Após décadas, o personagem Zé do Caixão retorna em filme inédito.
Flávia Guerra
Em um estúdio da Vila Mariana, em São Paulo, a cena era tarantinesca. Em uma ante-sala, um grupo de mães, pais e avós tenta conter o ânimo de bebês que esperavam para fazer um teste para uma campanha de produtos alimentícios. Na mesma ante-sala, a veterana atriz de cinema Helena Ignez aguardava sua vez para fazer um teste de maquiagem de um novo filme, o 'singelo' Encarnação do Demônio.Enquanto os pimpolhos brincavam, atrás de uma das portas do estúdio, foi a vez de Jece Valadão, testar a maquiagem para seu mais novo vilão no cinema. O 'mocinho' desta história supervisionava Valadão enquanto também fazia seu próprio teste. Como é alérgico, estava preocupado com a reação de sua pele aos materiais que terá de usar. Digamos que vão muito além do tradicional pancake e que a lista inclui sangue, pele artificial e imensas unhas de resina. Digamos também que o 'mocinho' atende pelo nome de José Mojica Marins.
Sim, Zé do Caixão está de volta. Mais forte, sanguinário e... mais velho e sofisticado.É a primeira vez em quase 30 anos que o cineasta dirigiu um longa. Também foi a primeira vez que Mojica filmou com verba captada pelas leis de incentivo. Para quem fazia filmes artesanais, os cerca de R$ 1 milhão que o novo filme custou foi suficiente para a carnificina cinematográfica.
Assim como para o criador, os anos também passaram no estranho mundo do personagem de terror mais brasileiro que já houve. O sanguinário coveiro não morreu em Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967). Para alegria dos fãs, foi salvo do pântano em que se afogava, enlouqueceu e foi preso . Cumpriu sua pena por 30 anos e agora volta, fortalecido e determinado a encontrar a mãe de seu herdeiro.E Zé do Caixão está mais implacável com a humanidade. Vai ter de se acostumar com a nova e nada glamourosa vida. Vilão brasileiro não mora em castelo mal-assombrado. Bruno (Rui Resende), seu fiel servo, construiu o QG em uma favela. É um mundo ainda mais desiludido, cínico e miserável que o vilão encontra.Muitos não sabem onde acaba o Zé e onde começa o Mojica. As unhas são um bom começo. 'O Zé jamais cortaria suas unhas. Eu cortei. Depois de anos, estavam tão grandes que minha mão corria o risco de atrofiar', conta o cineasta, enquanto prova as postiças feitas em resina.Zé do Caixão não é mais o mesmo? 'É e não é. Adorei ter produtores, estrutura. Mas avisei que tenho jeito próprio de dirigir. Quando começamos a filmar é que foi a hora da verdade.'De fato, Zé do Caixão nunca esteve tão sofisticado. Mojica, famoso por trabalhar em um esquema único, ganhou até um fiel escudeiro, bem ao estilo do personagem Bruno: o fanático Dennison Ramalho (diretor do curta Amor Só de Mãe).
Zé também teve um sósia-dublê 'importado' dos EUA (o fã Raymond Castille), e contou com um exército de figurantes (mais de 300) e teve pela primeira vez produtoras como Olhos de Cão, de O Prisioneiro da Grade de Ferro, que tem à frente Paulo Sacramento, e Gullane Filmes, de O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias.'Mas faço questão de manter algumas coisas toscas dos filmes anteriores. Efeitos especiais, por exemplo, só nos créditos', diz Mojica que, no roteiro de Encarnação do Demônio, escrito com Ramalho, fecha a trilogia iniciada em 1964 por À Meia-Noite Levarei sua Alma. O coveiro sádico, que quer garantir a continuação de sua linhagem, em vez de eleger uma só vítima, seqüestra sete jovens.Típicas 'gostosas'.'Zé, por que nos seus filmes as mulheres têm sempre de ser lindas e aparecem nuas?', pergunta o Estado, que teve acesso exclusivo a este estranho mundo. 'Cheguei à conclusão de que se não tem mulher linda sofrendo não tem impacto', responde o diretor que, nos tempos das vacas magras enveredou pelo terreno do erótico e dirigiu filmes como Mulheres do Sexo Violento.
Mas só tem mulher bonita? 'Não. Tem feia. No purgatório, está cheio.'Em Encarnação do Demônio , até Iemanjá entra na dança. Ou melhor, no esgoto. 'Surge de águas fedorentas e literalmente vira do avesso', conta o cineasta. Sem estragar surpresas, é possível adiantar que a lista de carinhos nas vítimas inclui banhos em tonéis de vísceras, queimaduras, 'uma mulher estuprada por um rato vivo', canibalismo. Para tantas atividades recreativas, a equipe precisa de muitos figurantes. A pequena loja dos horrores montada pela equipe na Vila Mariana (o QG é chamado de 'Projaca' devido à jaqueira no quintal) recebeu vários tipos desses que leram os 'chamados divinos' da equipe em jornais e sites. 'Apareceram figuras interessantes, é sempre bom ter opção', comenta a produtora de elenco Alessandra Tosi, que se divertiu muito com os mascotes do filme: cobras, lagartos, ratos.Aos 70 anos, o cineasta festejadíssimo no exterior, que levou décadas para ser reconhecido em seu País e recebeu em 2005 a Ordem do Mérito Cultural, prova que terror no Brasil vai além de Delírios de um Anormal. 'Sem rancor. Fiz as pazes com o Brasil. Se depender da legião de fiéis Brunos mundo afora, Mojica ainda levará muitas almas ao cinema.
fonte: http://www.estado.com.br/editorias/2006/11/06/
Flávia Guerra
Em um estúdio da Vila Mariana, em São Paulo, a cena era tarantinesca. Em uma ante-sala, um grupo de mães, pais e avós tenta conter o ânimo de bebês que esperavam para fazer um teste para uma campanha de produtos alimentícios. Na mesma ante-sala, a veterana atriz de cinema Helena Ignez aguardava sua vez para fazer um teste de maquiagem de um novo filme, o 'singelo' Encarnação do Demônio.Enquanto os pimpolhos brincavam, atrás de uma das portas do estúdio, foi a vez de Jece Valadão, testar a maquiagem para seu mais novo vilão no cinema. O 'mocinho' desta história supervisionava Valadão enquanto também fazia seu próprio teste. Como é alérgico, estava preocupado com a reação de sua pele aos materiais que terá de usar. Digamos que vão muito além do tradicional pancake e que a lista inclui sangue, pele artificial e imensas unhas de resina. Digamos também que o 'mocinho' atende pelo nome de José Mojica Marins.
Sim, Zé do Caixão está de volta. Mais forte, sanguinário e... mais velho e sofisticado.É a primeira vez em quase 30 anos que o cineasta dirigiu um longa. Também foi a primeira vez que Mojica filmou com verba captada pelas leis de incentivo. Para quem fazia filmes artesanais, os cerca de R$ 1 milhão que o novo filme custou foi suficiente para a carnificina cinematográfica.
Assim como para o criador, os anos também passaram no estranho mundo do personagem de terror mais brasileiro que já houve. O sanguinário coveiro não morreu em Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967). Para alegria dos fãs, foi salvo do pântano em que se afogava, enlouqueceu e foi preso . Cumpriu sua pena por 30 anos e agora volta, fortalecido e determinado a encontrar a mãe de seu herdeiro.E Zé do Caixão está mais implacável com a humanidade. Vai ter de se acostumar com a nova e nada glamourosa vida. Vilão brasileiro não mora em castelo mal-assombrado. Bruno (Rui Resende), seu fiel servo, construiu o QG em uma favela. É um mundo ainda mais desiludido, cínico e miserável que o vilão encontra.Muitos não sabem onde acaba o Zé e onde começa o Mojica. As unhas são um bom começo. 'O Zé jamais cortaria suas unhas. Eu cortei. Depois de anos, estavam tão grandes que minha mão corria o risco de atrofiar', conta o cineasta, enquanto prova as postiças feitas em resina.Zé do Caixão não é mais o mesmo? 'É e não é. Adorei ter produtores, estrutura. Mas avisei que tenho jeito próprio de dirigir. Quando começamos a filmar é que foi a hora da verdade.'De fato, Zé do Caixão nunca esteve tão sofisticado. Mojica, famoso por trabalhar em um esquema único, ganhou até um fiel escudeiro, bem ao estilo do personagem Bruno: o fanático Dennison Ramalho (diretor do curta Amor Só de Mãe).
Zé também teve um sósia-dublê 'importado' dos EUA (o fã Raymond Castille), e contou com um exército de figurantes (mais de 300) e teve pela primeira vez produtoras como Olhos de Cão, de O Prisioneiro da Grade de Ferro, que tem à frente Paulo Sacramento, e Gullane Filmes, de O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias.'Mas faço questão de manter algumas coisas toscas dos filmes anteriores. Efeitos especiais, por exemplo, só nos créditos', diz Mojica que, no roteiro de Encarnação do Demônio, escrito com Ramalho, fecha a trilogia iniciada em 1964 por À Meia-Noite Levarei sua Alma. O coveiro sádico, que quer garantir a continuação de sua linhagem, em vez de eleger uma só vítima, seqüestra sete jovens.Típicas 'gostosas'.'Zé, por que nos seus filmes as mulheres têm sempre de ser lindas e aparecem nuas?', pergunta o Estado, que teve acesso exclusivo a este estranho mundo. 'Cheguei à conclusão de que se não tem mulher linda sofrendo não tem impacto', responde o diretor que, nos tempos das vacas magras enveredou pelo terreno do erótico e dirigiu filmes como Mulheres do Sexo Violento.
Mas só tem mulher bonita? 'Não. Tem feia. No purgatório, está cheio.'Em Encarnação do Demônio , até Iemanjá entra na dança. Ou melhor, no esgoto. 'Surge de águas fedorentas e literalmente vira do avesso', conta o cineasta. Sem estragar surpresas, é possível adiantar que a lista de carinhos nas vítimas inclui banhos em tonéis de vísceras, queimaduras, 'uma mulher estuprada por um rato vivo', canibalismo. Para tantas atividades recreativas, a equipe precisa de muitos figurantes. A pequena loja dos horrores montada pela equipe na Vila Mariana (o QG é chamado de 'Projaca' devido à jaqueira no quintal) recebeu vários tipos desses que leram os 'chamados divinos' da equipe em jornais e sites. 'Apareceram figuras interessantes, é sempre bom ter opção', comenta a produtora de elenco Alessandra Tosi, que se divertiu muito com os mascotes do filme: cobras, lagartos, ratos.Aos 70 anos, o cineasta festejadíssimo no exterior, que levou décadas para ser reconhecido em seu País e recebeu em 2005 a Ordem do Mérito Cultural, prova que terror no Brasil vai além de Delírios de um Anormal. 'Sem rancor. Fiz as pazes com o Brasil. Se depender da legião de fiéis Brunos mundo afora, Mojica ainda levará muitas almas ao cinema.
fonte: http://www.estado.com.br/editorias/2006/11/06/
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