sábado, 14 de abril de 2012

SANTOS F. C.


O SANTOS QUE O ZÉ LUIS ME DEU

Por Roberto José da Silva

Nunca me levou a campo, nunca tentou fazer minha cabeça, nunca vestiu uma camisa do time, nunca falou do seu amor por ele. Não precisava. Dificilmente deixava a couraça expandir sentimentos, e a chave dela eu só consegui achar muitos anos mais tarde para descobrir um menino sofrido cujo rosto que parecia esculpido a talhadeira só não metia medo porque os olhos eram de um azul tão claro e cristalino que demonstrava quem estava ali dentro. Mas havia um momento naquela vida de operário, que saía todo dia com a enorme pasta com a marmita de alumínio fechada hermeticamente fechada com elástico, e voltava no fim da tarde sem demonstrar um pingo de sofrimento, sem reclamar de nada, havia um momento em que era a alma que tomava conta e envolvia aquele corpo magro e gigante para um menino que olhava, olhava, olhava e jamais esqueceu a cena. Na meia-água nos fundos de um quintal de uma vila no subúrbio paulistano o ritual consistia em puxar uma cadeira para uma mesinha pequena de madeira onde, como num altar, o rádio sempre sintonizado na Bandeirantes era ligado nas tardes de domingo. Ele se sentava de lado, para ouvir com o lado direito, o antebraço todo apoiado, a mão direita com os dedos longos empalmando a cabeça e, dependendo do lance narrado por Pedro Luis ou Edson Leite, ela, a mão, deslizava até a nuca, como se quisesse ajeitar os cabelos. Mas o que ficou marcado para sempre na retina da memória era o gesto que simbolizava a partida difícil, a decisão de um título. Ele cultivava um bigode cujos pelos, ao contrário do que ele alisava na nuca, eram grossos. E nesses momentos de tensão máxima, ampliada pela descrição empolgante dos lances, parecia que ele ia arrancá-los um a um com a pinça formada pelo indicador e polegar. Eu olhava, escutava alguns lances, dava uma volta e sabia que aquele time pelo qual ele torcia era meu também, porque era assim – e pronto. Não lembro de tê-lo visto na explosão do gol, da conquista, e isso aconteceu demais naquele final de anos 50 e todo a década seguinte – e aí, penso hoje, aí invertia tudo, como numa mágica que fazia com que ele não demonstrasse tudo o que sentia. Muitos anos mais tarde, quando ele voltou para a sua Palmeira dos Índios, eu sintetizei de forma simplista aquela paixão: todo pau-de-arara que desceu para São Paulo naqueles anos do nascimento do Rei do Futebol naquele time mágico não tinha como torcer para outro time. Pode ser, mas antes ele morou no Rio de Janeiro e havia outro time mágico, o Botafogo de Nilton Santos, Didi e Garrincha – e ele nunca nem se dignou a falar dele, mesmo porque, antes do Palmeiras de Ademir da Guia, foi o grande rival do Santos. Eu poderia ter visto aquele time jogar muitas e muitas vezes, se meu pai Zé Luis fosse torcedor de ir a campo. Mas ele era cismado. Gostava de acompanhar pela magia das ondas médias, mas estava ao meu lado, na sala de um vizinho, o dentista da vila, o baiano Dr. Milton, também santista doente, quando o Santos sem Pelé, mas com Pepe infernal na noite de chuva do Maracanã, ganhou a primeira partida contra o Milan, depois consolidada por conta da loucura e coragem de Almir Pernambuquinho. Sim, lembro agora, quando o ponta esquerda soltou a bomba do meio da rua, furando tudo, ele abriu um sorriso diante da tela de tv que transmitia em preto e branco, direto do Rio, e um despertador que estava na mesa de centro para marcar o tempo tinha ido parar no teto na explosão de alegria do dono da casa. Com ele também vi no Cine Dom Bosco, que ficava atrás de casa, o filme “Isto é Pelé” – e aquela foi a única vez que fomos juntos ao cinema. Talvez por tudo isso, muito tempo depois, quando descobri, através do meu rito de passagem de dor, porque ele era tão fechado, e isso nos aproximou porque eu lhe dei o primeiro beijo, retribuído três anos depois em nova visita ao Nordeste, talvez por isso eu nunca tenha lhe falado que tinha descoberto o time do meu coração, com outras cores, em outro estádio. Claro que ele iria compreender, porque essas coisas não se explicam, porque ele sempre soube que o amor que ele passou pelo Santos permaneceria. Às vezes penso que o fato de ter trabalhado com futebol mais de 20 anos tem a ver com ele. E como eu era muito parecido, agora nem lembro mais se lhe contei que estive a trabalho na Vila Belmiro logo no início da carreira, que entrei naquele vestiário, que vi o armário do Rei e imaginei aqueles times ali dentro. Alguns anos antes de ele partir, lhe dei de presente o boné do Peixe, ele que gostava tanto de proteger a cabeça com cabelos ralos do sol inclemente daquelas bandas. Ele deu aquele sorriso como no jogo contra o Milan. Talvez tenha acontecido a mesma coisa quando meu irmão Ricardo, torce para o São Paulo, lhe mostrou algumas fotos minhas de um encontro com Pelé aqui em Curitiba. De vez em quando eu coloco o boné na cabeça, assim, naqueles momentos em que é preciso algo maior que o racional para se levar a vida. Nesses momentos eu entendo o que passei anos se entender: como alguém podia sofrer torcendo para um time como aquele. Entendo que não é preciso entender. É o futebol. E eu agradeço ter herdado o Santos de meu pai.

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