preto, põe um banquinho à sua frente,
entregando-lhe um papel e um lápis, forçando-o a escrever. Kaspar Hauser
tenta segurar o lápis e escrever algo sozinho. Diante disso, levanta-se
outra questão: já há no ser humano uma predisposição para a linguagem,
em termos de uma ação consciente?
Em seguida, ele é
carregado pelo homem, que o leva para o alto de um monte, pois o nosso
personagem não sabe sequer andar. Com muita dificuldade, ele dá os
primeiros passos. Aqui, fica explícito o entendimento de que o ambiente
determina tanto aspectos físicos, quanto psico-sociais ao ser humano.
Algumas fotografias expõem de modo simples e belo os campos, os telhados, o relógio, a vila, imagens que refletem a mente obscura de um ser isolado, e que agora precisa urgentemente descobrir o mundo. O homem de preto vai-se, e Kaspar Hauser permanece imóvel no meio da praça com uma carta na mão, sendo observado pelos moradores, até que alguém pergunta a ele aonde quer ir, e se pode ajudá-lo, entregando a carta que segura a seu destinatário. O capitão da cavalaria, a quem foi destinada a carta, lê a história daquele rapaz com aspecto de uma criatura abandonada, isolado do convívio social. Não é possível extrair nada dele, como num interrogatório policial. Ele não fala e nem reage às perguntas. O único sinal é o seu nome, que é assinado no papel dado a ele. Resolvem, por isso, isolá-lo em uma cela, dizendo que devem enquadrá-lo nas normas legais, ainda que não parecesse ser ele um vândalo, dizem os guardas, que depois o levam para a casa de um dos moradores da vila.
Lá,
o nosso enigmático personagem tem contato com uma família muito
caridosa, que ensina a ele os hábitos sociais básicos, como sentar-se a
mesa, pronunciar as palavras e frases, aprender a relacionar-se com o
mundo a sua volta, ao tentar memorizar um poema ensinado pela filha do
guarda da prisão e dono da casa, ou ao brincar com um passarinho,
dando-lhe alimento. Ele ainda é capaz de se emocionar com uma criança
nos braços, dizendo: “Mãe, sou desprezado por todos”, depois de ser
motivo de zombaria para um grupo de bêbados arruaceiros.
Os oportunistas que o vigiam levam-no para o circo, a fim de tirar proveito de interesse público, como a grande atração. De lá ele passa a morar na casa do Sr. Daumer, um sujeito que assistia ao espetáculo circense, e que lhe dá todas as condições para que, enfim, seja despertada nele a potencialidade de socialização.
Ao
ouvir o piano, já na casa do Sr. Daumer, ele diz: “Soa forte no meu
peito a música. Estou muito velho? Por que tudo é tão difícil para mim?
Por que não posso tocar piano como respiro?”... O Sr. Daumer responde a
ele que, passados dois anos de convívio, ele já aprendera muita coisa,
mas que ainda deve aprender tudo, pois nunca estivera entre os homens
antes. Ao que Kaspar Hauser responde: “Para mim os homens são como os
lobos”. Aqui, percebemos que, ao ter o domínio da linguagem, o
personagem começa a colocar uma dúvida sobre a sua suposta “pureza”,
como se essa denotasse uma impossibilidade de análise mais depurada da
realidade. O que parece aqui ser ponto para reflexão é: a dita
“civilização moderna” não delimita o poder de criticidade do homem,
quando de seu processo de socialização?...
A própria
existência de Deus é levada por dois teólogos a Kaspar Hauser, com o
objetivo de doutriná-lo. “Já tinha alguma idéia de Deus?”, pergunta um
dos teólogos. Ele apenas responde: “No cativeiro eu não pensava em nada,
e não consigo imaginar que Deus do nada criou tudo, como vocês me
disseram”. Um dos teólogos retruca imediatamente: “Deve admitir o
mistério da fé sem procurar entender”. Mas, sabiamente, responde Kaspar
Hauser: “Primeiro, preciso aprender a ler e a escrever melhor para
compreender o resto”...
Vê-se que são questões polêmicas, agora situadas no contexto de uma possível resposta crítica a ser dada pelo personagem, como se o mesmo tivesse agora que lutar contra um sistema de códigos lingüísticos, ideológicos, estéticos, lógicos, teológicos, morais, prontos para extrair de sua mente uma resposta pronta e acabada. Duas cenas são marcantes para ilustrar esse embate: a primeira, em que Kaspar Hauser pergunta à governanta do Sr. Daumer: “para que servem as mulheres, e por que só lhe permitem cozinhar e fazer crochê?”, ao que ela desconversa e pede que isso seja perguntado ao Sr. Daumer; a segunda, quando um professor de lógica lança uma situação problema de caráter lógico dedutivo, dizendo que só há um modo de respondê-la, e depois da demonstração do professor, Kaspar Hauser apresenta outra possibilidade de resposta, o que, obviamente, não é aceito pelo ortodoxo professor. Pessoas como Kaspar Hauser são nessas horas consideradas loucas e inoportunas...
Com isso, o
convívio social torna-se uma tortura para o nosso personagem. Numa
recepção nobre, na casa de um conde inglês, ele se sente mal e sai,
depois de expressar no piano o que sentia em sua alma através da valsa
em Fá Maior, de Mozart. Em seguida, ele sai correndo da igreja, dizendo
que a canção dos fiéis soa em seus ouvidos como um grito horrível. Fica
aqui explícita a idéia de que não há enquadramento possível para Kaspar
Hauser, capaz de satisfazer a sua busca interior. É quando ele é
agredido em sua casa, com duas pauladas na cabeça. Ele parecia incomodar
algumas pessoas. A sua indiferença aos padrões. O seu jeito
“anti-social”. Mas faltava uma coisa a ser dita por ele. É quando ele
tem uma visão profética. “Eu vi o mar. Eu vi uma montanha, e muita
gente. Estavam todos subindo a montanha, como uma procissão. Havia muita
neblina. Eu não conseguiria enxergar claramente. E lá em cima, estava a
morte”.
Depois de recuperar-se, ocorre outro atentado,
agora para conduzi-lo de vez à morte. Nos momentos derradeiros, já no
leito de morte, Kaspar Hauser conta a sua última história. “Vejo uma
caravana que vem pelo deserto atravessando a areia, guiada por um velho
cego. A caravana parou, alguns acreditam que eles se perderam, pois se
depararam com as montanhas. Eles não conseguem seguir a bússola. Então o
guia cego pega um punhado de areia e a come, como se fosse uma comida.
‘Meus filhos’, diz o cego, vocês estão errados, isto diante de nós não
são montanhas, e sim , apenas sua imaginação. Prosseguiremos para o
norte’. E então, sem discutirem, eles prosseguiram adiante e chegaram na
cidade. E lá a história continua. Mas a história nesta cidade, eu não
sei. Eu agradeço por terem ouvida minha história. Estou cansado
agora”...
Kaspar Hauser morre, e é logo autopsiado. Os médicos legistas examinam o seu cérebro e percebem uma deformidade, o seu lado esquerdo é menor. Isso dará um lindo processo investigativo. O escrivão, que relata o drama de Kaspar Hauser desde o seu início, afirma: “Finalmente temos a melhor explicação que podíamos achar sobre este estranho personagem”. Uma fala que nada mais representa do que a tentativa de justificar a ineficaz condução social dada pelos anos de não adaptação de Kaspar Hauser a um sistema ideológico alicerçado na burocracia das normas prescritas, segundo modelos fixos de padronização sócio-cultural.
Observa-se desse modo que é mais cômodo colocar a
culpa da não sociabilidade do personagem a algum fator fisiológico, do
que mergulhar fundo na questão antropológica da vida social e seus
desdobramentos nem sempre logicamente demonstráveis e cientificamente
comprováveis. Não estaria o filme de Herzog levantando outra
possibilidade de responder à polêmica acerca de uma natureza pura do
homem ou de uma racionalidade inata, que também necessitaria, para ser
melhor compreendida, de afetividade, imaginação, criatividade e amor?
Fica para nós a reflexão, em tons de polêmica e controvérsias...
Jorge Leão
Professor de Filosofia do Instituto Federal do Maranhão, e membro do Movimento Familiar Cristão
Em: 03 de março de 2009