Para mim, para Fellini,
 um filme é como um míssel posto em órbita. É uma operação 
matematicamente precisa. Elabora-se, cuidadosa e totalmente, em todos os
 pormenores, mesmo antes de se ter feito o primeiro disparo da câmara. 
De que espécie de atores necessitarei? Decorações, guarda-roupa, 
infindas pequenas coisas? Na verdade, para mim, a filmagem constitui a 
etapa mais fácil de toda a operação. Estou meramente realizando o que 
antes tinha concebido. O esforço real surge quando se começa a pensar, a
 criar uma nova evocação; sentimo-nos angustiados, e os nossos 
pensamentos tornam-se um peso no cérebro, e trabalhamos arduamente. 
Muito arduamente. Não quero significar com isso que se deixe de sentir o
 prazer de cada minuto de gloriosa auto-torturação. E assim, 
gradualmente, a obra desenvolve-se e vai tomando forma, mas tudo com 
precisão matemática e cuidadosamente equacionado. No guião e nas 
anotações do realizador. Quando finalmente se chega ao começo da 
rodagem, nada surge que não tivesse sido previamente pensado e escrito 
no papel. Fellini a trabalhar sem guião nem anotações? Estúpido mito. Todavia, há uma coisa que Fellini de
 certo não é: prisioneiro dos seus próprios pensamentos. Creio que seria
 pura estupidez manter-me fiel a qualquer coisa que tivesse escrito seis
 meses antes, quando ainda não sabia quem viriam a ser os atores, qual a
 localidade apropriada para as filmagens; por isso faço alterações. 
Quero sentir-me livre e recetivo a todo o género de sugestões durante o 
percurso, durante a viagem do filme.
Realizar
 uma obra cinematográfica assemelha-se bastante com fazer uma viagem. 
Antes de iniciar a rodagem, já sabemos com exatidão donde queremos 
partir e aonde desejamos chegar. Mas seria pura imbecilidade 
pretender-se possuir, antecipadamente, o conhecimento de tudo quanto 
porventura viesse a ocorrer durante a viagem. Se assim fosse, teríamos 
perdido, de antemão, todo o prazer de viajar. É necessário que se possua
 o conhecimento do rumo, mas só sentindo-nos livres poderemos enriquecer
 a viagem com a força da nossa presença e de todos os fatos que se nos 
vão revelando. Impedir a ação do pensamento sobre as coisas, à medida 
que elas surgem, não seria viajar de olhos abertos, mas, pelo contrário,
 toda a trajetória vinha a resultar na viagem de um cego. Se eu 
recusasse uma nova ideia revelada no decorrer da captação das imagens, 
proporcionando-me um conhecimento mais rico do meu assunto, seria tão 
estúpido como recusar a sugestão de um dos meus atores, baseada na sua 
boa fé e sentimento de humanidade. Era como se recusasse a própria vida.
 Um Fellini não
 pode ficar amarrado a ideias fixas, prisioneiro da conjetura 
esquemática feita por ele mesmo, mas esta liberdade é também a de que 
todo o artista necessita para conseguir exprimir-se cabalmente.
Para
 realizar um filme preciso, pois, de me ver absolutamente livre das 
estipulações escritas por mim ou por outros. Suponho-me um homem de 
sorte, porque me é permitido fazer exatamente o que quero. Todas as 
decisões e responsabilidades são apenas minhas. Porém, não me esquivo a 
estas nem abuso daquelas. Não foi tarefa fácil, por exemplo, chegar à 
decisão de pôr pessoas inteiramente desconhecidas no desempenho dos 
principais papéis em “Satyricon”.
 Passei pela angústia, tormento e dúvida de mim próprio que acompanham 
um labor deste género. Hoje sei que tinha razão. A maior parte do 
trabalho está filmada. Mas na altura… Havia aquelas vozes dizendo-me ao 
ouvido um segredo trovejante: Você precisa de nomes de bilheteira, Fellini.
 «Astros que vendam bilhetes!» Examinei esses “astros” devidamente, 
apenas para descobrir a vertiginosa quantidade de dinheiro que queriam, e
 como eu teria de adaptar a rodagem aos seus horários pessoais. 
Sujeitamo-nos a ver passar o tempo, semanas e semanas à espera do “homem
 bilheteira” ou então deixamos de contar com ele. E é preciso libertá-lo
 das suas obrigações em determinado momento, porque tem outro 
compromisso algures. Se o não libertamos, mete-nos em sarilhos. Bastante
 me custou acreditar no que ouvia, mas quando percebi ser essa a maneira
 como as coisas correm hoje na profissão cinematográfica, disse não, 
jamais será assim, sempre que estejam em causa filmes de Fellini.
Na
 ocasião sou honesto acerca do que digo. E eu próprio acredito nas 
minhas palavras. Porque a nossa viagem foi uma viagem feliz. É como se 
déssemos um passeio com bons amigos e o prazer fosse tanto que nos 
induzisse logo à promessa de dar, no ano seguinte, novo passeio com 
eles. Porém, chega o próximo ano e pode acontecer que tenhamos novos e 
diferentes amigos. É desta sorte que as coisas se passam com os meus 
filmes. Faço o prometimento. Depois a fantasia chega ao fim. O filme 
está pronto. No ano seguinte terei nova fantasia e novos personagens em 
mente, e outras pessoas preencherão, logicamente, os requesitos 
essenciais à caracterização desses personagens, tão obviamente que não 
haverá lugar para quaisquer dúvidas acerca de quem devo chamar para o 
desempenho dos novos papéis. Receio bastante ter causado desapontamentos
 a alguns atores, mas nunca o fiz intencionalmente nem de má fé. Em 
todos os casos tenho criado por eles muita amizade durante a nossa 
viagem, e não são poucos os que foram contratados para participar no 
filme seguinte. Subconscientemente terei mesmo escolhido a história 
adequada às suas possibilidades. Foi assim no referente a Marcello 
Mastroianni, a Anouk Aimée, e a minha mulher já trabalhou para mim seis 
vezes.
Quando tinha ainda muito pouca idade, o meu sonho era vir a ser repórter, como aqueles que se vêm nos velhos filmes americanos de gangsters, trabalhando com a polícia. Mais tarde desisti desse sonho e criei outro: desejava fazer-me escritor, dramaturgo. E, na verdade, comecei como escritor, primeiro para a rádio e depois para o cinema. Tinha escrito 75 guiões antes de me tornar realizador. Atingi a maturidade profissional após ter escrito duas histórias para Rossellini. Uma foi "Roma, Cidade Aberta" e a outra "Paisanos" . Observava diariamente o trabalho de Rossellini porque tinha de lá estar para escrever os diálogos dia a dia, e a certa altura descobri-me a gostar do que ia vendo. Pensava que seria para mim um grande prazer se fizesse o que ele fazia, e senti-me igual a ele perante a tarefa. Bem, foi assim o meu começo, há mais de vinte anos, e não posso libertar-me da sensação de ter passado esse tempo todo a fazer um único grande filme, um filme que me tem ocupado cada instante dos vinte e alguns anos e se encontra ainda bastante longe do fim. Se eu tenho o meu caminho, o filme nunca o terá.
 (Texto publicado a 29 de Agosto de 1969, na revista "Vida Mundial")



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