O SANTOS QUE O ZÉ LUIS ME DEU
Por Roberto José da Silva
Nunca me levou a campo, nunca tentou fazer minha cabeça, nunca vestiu
uma camisa do time, nunca falou do seu amor por ele. Não precisava.
Dificilmente deixava a couraça expandir sentimentos, e a chave dela eu
só consegui achar muitos anos mais tarde para descobrir um menino
sofrido cujo rosto que parecia esculpido a talhadeira só não metia medo
porque os olhos eram de um azul tão claro e cristalino que demonstrava
quem estava ali dentro. Mas havia um momento naquela vida de operário,
que saía todo dia com a enorme pasta com a marmita de alumínio fechada
hermeticamente fechada com elástico, e voltava no fim da tarde sem
demonstrar um pingo de sofrimento, sem reclamar de nada, havia um
momento em que era a alma que tomava conta e envolvia aquele corpo magro
e gigante para um menino que olhava, olhava, olhava e jamais esqueceu a
cena. Na meia-água nos fundos de um quintal de uma vila no subúrbio
paulistano o ritual consistia em puxar uma cadeira para uma mesinha
pequena de madeira onde, como num altar, o rádio sempre sintonizado na
Bandeirantes era ligado nas tardes de domingo. Ele se sentava de lado,
para ouvir com o lado direito, o antebraço todo apoiado, a mão direita
com os dedos longos empalmando a cabeça e, dependendo do lance narrado
por Pedro Luis ou Edson Leite, ela, a mão, deslizava até a nuca, como se
quisesse ajeitar os cabelos. Mas o que ficou marcado para sempre na
retina da memória era o gesto que simbolizava a partida difícil, a
decisão de um título. Ele cultivava um bigode cujos pelos, ao contrário
do que ele alisava na nuca, eram grossos. E nesses momentos de tensão
máxima, ampliada pela descrição empolgante dos lances, parecia que ele
ia arrancá-los um a um com a pinça formada pelo indicador e polegar. Eu
olhava, escutava alguns lances, dava uma volta e sabia que aquele time
pelo qual ele torcia era meu também, porque era assim – e pronto. Não
lembro de tê-lo visto na explosão do gol, da conquista, e isso aconteceu
demais naquele final de anos 50 e todo a década seguinte – e aí, penso
hoje, aí invertia tudo, como numa mágica que fazia com que ele não
demonstrasse tudo o que sentia. Muitos anos mais tarde, quando ele
voltou para a sua Palmeira dos Índios, eu sintetizei de forma simplista
aquela paixão: todo pau-de-arara que desceu para São Paulo naqueles anos
do nascimento do Rei do Futebol naquele time mágico não tinha como
torcer para outro time. Pode ser, mas antes ele morou no Rio de Janeiro e
havia outro time mágico, o Botafogo de Nilton Santos, Didi e Garrincha –
e ele nunca nem se dignou a falar dele, mesmo porque, antes do
Palmeiras de Ademir da Guia, foi o grande rival do Santos. Eu poderia
ter visto aquele time jogar muitas e muitas vezes, se meu pai Zé Luis
fosse torcedor de ir a campo. Mas ele era cismado. Gostava de acompanhar
pela magia das ondas médias, mas estava ao meu lado, na sala de um
vizinho, o dentista da vila, o baiano Dr. Milton, também santista
doente, quando o Santos sem Pelé, mas com Pepe infernal na noite de
chuva do Maracanã, ganhou a primeira partida contra o Milan, depois
consolidada por conta da loucura e coragem de Almir Pernambuquinho. Sim,
lembro agora, quando o ponta esquerda soltou a bomba do meio da rua,
furando tudo, ele abriu um sorriso diante da tela de tv que transmitia
em preto e branco, direto do Rio, e um despertador que estava na mesa de
centro para marcar o tempo tinha ido parar no teto na explosão de
alegria do dono da casa. Com ele também vi no Cine Dom Bosco, que ficava
atrás de casa, o filme “Isto é Pelé” – e aquela foi a única vez que
fomos juntos ao cinema. Talvez por tudo isso, muito tempo depois, quando
descobri, através do meu rito de passagem de dor, porque ele era tão
fechado, e isso nos aproximou porque eu lhe dei o primeiro beijo,
retribuído três anos depois em nova visita ao Nordeste, talvez por isso
eu nunca tenha lhe falado que tinha descoberto o time do meu coração,
com outras cores, em outro estádio. Claro que ele iria compreender,
porque essas coisas não se explicam, porque ele sempre soube que o amor
que ele passou pelo Santos permaneceria. Às vezes penso que o fato de
ter trabalhado com futebol mais de 20 anos tem a ver com ele. E como eu
era muito parecido, agora nem lembro mais se lhe contei que estive a
trabalho na Vila Belmiro logo no início da carreira, que entrei naquele
vestiário, que vi o armário do Rei e imaginei aqueles times ali dentro.
Alguns anos antes de ele partir, lhe dei de presente o boné do Peixe,
ele que gostava tanto de proteger a cabeça com cabelos ralos do sol
inclemente daquelas bandas. Ele deu aquele sorriso como no jogo contra o
Milan. Talvez tenha acontecido a mesma coisa quando meu irmão Ricardo,
torce para o São Paulo, lhe mostrou algumas fotos minhas de um encontro
com Pelé aqui em Curitiba. De vez em quando eu coloco o boné na cabeça,
assim, naqueles momentos em que é preciso algo maior que o racional para
se levar a vida. Nesses momentos eu entendo o que passei anos se
entender: como alguém podia sofrer torcendo para um time como aquele.
Entendo que não é preciso entender. É o futebol. E eu agradeço ter
herdado o Santos de meu pai.
Nenhum comentário :
Postar um comentário