por Zé da Silva
Câncer
Queria a determinação dela. O silêncio dela. O olhar sereno dela. O
amor que ela passava só com a presença. Ele olhava aquela foto e sempre
ria porque ela tinha o humor refinado e perfurante. Podia falar o
palavrão mais escabroso, mas o colocava de uma forma tão rápida ao se
deparar com uma situação, que aquilo soava poético e as risadas
iluminavam o ambiente, o quintal, a rua, a cidade, o planeta, o
universo. Mas ela não ria – e este segredo ele nunca desvendou, porque
ria das próprias piadas, das mancadas, da desgraça própria e alheia. No
dia em que abriram seu joelho com o bisturi, ele jura ter sonhado com a
possibilidade de acordar do torpor da anestesia com as pernas cambaias
que ela tinha. Agradecia por ser dela a porção mulher que tinha, apesar
dos quase dois metros de altura, cem quilos de gordura e pelos
espalhados feito um tapete pelo corpo. Era por quem chorava quando
adentrava as catacumbas da alma. Era para quem olhava para ter a força
de se erguer do lodaçal em que se enfiava na armadilha da mente.
Lembrava que ficou pouco tempo com ela, além dos meses encolhido na
quietude do seu útero. Tudo era lembrança, principalmente a voz ao
telefone no último dia que aumentou para a eternidade a distância entre
eles. Mas foi a partir daí que ela tomou conta dele, como se soubesse
todo o tempo que isso aconteceria. Era a mulher da vida dele. Antes,
durante e depois da existência.
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